O artesanato de hoje com as técnicas de há 100 anos

Se há cem anos andássemos por estas regiões à volta de Fátima, percorrendo serras, aldeias ou cidades, encontraríamos oleiros, latoeiros, tecelões... Fomos à procura deles.

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Mil novecentos e dezassete, o ano do “milagre de Fátima”. Entramos em qualquer casa e facilmente encontramos tecedeiras a urdir teias, oleiros a moldar barro, latoeiros a dobrar a chapa, canteiros a recortar pedra, mulheres e homens a fazer cestos. Dois mil e dezassete: o tempo passou por aqui. As pessoas ocupam-se de tarefas que há um século não seriam imagináveis. Excepto...

Vitória. O pai era “o Tóino da Vitória”, o nome da avó; ela ficou com Vitória agarrado a Esperança, a sobrinha chama-se Vitória também. “Há uma linhagem de Vitórias”, por isso, que outro nome se daria à sua marca? Modernizou e acrescentou um “c”. Nas etiquetas dos produtos lê-se “Victória” e “hand made” em letras mais pequenas.

Quando se entra na sua oficina em Porto de Mós, a dar para a estrada, há um tear gigantesco a ocupar a maior parte do espaço. As cestas de junco são todas feitos aqui. A máquina de costura que está a um canto serve apenas para os acessórios. “O meu pai aprendeu quando era miúdo. Eu aprendi com ele, a minha irmã e a minha mãe também. Durante uma série de anos todos trabalhávamos nisto”.

Vitória, Esperança Vitória, tem agora 41 anos mas nem sabe que idade tinha quando começou a tecer. Subia para cima de um tijolo para conseguir chegar ao tear e lá ficava num dos cantos. “Sempre soube fazer. As minhas férias da escola eram a fazer”. Com a irmã, Carla, aconteceu o mesmo — “acho que já nasci num tear”.

Vitória tem as mãos da cor do trabalho que está a elaborar, ora avermelhadas, ora esverdeadas, e um calo bem no meio da palma da mão que vem de miúda, “por causa do pente”. Tem outros mais pequenos em vários dedos. Mas não os trocava por nada. Acredita que é a única mulher em Portugal a pôr as asas de vime nas cestas (apesar de, nesta zona, se usarem as de junco), porque é um trabalho que exige muita força de pulso.

Se antes era “cada casa, cada tear”, nos anos 1990, com o aparecimento das fábricas de loiça e moldes a ocuparem a população, o objecto começou a tornar-se uma raridade. “Em Porto de Mós só há uma meia dúzia a fazer... O trabalho é muito árduo. O que manteve isto vivo foi servir de complemento de reforma das senhoras velhotas”. A própria Vitória esteve alguns anos afastada das cestas, a trabalhar num lar de idosos. Regressou com um “empurrão” do marido, Paulo Jerónimo, para continuar a tarefa.

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O que manteve isto vivo foi servir de complemento de reforma das senhoras velhotas Esperança Vitória

“O meu pai era exigente. As suas cestas eram conhecidas como as mais bem feitas da aldeia. Ele dizia que reconhecia uma cesta sua em qualquer sítio!” A filha não quer fazer pior, mas não as faz exactamente iguais. “Pegámos na cesta tradicional e tirámos do contexto rural para lhe dar um contexto mais urbano”. Aos seus conhecimentos do tear acrescentou os conhecimentos de alguém que sabe trabalhar o couro, e as cestas têm agora alças e fivelas. “As pessoas começaram a perceber que tinham de recuperar algumas tradições, mas com novidades”.

Aqui na oficina trabalha quase a família inteira, incluindo a filha que quer ser designer e trata dos catálogos e do site; incluindo Vitória, a sobrinha, que está num curso técnico de serviços jurídicos, mas o que quer mesmo é ficar a tecer com a tia e a mãe. “Aqui com a família vai melhor”, diz, enquanto tira a espiga ao junco seco. Começou com os cantos das cestas, e se calhar no Verão já conseguirá “fazer qualquer coisinha”.

