À volta de um buraco negro está o teatro em queda livre
O Poço é um passo em frente nas tentativas de Jonathan Uliel Saldanha em atravessar a matéria e desvendar o intangível. Objecto híbrido entre a física, o som e o gesto - sábado, Rivoli, Porto, na recta final do Festival DDD – Dias da Dança.
Aqui nada está no lugar onde supostamente deveria estar. Em vez do palco há um buraco negro de sete metros de diâmetro com três toneladas de raspas de borracha em seu redor. O público fica lá em cima, em varandas, nas zonas técnicas do teatro. O som está por todo o lado, numa polifonia em queda livre impossível de localizar – está tudo a cair à nossa volta, mas nada é visível, nada é tangível. Os performers funcionam como vestígios da presença humana, incapazes de dominar a acção, de controlar o rumo da história – até porque aqui não há qualquer tipo história.
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Aqui nada está no lugar onde supostamente deveria estar. Em vez do palco há um buraco negro de sete metros de diâmetro com três toneladas de raspas de borracha em seu redor. O público fica lá em cima, em varandas, nas zonas técnicas do teatro. O som está por todo o lado, numa polifonia em queda livre impossível de localizar – está tudo a cair à nossa volta, mas nada é visível, nada é tangível. Os performers funcionam como vestígios da presença humana, incapazes de dominar a acção, de controlar o rumo da história – até porque aqui não há qualquer tipo história.
“Esta peça foi pensada como uma máquina vertical de exumação acústica, uma paisagem em constante movimento e ressonância. Não tento contar histórias, tento montar sistemas e mecanismos a que as pessoas depois acedem de formas distintas”, introduz o músico e criador portuense Jonathan Uliel Saldanha, ideólogo de O Poço, objecto híbrido de difícil classificação que tem tudo para ser o capítulo mais sui generis e menos consensual da segunda edição do DDD – Dias da Dança, numa apresentação em primeira mão no Teatro Municipal Rivoli - este sábado, na recta final do festival.
Há muito que Jonathan tira as coisas do lugar onde elas supostamente deveriam estar. “Desde há vários anos que desenvolvo um interesse profundo sobre a ausência de centro e a ideia de deslocamento”, diz o criador, que tem também, por estes dias, a exposição Afasia Tática na Culturgest Porto. Esse interesse revela-se nos seus projectos musicais, HHY & The Macumbas e Fujako, movidos a transposições bizarras de ritmos, vozes e timbres, bem como nas suas instalações sonoras e performativas, como Sancta Víscera Tua, “uma espécie de Via Sacra sem Cristo” que ocupou, em 2014, a Igreja de Santa Clara, no Porto, e a Igreja São Francisco, em Guimarães. Ou Oxidation Machine, cápsula imersiva de multicanais de sons, ecos e luz que engoliu a Casa de Serralves durante 40 horas no Serralves em Festa do ano passado – e que muito recentemente foi levada para o Palais de Tokyo, em Paris, no âmbito do festival non-stop Do Disturb.
O Poço representa mais um passo em frente nas pesquisas de Jonathan, que dão origem a um trabalho com uma cosmogonia muito própria, a meio caminho entre a física, a arquitectura, o som, o gesto e a pré-linguagem. Há uma forte dimensão telúrica e animista, uma tensão permanente entre o orgânico e o inorgânico. “O momento seminal para continuar a investir nesta questão de ausência de centro foi a visita que fiz ao European Southern Observatory (ESO) no deserto do Atacama, no Chile”, conta o criador. “O ESO é um centro de astrofísica que trabalha precisamente com matéria negra, com os limites do que é tangível. Tentam ver as dimensões intangíveis do cosmos, que atravessam a matéria. Dimensões extra-humanas que me interessam profundamente e que estão muito presentes nesta peça.”
Em vertigem
Neste projecto, Jonathan Uliel Saldanha faz aquilo que muitos lhe disseram para não tentar fazer num teatro – no fundo, desmantelar aquilo que damos por garantido. “Estamos a propor uma peça que não tem uma base, o que vai contra a lógica de superfície, contra aquilo para que um palco está feito”, observa. “Não estamos a mudar apenas a perspectiva, estamos a mudar a deslocação de todos os elementos.”
Nesta operação de “teatro da vertigem” – em que tudo o que existe, existe em relação com o poço, não dentro dele, uma espécie “de quadrado negro de Malevich, mas em círculo” – foram cruciais os colaboradores de longa data da Soopa, plataforma fundada por Jonathan que começou a sacudir o subsolo artístico do Porto nos finais dos anos 90. Além de Catarina Miranda e Diogo Tudela na dramaturgia, a construção deste buraco negro contou com o apoio do arquitecto Godofredo Pereira, especialista em geo-arquitectura e políticas territoriais. “O Godofredo trabalha muito com o eixo vertical de exumação e com os mecanismos de poder do petróleo: como é que tu consegues olhar para um terreno e cartografar as implicações de poder sobre ele”, contextualiza Jonathan.
Este eixo vertical que suporta a peça é explorado também através da acústica e da ressonância, que “ultrapassa a dimensão tangível da matéria”. Para isso desenvolveram de raiz, em parceria com o engenheiro Eduardo Magalhães, um sound system com 16 canais construído na vertical. O que, mais uma vez, é fazer aquilo que muitos lhe disseram para não tentar fazer num teatro. “Não encaixa naquilo que é a dimensão humana da escuta, que é tendencialmente horizontal. É um problema biológico. É mais difícil perceberes uma bomba a cair-te ao lado do que um carro a passar-te à frente”, nota Jonathan. “Parece-me muito importante pensar sobre isto, já que este eixo vertical é altamente ignorado e é um eixo de poder gigantesco. Tem a ver com hierarquias e ferramentas de controlo, claro… A técnica militar enforma bastante este projecto, mas não é taxativo.”
O som, feito a partir de gravações de objectos sintéticos (borrachas, esferovite, moedas), gera, portanto, constantes rasteiras biológicas, quase alucinações cognitivas, reforçando a dinâmica de colisões de escala e desfasamento da percepção que percorre a peça. “Sentes massas de som a cair constantemente. Sentes que alguns caem, outros que batem em zonas que não vês, e tens toneladas e toneladas de detritos que te são atirados para cima, a diferentes velocidades, pesos e texturas. Não os vês mas ouves.” No meio disto tudo, o elemento humano, que serve “como um receptáculo do efeito desta máquina”, vai-se desmaterializando, “degradando”. Até chegar a um ponto em que é vermicular, confundível com a paisagem.
“Não estamos a tentar ser agradáveis de maneira nenhuma”, afirma Jonathan. “Estamos a trabalhar com mecanismos de detritos humanos, vazios, iridescências e queda livre de objectos. Esses mecanismos encontram redes internas de nexo entre si, mas que não são as tuas. São coisas que vivem e sobrevivem além de ti, mesmo que já não existas. Isso depois traz também camadas emocionais à peça de uma complexidade gigante.” Lá em cima, onde supostamente não deveríamos estar, resta-nos entrar neste teatro da vertigem.