Morte de quase 38 mil pessoas em 2015 atribuída ao ‘dieselgate’

Há quase dois anos descobriu-se que a Volkswagen usava um dispositivo para manipular as emissões de poluentes nos testes. Depois percebeu-se que outros fabricantes faziam o mesmo. Agora um artigo na revista Nature faz a primeira análise do impacto na saúde destas emissões.

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Reuters

A 18 de Setembro de 2015, a Agência de Protecção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês) anunciava que o fabricante alemão de automóveis Volkswagen usava software ilegal para manipular as emissões de óxidos de azoto (NOx) durantes testes. Mas na estrada os veículos a gasóleo emitiam até 40 vezes mais NOx do que nos testes. Ao todo, cerca de 11 milhões automóveis a diesel em todo o mundo tinham este dispositivo para manipular as emissões destes poluentes. O caso ficou conhecido como “dieselgate” (referência ao Watergate). Agora surgiu o primeiro estudo que analisa de forma global os impactos destas emissões: a conclusão é que, das 107.600 mortes prematuras atribuídas a emissões NOx em 2015, mais de 37 mil aconteceram por emissões que ultrapassaram os valores-limite estabelecidos nos regulamentos.  

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A 18 de Setembro de 2015, a Agência de Protecção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês) anunciava que o fabricante alemão de automóveis Volkswagen usava software ilegal para manipular as emissões de óxidos de azoto (NOx) durantes testes. Mas na estrada os veículos a gasóleo emitiam até 40 vezes mais NOx do que nos testes. Ao todo, cerca de 11 milhões automóveis a diesel em todo o mundo tinham este dispositivo para manipular as emissões destes poluentes. O caso ficou conhecido como “dieselgate” (referência ao Watergate). Agora surgiu o primeiro estudo que analisa de forma global os impactos destas emissões: a conclusão é que, das 107.600 mortes prematuras atribuídas a emissões NOx em 2015, mais de 37 mil aconteceram por emissões que ultrapassaram os valores-limite estabelecidos nos regulamentos.  

Publicado online esta segunda-feira na revista Nature, o estudo analisa as emissões de NOx, bem como o ozono ao nível no solo (aqui são um poluente) e as partículas muito finas (com 2,5 micrómetros de diâmetro), que resultam dos óxidos de azoto. Em estudo estiveram as emissões oriundas de veículos a diesel ligeiros (como carros e carrinhas) e pesados (como camiões e autocarros) de 11 regiões do mundo (China, Índia, 28 países da União Europeia, Brasil, Estados Unidos, Coreia do Sul, Rússia, México, Canadá, Austrália e Japão).

Ao todo, em 2015 os veículos a diesel lançaram para o ar 13,1 milhões de toneladas de NOx (o que corresponde a cerca de 20% das emissões destes gases provocadas pelos seres humanos). Deste total, mais 4,6 milhões de toneladas foram emitidas fora dos limites legais, que os investigadores consideram como “emissões em excesso”. Das 11 regiões, apenas cinco produziram cerca de 90% das emissões (o Brasil, a China, a União Europeia, a Índia e os Estados Unidos). Quanto aos veículos, os ligeiros emitiram 2,3 vezes mais de NOx do que é permitido pelos regulamentos e os pesados produziram cerca de 1,45 mais.

“As emissões de NOx em excesso provocadas pelo diesel são todas as emissões resultantes de condições reais de condução que ultrapassam os limites das certificações”, explica-nos Susan Anenberg, investigadora na empresa consultora norte-americana Análises ao Ambiente e Saúde, e a principal autora do trabalho, que também conta com outros investigadores dos Estados Unidos e da Áustria. “As emissões em excesso podem resultar de muitas razões, incluindo a má calibração no motor, falhas no equipamento, manutenção desadequada, manipulação pelos proprietários dos veículos, uso deliberado de dispositivos manipuladores, ou simplesmente uma certificação insuficiente nos procedimentos de teste.”