Produzem cerca de 250 peças por mês — na véspera da nossa visita tinham enviado 50 cestas para Madrid; no próprio dia estavam a começar a dar resposta a uma encomenda de 30 para a Coreia do Sul (também as vendem para a Austrália, Brasil e vários países da Europa). “O nosso problema é o stock: há pouco. Vamos tentando dar resposta”. Não é fácil, já que cada uma leva, em média, oito horas de trabalho, desde o corte do junco (na ria de Aveiro) até ao acabamento final — e são eles que tomam conta de toda a cadeia, do início ao fim. Vamos por partes, explicadas entre Vitória e o marido:

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Primeiro apanha-se o junco, em terrenos alagadiços (a campanha vai de finais de Maio a Julho). Depois, aproveitando o Verão, seca-se ao ar livre, espalhando-o em terrenos planos, durante duas ou três semanas. Fica armazenado em molhos, “cada molho é a braçada de um homem — uns 60 centímetros de diâmetro”. Estes são por sua vez separados em “mãos”, uns molhos mais pequeninos, e as “mãos” são levadas para uma arca a enxofrar, onde ganham o tom de pedra, “porque o gás libertado pelo enxofre a arder aclara o junco”. De seguida, escolhem-se as palhas por tons: “as escuras serão tingidas numa tina com água a ferver e anilinas, as tintas em pó que já o meu pai usava”. Quando estão secas já podem ir para o tear. “Este tem oito metros de esteira”, e dá para ter três pessoas a trabalhar ao mesmo tempo.

Na aldeia de Castanheira, a 12 quilómetros daqui, de onde é a família, “há uma grande tradição de cestaria. Cada família dedicava-se a uma das etapas. Havia o comerciante que vendia o junco pelas pessoas que tinham teares e depois vendia-lhes as cestas nas feiras. O meu pai saiu da rede porque fazia o processo todo”.

Tradicionalmente, há quatro cores vulgares — vermelho, verde, violeta e amarelo. “São as quatro cores com que o meu pai trabalhou sempre”. Elas aqui estão, nos cestos Victória. Também há padrões tradicionais que são utilizados, mas uma coisa tão simples como usar o padrão em toda a cesta, em vez de lhe deixar um espaço vazio no fundo como se fazia antes, pode mudar tudo.

Vitória explica onde está a fonte da inspiração: “É o leque de memórias que temos e a criatividade a trabalhar — dão possibilidades infinitas”. As cestas mais tradicionais são as que recebem mais “likes” no Facebook — “é a nostalgia”. Mas as que se vendem mais são “as mais contemporâneas”. “Eu própria não me vejo a usar a cesta tradicional”.

Para inglês ver?

Há amadores que sabem tanto ou mais do que profissionais. José Travaços Santos é muito mais do que um etnógrafo amador e até tem alguns livros publicados. Está certo que não estudou na faculdade e a sua profissão era dar apoio aos reclusos nas prisões, como técnico de orientação escolar e social. Mas perguntem-lhe o que quer que seja sobre o artesanato regional que logo se revela um saber enciclopédico alimentado ao longo de 86 anos.

Não é sem algum pesar que Travaços Santos afirma: “O artesanato hoje deixou de ser utilitário: aquelas peças que se faziam para utilidade das pessoas, nas casas, deixaram de ser feitas. As pessoas agora têm outros hábitos... Hoje fabrica-se para inglês ver, com efeitos turísticos”. Uma perda de tempo? Não. “Tem interesse na mesma, porque corresponde a uma forma de cultura do nosso povo. Porque é que utilizavam aqueles materiais? Porque eram feitos com aquelas formas? Há com certeza influência de outras civilizações, temos muitas coisas que herdámos dos romanos, dos árabes...”, adianta Travaços no pátio da Casa da Madalena, uma casa-museu criada pelo Rancho Folclórico Rosas do Lena, em Rebolaria (a poucos quilómetros da Batalha), onde se pode ficar a saber como era a vida no início do século passado.

