Fátima, contextos e história(s) (I)
No debate sobre a natureza e o significado da "mensagem de Fátima" há quem tenha convicções (ia dizer "fé") muito claras. Para muitos outros católicos, contudo, Fátima está muito para lá da literalidade dos seus três "segredos".
"O que aconteceu em Fátima é muito simples. Nossa Senhora apareceu aos três pastorinhos. Foi isto que aconteceu. Vem dizer-se que foi uma invenção deles... não, não tinham como inventar uma coisa assim. (...) Viram, ouviram Nossa Senhora, ficaram com as suas palavras, viveram-nas em profundidade e foram santos." (D. José Saraiva Martins, Jornal i, 11.5.2017)
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
"O que aconteceu em Fátima é muito simples. Nossa Senhora apareceu aos três pastorinhos. Foi isto que aconteceu. Vem dizer-se que foi uma invenção deles... não, não tinham como inventar uma coisa assim. (...) Viram, ouviram Nossa Senhora, ficaram com as suas palavras, viveram-nas em profundidade e foram santos." (D. José Saraiva Martins, Jornal i, 11.5.2017)
No debate sobre a natureza e o significado da "mensagem de Fátima" há quem tenha convicções (ia dizer "fé") muito claras. Para muitos outros católicos, contudo, Fátima está muito para lá da literalidade dos seus três "segredos". É provável. O que não se pode, contudo, é pretender que os documentos sobre os quais se sustenta a "mensagem" não têm valor intrinsecamente histórico e material e, por isso, não devam ser sujeitos à análise contextual. Sobretudo porque desde a narrativa dos pastorinhos em 1917, centrada na oração para conseguir o fim da guerra, até à cristalização dos três "segredos de Fátima", em 1941 e 1944, não só mediaram 24 anos como se desenvolveu um processo de apropriação eclesiástica e de reciclagem narrativa que permitiu transformar Fátima, "a mais profética das aparições modernas" segundo o cardeal Tarcisio Bertone, numa arma política de que a Igreja nunca prescindiu até, pelo menos, o fim do papado de João Paulo II.
Em maio de 1917, Portugal estava em guerra havia um ano. Desde 1914 enviara já milhares de soldados para África. Num contexto em que a pobreza extrema deixava uma grande parte dos portugueses no limiar da sobrevivência, o envio de soldados para África e a Flandres, o racionamento, agravaram a angústia social. Quando, na Cova da Iria, Lúcia de Jesus dos Santos, dez anos, juntamente com dois primos seus, diz ter visto a Virgem, não faz mais do que reproduzir o que passara a caracterizar a religiosidade católica das décadas anteriores, cheia de aparições marianas, mais frequentes desde, precisamente, 1916 (ver estudos de David Luna de Carvalho). Quatro anos depois, Lúcia, com 14 anos, é internada num colégio. Entre 1925 e 1946 vive clausurada em conventos de Pontevedra e de Tui, na Galiza, onde, entre muros, passa a Guerra de Espanha (1936-39). Os seus primos Jacinta e Francisco haviam morrido três anos antes. Ela é a única sobrevivente das "aparições". É aí que, “em ato de obediência" a "sua Ex.cia Rev.ma o Senhor Bispo de Leiria e a Vossa e minha Santíssima Mãe”, Lúcia descreve em 1941 "o segredo" de Fátima, que "consta de três coisas distintas, duas das quais vou revelar."
No relato que faz das "aparições", a Virgem teria feito com que os três primos começassem por "[ver] o inferno", afinal o primeiro "segredo", na sequência do qual a Virgem lhes teria dito que, "se fizerem o que eu disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz (...) mas, se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior." Vejamos: a II Guerra Mundial começara dois anos antes, e Lúcia presume, portanto, que a Virgem dela a teria avisado em 1917. Contudo, o Papa que refere é Pio XI, que o não seria senão em 1922, cinco anos depois das "aparições", e que morreria em 1939, sete meses antes de a nova guerra mundial ser desencadeada.
O "2º segredo" seria, nas palavras da Virgem, o do surgimento de um "grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração (...). Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz, se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja, os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz" (transcrição na página online da Congregação para a Doutrina da Fé).
Referências à Rússia e ao comunismo haviam sido introduzidas já a partir de 1935 nas Memórias da Irmã Lúcia. A Guerra de Espanha havia consagrado uma associação permanente entre Fátima e anticomunismo, mas a novidade na redação do "2º segredo" é o facto de o Bispo de Leiria lha ter pedido a 26 de julho de 1941, rigorosamente ao fim de um mês da invasão nazi da União Soviética.
Da mesma forma, o "3.º segredo" parece produto claro da perceção do mundo que Lúcia tem em 1944, no momento em que o descreveu.
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico