O trabalho do medo
Se há domínio onde é possível o medo estar presente, esse é o domínio do trabalho.
— “Como é que alguém se assegura do seu poder perante alguém?”
Winston reflecte e responde: “Fazendo-o sofrer.”
— “Exactamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta.”
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— “Como é que alguém se assegura do seu poder perante alguém?”
Winston reflecte e responde: “Fazendo-o sofrer.”
— “Exactamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta.”
Este excerto é do livro 1984, publicado em 1949 por George Orwell, o qual, ultimamente, por várias razões, tem-se tornado cada vez mais actual. Quanto a este excerto, a sua actualidade, se bem que não sendo só de agora, decorre também do ambiente que se vive em não poucos locais de trabalho. Um ambiente de algum modo de sofrimento, porque um ambiente de medo.
Sendo mais concreto, vem também isto a propósito uma entrevista televisiva dada, há uns anos atrás, por um ex-presidente da CIP – Confederação Empresarial de Portugal, organização que congrega a maior parte das associações patronais portuguesas. O tema circunstancialmente em discussão nessa entrevista televisiva eram as possibilidades e dificuldades dos modelos e práticas de gestão das e nas empresas.
Depois de citar um pensamento atribuído a Keynes (“O mau é útil, o justo não é”), aquele ex-líder da CIP concluía: “É preciso uma certa violência para se ser competitivo.” “Muitas vezes, é preciso ser mau.”
“Ser mau”, meter medo, é um dos referenciais de modelos e práticas de gestão que ainda prepondera em algumas empresas e não só. Um ambiente em regra pouco visível, em geral não declarado, mudo (e, eventualmente, até negado por parte de quem o sente), mas que, mais crítico ou mais latente, perdura mais declarada ou mais dissimuladamente (não obstante as declarações de “visão” e de “missão” da empresa que, camuflando isso, possamos ver em outdoors no hall de entrada) na “caixa negra” de não poucas empresas e outras organizações empregadoras (inclusive na administração pública, central e local)
De facto, por mais paradoxal que tal possa parecer dada a sua centralidade e determinância social, se há domínio onde é possível o medo estar presente, esse é o domínio do trabalho. Há medo no trabalho quando, nos locais onde é realizado, o trabalho (designadamente, as circunstâncias e contextos de execução, as características das operações necessárias e os materiais, substâncias e equipamentos utilizados) implica riscos para a saúde, para a integridade física e, até, para a vida das pessoas.
Há medo do trabalho quando, por deficiente ou insuficiente integração profissional, informação, formação, meios, orientação ou apoio técnico ou organizacional ou social, as pessoas têm que se “desenrascar” perante as tarefas que lhes são exigidas, quando se vêem impotentes perante o esforço (físico, mental ou relacional) que lhes é preciso para satisfazerem os objectivos de produtividade, “polivalência”, “flexibilidade“ que lhes são fixados, quando se sentem perto do esgotamento para continuarem a suportar (“aguentar”) a sobre-intensificação do ritmo de trabalho, o excesso de duração ou a instabilidade de organização dos tempos de trabalho.
Há também medo do e no trabalho quando, nos locais de trabalho, as pessoas são socialmente isoladas, mentalmente pressionadas, sujeitas a violência psicológica, ao assédio moral, à prepotência, à desconsideração, à humilhação, à indignificação profissional e pessoal.
Depois, em tempos de fragilização dos trabalhadores nas relações laborais (pela generalizada precarização e individualização do emprego e facilitação dos despedimentos, inclusive pelo embaratecimento das respectivas indemnizações legais) e de salários baixos, qualquer um destes “tipos” de medo é potenciado por um outro medo que, perante a necessidade premente de sustento próprio e familiar (muitas vezes acentuada por compromissos de solvência de créditos de consumo assumidos) continua (ainda) muito presente: o medo do desemprego, o medo de ficar sem trabalho.
Mas o que torna ainda mais perversamente pertinente neste domínio a citação de George Orwell com que se inicia este texto é que esse sentimento de medo(s) que “paira no ar” em muitos locais de trabalho, sendo de algum modo um factor de sofrimento para quem trabalha, é, ao mesmo tempo, não raras vezes entendido (e praticado) como um instrumento de poder e de (mais) submissão (e não já só subordinação), um instrumento da gestão, um instrumento patronal para ser obtido mais trabalho, um instrumento gestionário de (mais) “produtividade”, de (mais) “competitividade”.
É suposto que, na maioria das empresas e outras organizações empregadoras, seja no adequado recrutamento, selecção, integração e formação, na qualificação profissional e nas condições de trabalho, no cumprimento da lei, na inovação tecnológica e no desenvolvimento organizacional visando a produtividade e qualidade da produção (produtos e/ou serviços), baseada na qualidade do emprego, que assentam os modelos, métodos e processos de gestão aí praticados. Modelos, processos e práticas de gestão que, afinal, reconhecem e provam que para integrar, orientar, responsabilizar, disciplinar, organizar, enfim, gerir, não é preciso (e muito menos devido) “ser mau”, meter ou alimentar medo(s).
Nada que não deva ser exigível ser regra, num tempo em que, em todo o mundo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem como principal referência de missão e de acção o conceito de “trabalho digno” (decent work).
Contudo, empresas e outras organizações empregadoras (ainda) há em que esses referenciais de gestão, de cultura empresarial e de responsabilidade social das organizações são substituídas (ou, pelo menos, complementadas) pelo recurso à submissão dos outros, ao “se te portas mal, levas“, a um entendimento degenerado do tal “ser mau” a que aludia o Sr. ex-presidente da CIP na referida entrevista televisiva. Enfim, à gestão pelo medo.
Surge então, do que precede, uma chocante e perversa contradição humana e social (e até económica) no âmbito da organização e gestão das empresas e outras organizações empregadoras, particularmente no domínio das relações e condições de trabalho.
É que, nestas circunstâncias, (já) não é possível garantir qualquer dignidade ao trabalho e a quem trabalha, porque já não é só o trabalho a produzir (o) medo mas, ainda mais perversamente, o medo a produzir (o) trabalho. O trabalho do medo.