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O artesanato hoje deixou de ser utilitário: aquelas peças que se faziam para utilidade das pessoas, nas casas, deixaram de ser feitas José Travaços Santos

A zona tem “artesanato específico”, como o bracejo, típico da freguesia da Ilha (Pombal), e que segundo alguns documentos começou por ser usado em cofos e alcofas de duas asas. Foi nos anos 1930 que estas fibras vegetais começaram a ser usadas noutros objectos, como capachos. Há casos de práticas mesmo já enterradas, como aconteceu com os trabalhos em azeviche, “um carvão mineral, muito negro e luzidio — diz-se ‘é negro de azeviche’, vem daí”. Fazia-se com ele objectos de adorno — colares, anéis, pulseiras, brincos, as contas dos rosários e dos terços — que as mulheres usavam para substituir o ouro durante o luto. “Normalmente pessoas de posses, porque não seria muito barato”, adianta Travaços Santos. “No princípio do século XIX, os ferreiros começaram a utilizar o azeviche nas forjas e desapareceu por completo”.

O trabalho de cantaria que esteve envolvido na construção do mosteiro da Batalha também trouxe a tradição à região, que chegou a estar cheia de canteiros. “Os antigos canteiros serviam-se das peças em calcário, a mesma do mosteiro, para ganhar mais algum dinheiro e começavam a vender a quem visitava a Batalha”, afirma.

Mas quando recentemente foi preciso restaurar a cerca de pedra, com as suas flores-de-lis bem recortadas, praticamente não havia a quem recorrer. Não fosse António Moreira e a sua empresa Gárgula Gótica seria realmente difícil dar conta da empreitada. “Dentro do mosteiro havia uma escola de cantaria que fechou, há três anos. Era a única em Portugal onde se aprendia a arte da cantaria. Os canteiros estão em vias de extinção”, diz António Moreira, que aos 44 anos se pode orgulhar de ser um dos poucos canteiros sobreviventes. À conta disso, é chamado para dar formação no Brasil, Cabo-Verde, República Dominicana...

“O que fazemos é a parte técnica da cantaria; a parte artística é do escultor”, explica. “Nós reproduzimos em pedra. Não fizemos estudos de anatomia, como fizeram os escultores”. Neste momento, está a restaurar o Senhor do Padrão de Matosinhos, com os seus quatro apóstolos (São Marcos, São Mateus, São Lucas e São João). “As peças estavam danificadas e estamos a fazer novas”.

Primeiro, faz-se um modelo à escala em barro, depois em gesso e só então se passa para a pedra. “Usamos uma máquina exactamente igual à que usava Michelangelo”, no século XVI. Tem uma cruzeta em madeira com um ponteiro que assinala no modelo os pontos chave, e quando a máquina é transferida para o bloco de pedra, o ponteiro indica exactamente onde se deve esculpir e que quantidade de pedra retirar. Caixas, armários, cabos de electricidade, o rádio, os cabelos do trabalhador que está à volta do apóstolo — tudo está totalmente coberto de um pó branco fininho.

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Dentro do mosteiro havia uma escola de cantaria que fechou, há três anos. Era a única em Portugal onde se aprendia a arte da cantaria. Os canteiros estão em vias de extinção António Moreira

Vivem aqui a tempo inteiro São Pedro, Nuno Álvares, Infante D. Henrique, o Sagrado Coração de Jesus, ou uma caveira gigantesca (os moldes em gesso, porque os originais foram entregues aos clientes). Está também o molde do gato de três metros feito em mármore pele de tigre, de Vila Viçosa, que foi encomendado pelos designers americanos Haas Brothers e que foi parar a casa do actor Leonardo DiCaprio. “Querem peças totalmente feitas à mão. Esse é o critério”.

