Seis corpos, uma instrução: manterem-se de pé
Em Celui qui Tombe , Yoann Bourgeois coloca seis corpos sobre uma plataforma giratória e elevatória com uma instrução simples: tentarem manter-se de pé. Um propósito simples que oferece um espectáculo belíssimo, pleno de sugestões, que encerra os Dias da Dança e segue para o FIMFA.
Yoann Bourgeois tem “uma relação muito ambivalente com a queda”. Formado em artes circenses, aprendeu e tomou como regra fundamental a ideia de que a queda é inaceitável. Nos mais variados malabarismos, em trapezismos e noutras disciplinas do circo, a queda é o fim, é o falhanço, é o corte abrupto com a manutenção da ilusão. “De início, quando se está a aprender, tudo bem, ainda pode acontecer”, diz Bourgeois ao Ípsilon. “Mas depois, com o avançar do tempo, torna-se cada vez mais inaceitável. E a razão pela qual é inaceitável, hoje creio já ter percebido, é porque conduz à imobilidade.”
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Yoann Bourgeois tem “uma relação muito ambivalente com a queda”. Formado em artes circenses, aprendeu e tomou como regra fundamental a ideia de que a queda é inaceitável. Nos mais variados malabarismos, em trapezismos e noutras disciplinas do circo, a queda é o fim, é o falhanço, é o corte abrupto com a manutenção da ilusão. “De início, quando se está a aprender, tudo bem, ainda pode acontecer”, diz Bourgeois ao Ípsilon. “Mas depois, com o avançar do tempo, torna-se cada vez mais inaceitável. E a razão pela qual é inaceitável, hoje creio já ter percebido, é porque conduz à imobilidade.”
Em Celui que Tombe, peça que o artista francês apresenta a 13 de Maio enquanto espectáculo de encerramento dos Dias da Dança, no Coliseu do Porto, e a 20 e 21 no Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas (FIMFA), no Teatro São Luiz, em Lisboa, a iminência da queda é constante. Sobre uma plataforma giratória ou elevatória, seis bailarinos correm, andam, rendem-se à boleia do movimento numa sequência de alternativas de, individual ou colectivamente, se relacionarem com essa força cuja origem desconhecem. É impossível não pensar em ratos a correr dentro de gaiolas, a correr para o entretenimento de terceiros, a correr como animais que apenas eternizam um ciclo vicioso. E é difícil não pensar também no mito de Sísifo, quando os seis bailarinos correm para não sair do mesmo lugar, correm para nunca se aproximarem verdadeiramente de algum lado, correm, caem, levantam-se e retomam uma marcha que sabemos estar condenada a repetir-se nesta mesma sequência uma e outra e outra vez.
“A leitura de O Mito de Sísifo, o livro de Albert Camus, foi algo que me marcou imenso há alguns anos e que ressurge com muita frequência no meu trabalho”, confirma Yoann Bourgeois. “E não apenas no Celui qui Tombe, porque me interessa muito essa questão de reflectir sobre a impossibilidade de resolver o sentido. É a razão pela qual, por exemplo, num outro espectáculo tenho uma escada que vai para lugar nenhum. Um imenso vazio. Esse vazio é uma condição para se levantar este tipo de questões.” E essas questões podem, naturalmente, implicar a manutenção de uma situação sem sentido, a subjugação a regras ditadas não se sabe bem por quem, a forma cruel como a mecânica da vida atira corpos por terra, cuspindo-os sem qualquer misericórdia, a maneira como a obrigação de uma actividade física constante para resistir à queda se destina a manter aquelas pessoas exaustas e lhes roubar a capacidade de se entregarem quer a uma disponibilidade mental de combate quer simplesmente a uma pouco culpada e pecaminosa ociosidade.
As implicações políticas e éticas são de tal forma sugeridas por um dispositivo que carrega também uma extraordinária beleza poética, que Bourgeois se arrepia só de pensar que o seu papel, ao colocar seis homens e mulheres a terem de responder àquele estímulo por si criado, pode ser comparável ao de um deus que manipula os seus “filhos”. Para si, a resposta dos bailarinos dá-se perante uma dinâmica geológica, diante de fenómenos físicos que existem na Terra e que não são criados ou controlados pelo Homem. “Simplesmente damos-lhes uma forma para que se tornem perceptíveis”, justifica.
O certo é que, sejam manipulados por acção humana ou respondam pura e simplesmente a uma dinâmica geológica, os seis bailarinos comportam-se como seis pinos atirados ao ar por um malabarista, mantendo o exercício em curso, a habilidade usada em resposta circular e de aparência infinita, por a queda ser inaceitável — como antes dizíamos. Só que começávamos este texto com uma citação de Yoann Bourgeois confessando ter uma relação ambivalente com a queda. Yoann sabe que, se pensa a queda como inaceitável, esse é um reflexo condicionado, uma natureza que lhe foi colada à pele pela formação no circo, acredita ser-lhe intolerável sem discernir com clareza quanto disso existe realmente em si e quanto é resultado dessa construção. Celui qui Tombe é também uma provocação que lança na sua própria direcção, como se inquirisse quanto daquilo que reconhece como seu lhe pertence de facto e não é simplesmente ditado pelo mundo que o rodeia.