Para estimar os danos na saúde devido à exposição prolongada a estes poluentes, a equipa usou estudos que reportaram as emissões de veículos em vários países. Depois, juntou a isso dados sobre o número de veículos em circulação, observações de satélite e aplicou modelos atmosféricos, climáticos e modelos de saúde.

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Assim, conclui-se que, em 2015, houve quase 38 mil mortes prematuras por excesso de NOx em cerca de 107.600 mortes devido a estes poluentes. Sublinhe-se que, mesmo que os valores-limite impostos pela legislação dos vários países, a poluição do ar provocada pelos NOx lançados pelos automóveis a gasóleo foi responsável pela maior parte das mortes prematuras: cerca de 70 mil. As quase 38 mil mortes são as que seriam evitáveis se os regulamentos tivessem sido cumpridos.

A União Europeia aparece em segundo lugar na tabela (depois da China), com um total de quase 28.500 mortes, mais de 11 mil das quais por emissões em excesso. Os veículos ligeiros foram assim responsáveis por seis mortes em dez. Na Europa, a Volkswagen distribuiu 8,5 milhões de carros com o software de manipulação das emissões, entre os 11 milhões em todo o mundo.

Estudo “pertinente”

“Até agora, nunca tinha sido feita uma avaliação que pegasse nos excessos de emissões, quer dos veículos pesados quer dos veículos ligeiros, à escala mundial em 11 regiões e que depois avaliasse inclusivamente os impactos na saúde”, sublinha ao PÚBLICO Francisco Ferreira, presidente da Associação Zero e professor no Centro de Investigação, Ambiente e Sustentabilidade da Universidade Nova de Lisboa. Aliás, Francisco Ferreira soube antecipadamente destes resultados durante uma reunião da Convenção sobre a Poluição Atmosférica Transfronteiriça a Longa Distância, realizada no início de Maio em Paris, onde Susan Anenberg os foi apresentar. “Este artigo é particularmente importante porque faz a avaliação dos impactos daquilo que ficámos a conhecer como ‘dieselgate’ à escala mundial. A pertinência deste artigo começa com o escândalo da Volkswagen. Tudo isto foi desencadeado por aí.”

O artigo científico menciona logo o escândalo da Volkswagen no início: “O problema do excesso de NOx nos veículos a diesel ganhou importância pública com a descoberta de cerca de 11 milhões veículos ligeiros da Volkswagen nos EUA e na Europa e noutras partes do mundo que continham um dispositivo de manipulação, ou seja é, software que detecta quando o carro está a ser submetido a testes de emissões e activa equipamento de controlo das emissões.”

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Testes às emissões de poluentes na universidade onde o escândalo foi descoberto Universidade da Virginia Ocidental/Reuters

Ao detectar que estavam a ser realizados testes, o software da Volkswagen comandava a injecção de ureia, explica Francisco Ferreira. E a ureia, ao reagir com os NOx, reduzia as suas emissões. Só que em condições de condução real na estrada isso já não acontecia. E se o escândalo foi em larga escala na Volkswagen, este fabricante de automóveis não foi o único a manipular o software, acrescenta Francisco Ferreira: “Entre as emissões reais e as emissões testadas, em todas as empresas, numas mais do que noutras, verificaram-se essas diferenças.”

Prudente, Susan Anenberg não quer atribuir directamente a causa das quase 38 mil mortes ao escândalo da Volkswagen, como respondeu ao PÚBLICO: “Não significa que os dispositivos manipulados pela Volkswagen sejam responsáveis por todas as 38 mil mortes.” E aponta falhas na manutenção e na calibração dos veículos como outras causas para o excesso de emissões. Mas num comunicado do International Council on Clean Transportation, organização ambiental dos Estados Unidos, que participou no estudo, Susan Anenberg qualifica os efeitos na saúde do "dieselgate": "As consequências do excesso de emissões de NOx do diesel para a saúde pública são impressionantes."