Outra espécie em vias de extinção: os latoeiros. José Marques, de 73 anos, está à volta de duas grandes latas para resina, de 40 litros cada, quando entramos na sua oficina, na Batalha. Rapidamente larga tudo para ir buscar baldes e baldinhos, candeias de vários tamanhos (“faço meia dúzia de uma vez porque não paga fazer só um”), uma enxofradeira (“para as primeiras parras da uva”), um funil, pás, um mata-frangos... “É o que o artista faz”, diz orgulhoso.

O artista dedicou uma vida inteira a isto. “Fiz a quarta classe — é o que era naquela altura — e depois fui trabalhar”. Aprendeu tudo com um único mestre, Joaquim Félix. Agora, não tem a quem passar. “Tenho tido aí malta, mas estão por pouco tempo. Mal se cortam nos dedos e aparece sangue põem-se a cavar. Tudo quer trabalhar mas é com botões”. Mostra a unha negra de uma martelada recente para provar que as dores não se vão todas com a experiência. “O pessoal hoje não quer grandes responsabilidades. Rapazes que andaram em serralheiros chegam cá e nem sabem soldar estanho”.

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Tenho tido aí malta, mas estão por pouco tempo. Mal se cortam nos dedos e aparece sangue põem-se a cavar. Tudo quer trabalhar mas é com botões José Marques

Costuma comprar a chapa zincada nas Caldas da Rainha — “antes era a folha de Flandres, mais branca, mas despareceu quando entrou o inox no mercado e agora só se encontra para caixas de atum”. De resto, as mudanças foram poucas. As duas bigornas e as várias ferramentas que aqui vemos poderiam estar no mesmo lugar se entrássemos nesta oficina de beira de estrada quando José Marques era ainda um rapaz novo. “Está tudo igual, tudo manual. Aqui não há cá máquinas eléctricas”.

Os seus clientes são sobretudo os agricultores da zona. Desistiu de ir ao mercado da Batalha, como fazia às segundas-feiras, e aos de Porto de Mós e Maceira. Não compensa. Ainda que seja o único latoeiro do distrito.

Um trabalho solitário

“Havia muitas olarias e praticamente desapareceram todas”, adianta José Travaços Santos. “Também havia muita cestaria. Agora há umas curiosidades espalhadas pela região”. De produto popular, o artesanato “passou a ser um artigo de luxo. Hoje é vendido a preços muito razoáveis — não digo elevados, digo razoáveis, porque as pessoas que trabalham merecem receber isso.” Para Travaços, há um obstáculo para além do preço: “As pessoas querem ser todas modernas: ‘ter uma coisa dessas em casa, não’. Muita coisa se tem estragado e deixado de usar por causa disso.”

Moderno ou antigo? Quando entramos no atelier de Marisa Almeida, em Leiria, ficamos sem saber.

O tear é aquele que estava em casa de uma tia, com décadas de trabalho em cima. Mas o que usa para passar entre a trama já é toda uma outra história. Há fitas de todas as cores penduradas na parede, quase como se fossem cortinas. São restos de plásticos que já não são usados e que vão substituir o fio. No final, saem bolsas, carteiras ou mochilas que parecem feitas de um tecido fino, quase seda.

“A matéria-prima não é nobre, mas todo o processo é muito lento”, afirma Marisa Almeida. “São dois dias para montar o tear, e no caso da mochila mais um dia e meio” para a tecer. E aqui já não está a contabilizar o tempo que leva a transformar um saco de um hipermercado, por exemplo, num conjunto de tirinhas, todas do mesmo tamanho.

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Para fazer isto, tinha de ser uma coisa diferente e por isso escolhi a reciclagem de plástico Marisa Almeida

Marisa Almeida estudou comunicação empresarial e estava sem trabalho. Em casa da tia, na aldeia de Reguengo do Fetal, havia este tear com mais de 100 anos. “Não sabia trabalhar nele, mas experimentei. Só que depois a teia acabou e era preciso montar outra. Uma senhora da aldeia ensinou-me não só a montar a teia como a fazer desenhos”. E a partir daqui, foi pensar em formas de reduzir o desperdício. Para além dos sacos, também já usou borracha de tapetes de carros, ou restos de tecidos. “É só uma questão de cortar”.