“Creio que em toda a minha obra”, afirma, “a um nível muito íntimo tento aceitar a queda, tento aprender a cair. Tento acolher o prazer que há nisso.” A resposta, talvez de quem acredita que o melhor remédio será virar a sua fraqueza contra si própria, poderá estar no trampolim — adoptando uma outra prática física de agilidade e equilíbrio que o possa levar a saborear a queda.
Os fenómenos físicos
Celui qui Tombe foi o espectáculo de abertura da importante Bienal da Dança de Lyon em 2014, primeiro espectáculo de raiz circense a alguma vez ser montado sobre o palco da Ópera de Lyon. E nasceu de um “longo processo de pesquisa” que Yoann Bourgeois vem desenvolvendo há vários anos. A mesma pesquisa, que originou vários espectáculos anteriores, decorre da disciplina que foi aprimorando em várias escolas circenses e em que responde àquilo que sempre lhe interessou no circo: “a amplificação dos fenómenos físicos”. A plataforma giratória e elevatória sobre a qual os seis intérpretes correm, andam ou tentam resistir sem cair à verticalização do plateau foi o dispositivo que Yoann procurou para que “manifestasse princípios físicos e mecânicos elementares, como a força centrífuga, a gravidade, o equilíbrio e a oscilação”. “Aquilo de que precisava era devolver esses fenómenos à sua condição mais simples”, explica. “Essa pesquisa de simplificação habita-me ao longo de todos estes anos de processo, o que me leva a concluir que quanto mais a pesquisa avança mais se simplifica. Não é um processo que tende para a sofisticação ou a complexificação; é algo que se aproxima de qualquer coisa essencial. A plataforma é a forma de representar diferentes fenómenos e o seu impacto sobre um pequeno grupo de homens e mulheres.”
Embora com uma óbvia base coreográfica, Celui qui Tombe não segue uma partitura de absoluta precisão. Quase se pode resumir a uma única instrução: os seis devem tentar manter ou recuperar o equilíbrio. Para Bourgeois, o início e o final do espectáculo estão bem delineados, mas tudo o que acontece entre esses dois momentos deve obedecer a uma estrutura suficientemente mutável para que nunca chegue a cristalizar, nunca se torne uma repetição daquilo que já foi feito e conserve uma reacção tão espontânea quanto possível quaisquer que sejam os movimentos assumidos e ditados pela plataforma. A Yoann agrada-lhe a ideia de que a peça possa resumir-se à tentativa de os seis se manterem de pé, algo que tem uma óbvia ressonância de luta pela manutenção da dignidade. Em todos os muitos sentidos que Celui qui Tombe admite, o da luta através da verticalidade, da resistência e da oposição é certamente um dos mais imediatos e de maior impacto, mesmo que por vezes sejam apenas corpos a descrever uma corrida de enorme e simples beleza, contrariando um indiferente movimento mecânico. Admitindo que a imagem da resistência política lhe é cara, Yoann Bourgeois diz que gosta de “um público numa sala de espectáculos em que uma criança pode rir ao lado de um adulto que está a sentir medo”.
É também com essa multitude de sentidos possíveis em mente que o malabarista, actor, bailarino e coreógrafo — actualmente co-director do Centre Coréographique National de Grenoble, juntamente com Rachid Ouramdane, também ele com presença nesta edição dos Dias da Dança — diz ter seleccionado para a banda sonora do espectáculo músicas tão distintas quanto a interpretação de Frank Sinatra do clássico My way (depois de vertido para inglês por Paul Anka a partir do original francês) ou a popularíssima ária Casta diva da ópera Norma, de Bellini. Ao espalhar estas pistas suficientemente distintas, Yoann pretende deixar uma esticada amplitude de interpretações e de estabelecimento de relações entre aquilo que se ouve e que acontece sobre a plataforma — “acredito que a diferença de registos permite que se possa contar todas as histórias”, defende. A escolha de temas populares e reconhecíveis cumpre assim um consciente efeito de familiaridade, como se esse facto, sobreposto ao movimento, facilitasse a sua compreensão em vez de lhe emprestar uma aura impenetrável.
De cada vez que um corpo cai ou ameaça cair uma mão pode ajudar a recuperar a postura e retomar a marcha. É nesse sentido que Bourgeois defende que “os motivos físicos põem sempre em causa a solidariedade ou falta dela”. “Todos os espectáculos preconizam uma relação com o colectivo — se há uma sala para assistir e um espectáculo a decorrer, mais do que os temas é a relação com os espectadores que produz um efeito político.” É sempre aí que Yoann tenta chegar. Quer haja ou não uma mão que segure um corpo em desequilíbrio no palco, aquilo que o seduz é sempre o que cada gesto concretizado, falhado ou recusado pode encontrar em quem assiste. É nessa falta de controlo que tudo acontece. Caso contrário, tal como recusa com os bailarinos, estaria apenas a assumir um papel de manipulador.