Há uma estrutura de madeira na parede para urdir a teia, que depois vai para o tear em forma de trança, para garantir que os fios não se embaraçam; e um a um, os fios são passados pelo pente. “A minha mãe vem ajudar a montar, porque é sempre preciso alguém para esticar os fios do outro lado”. Depois, é começar a passar as fitas de plástico de um lado para o outro. Gosta de forrar as bolsas com capulanas, “por causa da versatilidade das cores”. São objectos cuidados que resultam de horas e horas de trabalho.

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“Para fazer isto, tinha de ser uma coisa diferente e por isso escolhi a reciclagem de plástico”, diz. Criou depois a sua própria marca — Maria Descalça — e podemos encontrá-la na Organii Concept Store, no Lx Factory, ou no Hotel Oitavos, em Cascais. “Em Lisboa, as pessoas valorizam mais o trabalho. Aqui nem tanto”. E por isso o preço final “é sempre problemático”.

“Mas todas as peças são únicas”, afirma. “As pessoas gostam dessa exclusividade. Só que para crescer, é preciso encontrar alguém e dar-lhe formação, e para já não tenho essa disponibilidade.” Apesar de ser uma tradição regional, pouca gente sabe fazer. “As pessoas mais velhas já só fazem como hobby, ou para os netos”. Ou seja, este é para já “um trabalho muito solitário. Por isso tenho sempre música a tocar!”

Também há música quando entramos no atelier de José Siphioni: Miles Davis. Para chegar a Alvados, entre Mira de Aire e Candeeiros, segue-se pela estrada paralela à linha da serra, com carvalhos e azinheiras em abundância. Em baixo o vale, onde fica a aldeia. Estamos aqui porque a técnica que Siphioni usa para cozer as suas peças de barro não tem 100 anos, tem 1000. O raku vem do Oriente, mas “é o oposto daquela cerâmica oriental delicada. Esta é mais tosca”.

Tal como muita gente da região, José Siphioni, com 32 anos, achou que iria viver dos têxteis. Era programador das máquinas que fabricam camisolas, numa das muitas fábricas de Mira de Aire.

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Vivo disto a tempo inteiro. Mas não é para enriquecer, é para ter um estilo de vida José Siphioni

Recuamos novamente a 1917. O historiador José Manuel Poças conta que nessa altura as pequenas aldeias viviam da produção agrícola, e “mantinham uma relação muito forte com Minde e Mira de Aire, que eram centros de produção de mantas” e outros lanifícios. Era às aldeias que iam buscar as lãs . Na década de 1930, os filhos desses agricultores começaram a deixar as suas casas — e terras — para ir trabalhar para as fábricas de lanifícios que se começavam a desenvolver. “Houve um decréscimo da produção artesanal”, sobretudo a relacionada com o trabalho agrícola. Para além disso, “começou também a desenvolver-se Fátima”, atraindo pessoas que pela primeira vez se dedicavam ao comércio (e aumentando a produção de artesanato religioso).

Actualmente, as fábricas de lãs são já quase todas apenas esqueletos — foram sobretudo substituídas pelas dos moldes, que agora ocupam uma boa parte da população da região. Sem trabalho, Siphioni teve de começar a procurar alternativas. “Fui aprender isto por acidente”, afirma. “Isto” é a moldar o barro. Faz cerâmica artesanal — desde pequenas peças sobre personalidades da história de Portugal (que incluem reis, músicos, escritores — “o que eu mais gosto de fazer é o Saramago: dizia o que pensava e pensava no que dizia”), a figuras que juntam barro e lã, ou serviços de chá.

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Não lhe faltam clientes, espalhados por várias zonas do país. “Queria trabalhar perto da natureza, sem estar num espaço fechado”, conta Siphioni. “Vivo disto a tempo inteiro. Mas não é para enriquecer, é para ter um estilo de vida”.

Siphioni começa por colocar água no ambientador que ele próprio fez: um pote em grés que tem no fundo um pouco de alfazema, apanhada aqui na serra. Depois, liga a roda. Sentamo-nos com um pedaço de barro nas mãos — como Siphioni organiza workshops, qualquer um pode tentar. Ao fim de muitas instruções para amassar, centrar e tornear, lá conseguimos formar uma pequena taça. “A roda requer muito treino, sobretudo a parte de centrar”, afirma.

Quando estão secas, as peças são vidradas. “Antigamente, utilizavam sílica bruta que era moída, sobretudo na zona de Porto de Mós. Muitos alguidares e gamelas eram feitos em casa, para uso doméstico. Toda a gente sabia desenrascar”, conta. Junta-se água ao vidro em pó, mistura-se e fica um vidrado esbranquiçado. “Se se quiser cor, acrescenta-se óxidos de metais, como a ferrugem ou o cobre, que pode dar azuis, verdes, vermelhos. O oxigénio é que vai depois alterar as cores — isto no raku, porque no [forno] eléctrico é tudo homogéneo”.

Está na hora de explicar: o raku é um cubo feito em fibra de cerâmica, com uma grade à volta e sem uma das faces. Será este o lado que assenta em tijolos refractários (para aguentar os seus 1000 graus). Introduzem-se as peças na base e acende-se o maçarico, ligado a uma botija de gás. “Este [serviço de bule e chávenas] só vai a 900 graus porque este vidro borbulha um bocadinho. À noite é mais giro porque a fibra de cerâmica fica incandescente”.

Ao fim de meia hora, colocam-se folhas apanhadas aqui mesmo, no jardim e do lado de lá da cerca, dentro de um bidão. Com uma tenaz, retiram-se as peças do forno e põem-se no bidão, tapado. O calor das peças incendeia as folhas e o fumo libertado vai colori-las, entrando onde o vidrado não entrou. Aos poucos vamos observando como mudam de cor.

Há outro método que às vezes usa: o forno de papel, próximo das técnicas usadas no Neolítico. Aproveita-se papel de jornal, barro, madeira e controla-se a temperatura através da entrada e saída de oxigénio (pode atingir os 1200 graus). Também tem um forno eléctrico em casa. Mas esse “não tem alma nenhuma”.

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O forno de papel de Siphioni

“O atazanar das menízias”

Não muito longe dali, em Minde, encontramos Alzira Roque Gameiro, bisneta do pintor, que é também directora do museu que alberga uma vasta colecção de aguarelas. Mas não é para falar de pintura que aqui estamos. Vamos falar de mantas, vamos falar do “atazanar das menízias” (já explicaremos).

O Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro (CAORG) nasceu em 1986 para garantir que o museu sobrevivia em Minde. Como? Envolvendo a população (que agora anda à volta dos três mil habitantes). “Não se faz uma casa sem paredes”, afirma Alzira Roque Gameiro. Neste caso, as paredes são o museu, claro, um conservatório de música, onde os antigos alunos já são professores (“os mindericos gostam muito de música”), uma escola de ballet e um atelier para revigorar as mantas de Minde.

Alzira Roque Gameiro garante que nunca teceu nenhuma, mas sabe exactamente como se faz. Regra de ouro: não se pode ver a trama. Por isso, a manta de Minde tem de ser cardada, para ficar de pêlo levantado. “Pendura-se e carda-se de um lado e do outro. Só quando é muito bem trabalhada é que não é preciso.” Para além disso, há “três coisas fundamentais: coordenação entre pés, braços e cabecinha”.

Só são usadas aqui lãs 100% nacionais, vindas da Guarda. “E mantemos os padrões” — há amostras com 70 e 80 anos expostas na parede com vários deles, não vá alguém esquecer-se. Algumas têm ainda a marca: Necil “manta regional de luxo”, anuncia uma etiqueta. “A fábrica Necil tinha uns 20 teares a funcionar e fechou nos anos 70. Nessa altura, os teares desapareceram de Minde, [ficaram] zero. As lãs eram caras, era uma vida difícil.”

A um canto, está um manequim com uma saia e um corpete feitos para a Exposição de Bruxelas de 1958, onde as peças ganharam uma medalha de prata. A parte de trás do atelier (que tem venda ao público) é praticamente toda ocupada pelos três teares. “Muita gente dizia que não valia a pena as mantas, que estavam ligadas a uma camada baixa da população”. Mas Alzira Roque Gameiro foi para a frente com o projecto e agora as mantas podem ser consideradas um produto de luxo.

“A primeira manta de Minde é a chamada manta preta, que não tem preto, só cores naturais (castanho e branco), sem tintas. Não é possível datá-la porque há poucos documentos escritos. Mas sabemos que há vários séculos, os soldados que vinham de todo o país e ficavam na fortaleza de Almeida tinham direito a uma manta de dois em dois anos. Nos anos 20, 30 do século XX aparece a manta parda, com barras de cor nas pontas, depois as finas, por serem mais trabalhadas e com padrões”, explica. “O padrão é feito segundo o modo de pôr a trama no tear. E nos teares de Minde, a trama é de fio escuro, castanho”.

Que não se diga “fazer uma manta” porque aqui em Minde isso significa fazer-lhe a bainha. Para a fabricar de uma ponta a outra diz-se tecer. E se dissermos “Menízias do Ninhou” estamos a falar de quê? Estamos mesmo a falar de “mantas de Minde”. Há aqui uma variante linguística própria, o minderico. Terá começado a ser usado pelos comerciantes de mantas, que as vendiam em várias partes do país, para poderem discutir os negócios à frente de estranhos sem serem compreendidos. Aos poucos, o minderico foi-se alargando a outros grupos sociais. Alzira Roque Gameiro garante que, se for a Lisboa comprar um vestido com a prima, é certo que lhe perguntará em minderico se ele lhe assenta bem. “Toda a gente sabe. Mas se perguntar a alguém aí na rua se fala, vão dizer que não. Depois, viram costas e começam a falar. Às vezes nem sabem que os termos que usam são minderico. É uma língua intragável, não se percebe nada!”

É assim que à entrada do atelier, por cima da porta, há um letreiro onde lê e entende quem sabe: “atazanar das menízias”, ou seja, tecer mantas. Também poderíamos perguntar “a menízia é cópia?”. Sim, a manta é boa.

 

Chapéus há poucos

“O artesanato é o parente pobre das artes, cá em Portugal. É [considerado] uma arte menor”, afirma Graça Costa. Apesar de tudo, “está a mudar um bocadinho, com a crise do emprego. As pessoas tiveram que se virar para aquilo que sabem fazer ou foram aprendendo”. A conversa decorre numa antiga escola que Graça Costa converteu na Oficina das Artes em Vale da Perra, perto de Ourém.

Esta é também a sua segunda vida. Veio de Maputo para Lisboa em 1971 para se formar em Economia e Tecnologias de Informação. Trabalhou anos a fio na IBM. “Mas aos 57 anos [tem agora 66] decidi reformar-me e disse: ‘É agora!’”

Era tempo de se dedicar às artes que tinham sido a sua vocação de garota, mas que por insistência da mãe não tinha prosseguido. Vivia em Lisboa e juntou-se a um grupo de amigos para “um projecto de velhice: ‘Os filhos têm as suas vidas, não vão ter tempo para nós, vamo-nos juntar, construir um conjunto de casas, partilhar serviços’. Começámos à procura de terrenos. Arranjámos vários. Eu e o meu marido começámos a construir, depois os outros foram mudando de ideias e nós ficámos sozinhos! Agora não partilhamos coisa nenhuma, e tenho os filhos a reclamar que estamos muito longe e que se precisarmos de assistência eles não vão conseguir dar!”

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Não me sinto confortável em estar ao lado de uma banca onde vão comprar as continhas dos chineses, põem num cordão e chamam aquilo artesanato. Não estou para concorrer com isso Graça Costa

Foi em Ourém que aprendeu a tecer. “Apresentei um projecto para fazer formações para adultos e crianças, e a Câmara aceitou. Uma das formações foi a de tecelagem, e fiz.” Agora, ela própria já dá formação, e não só em tecelagem como em feltragem ou cerâmica. “O objectivo [das oficinas] é despertar o interesse nas pessoas e proporcionar-lhes um espaço para poderem trabalhar. É difícil ter espaço em casa para isso: a cerâmica é uma coisa que suja muito e os apartamentos por vezes são pequeninos, [o mesmo com] a pintura, a cestaria.”

No pátio com vista para a serra, onde antes as crianças brincavam nos intervalos, agora há quem aprenda a trabalhar o vime — “há vimieiros lá em baixo que têm de ser podados e as pessoas dão” os restos para os cestos. O workshop que está prestes a começar ao final da tarde é de encadernação. Um encadernador francês morreu e deixou-lhe todo um espólio de peles de cobra para lombadas, a prensa... Graça Costa não esperava o entusiasmo à volta desta actividade. “Vêm pessoas de Lisboa, Figueira da Foz, Coimbra.”

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Apesar de tentar recuperar muito do artesanato que se está a perder na região, e de algum interesse renovado em certos meios, há uma dose grande de desânimo. “Como não se consegue escoar, é difícil vender. Não está bem visto e não há uma entidade que divulgue, que [garanta] protecção”. Conseguir o preço justo também é difícil. “Nas feiras, as pessoas estão à espera de encontrar tudo a preços baratos. Não é possível vender barato porque a matéria prima é cara e o artesão não consegue descontar tudo o que compra.”

Os clientes são sobretudo de fora da região. E “este tem sido o ano do chapéu. A mulher portuguesa decidiu usar chapéu e não tenho tido mãos a medir.” Usa feltro, que apesar de ser “um material muito apreciado pelos estrangeiros, sobretudo os nórdicos”, não era tão popular em Portugal. Também faz bijutaria com cerâmica, pele, prata.

É “selectiva” em relação aos locais onde coloca as suas peças à venda. Em Fátima, só as podemos encontrar no Hotel Santa Maria, “porque me irrita o artesanato em Fátima: aquelas velas e velinhas, santos e santinhos, não se pode! Houve várias lojas a querer os meus artigos, mas chego lá e vejo tudo misturado com as coisas do chinês. E feiras, praticamente não faço — não me sinto confortável em estar ao lado de uma banca onde vão comprar as continhas dos chineses, põem num cordão e chamam aquilo artesanato. Não estou para concorrer com isso.”

CONTACTOS


Gárgula Gótica
Zona Industrial, Lote 17, Batalha
http://gargulagotica.pt/

Maria Descalça
Rua do Comandante João Belo,
?n.º 53, Leiria
mdescalca@gmail.com


Cooperativa dos Cestinhos ?da Ilha/Arte de Bracejo
cooperativacestinhosdailha@gmail.com

Victória Handmade
Rua do Engenheiro Monteiro Conceição, 84, Corredoura, Porto de Mós
http://www.victoriahandmade.pt/


José Siphioni
Casas dos Riscos, Alvados
Tel.: 911 077 547
siphioni.wix.com/cerâmica


Oficina das Artes
Antiga EB de Vale da Perra, Atouguia (Ourém)
Graça Costa


CAORG — Centro Artes e Ofícios Roque Gameiro
Ateliê de Tecelagem — Mantas Mindericas
Tel.: 249 840 022


A Loja do Caminho
Rua de Nossa Senhora do Caminho, 10B, 2440-121 Batalha
Tel.: 963 834 117


Windland Private Guided Tours 

Organiza passeios que incluem visitas a artesãos
Tel.: 965 853 012