"Não acredito na morte do sentimento religioso. Creio na morte de uma forma refém desse sentimento, a religião"

Michel Onfray, filósofo-vedeta, é o autor de Décadence. Obra que quer demonstrar como as civilizações são fundadas sobre religiões, como elas nascem, crescem, conquistam, declinam e morrem.

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Michel Onfray, 58 anos, um dos filósofos-estrelas de França. Um libertário e um hedonista, situa-se muito à esquerda politicamente jean-luc bertini © flammarion

A França é um país curioso, que espanta, intriga, por vezes fascina os vizinhos francófonos. Belgas, suíços, luxemburgueses observam atentamente as agitações políticas, as polémicas ideológicas que agitam os sofás da sociedade francesa, dado que, em comparação, as suas próprias actualidades sociais são calmas e, dizem eles por vezes, aborrecidas. Este tumulto francês é possível devido à presença, em primeiro plano, dos debates, das ideias, das correntes de opinião e de pensamento, e dos filósofos. Porque, neste país curioso, dá-se muito a palavra aos filósofos.

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A França é um país curioso, que espanta, intriga, por vezes fascina os vizinhos francófonos. Belgas, suíços, luxemburgueses observam atentamente as agitações políticas, as polémicas ideológicas que agitam os sofás da sociedade francesa, dado que, em comparação, as suas próprias actualidades sociais são calmas e, dizem eles por vezes, aborrecidas. Este tumulto francês é possível devido à presença, em primeiro plano, dos debates, das ideias, das correntes de opinião e de pensamento, e dos filósofos. Porque, neste país curioso, dá-se muito a palavra aos filósofos.

Uma dezena deles são mesmo estrelas mediáticas, chamados a comentar tudo, a explicar tudo, a contestar tudo. Agora que a França acabou de se amedrontar, permitindo que Marine Le Pen e a Frente Nacional tivessem chegado à segunda volta das eleições presidenciais, e que Michel Onfray proclama que já não vota, argumentando que os responsáveis, de todos os quadrantes, conduzem políticas exógenas, ditadas por Bruxelas, pelo FMI ou pela NATO, será interessante interrogá-lo sobre a palavra e o lugar dos intelectuais, escritores, filósofos, no cenário mediático francês.   

Michel Onfray é, aos 58 anos, um dos filósofos-estrelas de França, com muita visibilidade nos meios de comunicação social, mas não apenas aí. Assim que a Frente Nacional conseguiu pela primeira vez, em 2002, chegar à segunda volta das eleições presidenciais (Jacques Chirac face a Jean-Marie Le Pen), ele reagiu. Ele agiu. Criou uma “Universidade Popular” inteiramente gratuita, de acesso livre e sem inscrição. Não a criou em Paris, mas na província, em Caen, a cidade da Normandia onde vive. Tem também uma volumosa produção, com dezenas de obras de filosofia. É um libertário, um hedonista e situa-se muito à esquerda politicamente. Se alcançou uma tal exposição, nomeadamente na televisão, é porque fala de forma clara. Os seus livros são complexos mas sabe torná-los acessíveis, não utilizando demasiado jargão específico. Quando se exprime, mostra-se claro, com argumentos sólidos, bem documentado, às vezes um pouco lapidar, dando às suas teses a força das evidências. Tem origens modestas — como é filho de um camponês, argumenta, não beneficiou de ajudas do meio parisiense, nem de qualquer outra rede de influência. Subiu unicamente devido ao seu trabalho, e sabe que, para a maior parte dos filhos de famílias muito modestas, é quase impossível chegar aonde ele chegou.

Michel Onfray, enfim, é todo ele um programa e um método. Muitas das suas biografias causaram barulho, visto que iam contra a corrente do sentimento generalizado: escreveu sobre Sigmund Freud (um mentiroso perverso e cúpido), sobre Jean-Paul Sartre (colaboracionista com o regime de Vichy), o marquês de Sade (falso ídolo do nosso tempo, e um criminoso desequilibrado), e mesmo Jesus (uma fábula sem realidade histórica). O método Onfray é o seguinte: lê na íntegra a obra dessas personagens, depois tudo o que se escreveu sobre elas, e em ordem cronológica. Segundo afirma, é a única forma de entrar efectivamente e objectivamente na vida desses grandes nomes sobre os quais, pensa-se, já tudo foi dito centenas de vezes. Uma tarefa colossal, que ninguém se atreve a empreender, e que permite a Onfray ser categórico, dificilmente contestável, enquanto revela os elementos escondidos, por vezes explosivos, que o pensamento mainstream conseguiu ocultar.  

A sua última obra, Décadence (Flammarion), dedica-se a mostrar como todas as civilizações são ontologicamente fundadas sobre religiões, como elas nascem, crescem, conquistam, declinam e morrem. Partindo de Jesus Cristo, percorre, com atordoante precisão bibliográfica, as etapas do desenvolvimento e do declínio da nossa civilização judaico-cristã, avançando um diagnóstico pessimista para os anos que se seguem, os últimos, e que serão fatais. “Chamo decadência ao que vem depois da força plena e que conduz ao final dessa mesma força.” O leitor ficará espantado com a incrível quantidade de documentos, textos, livros e autores que foi necessário ele ler e resumir. Segundo Onfray, então, sem religião não há civilização. Isso é incontestável?

Inexistência de Jesus, acumulação de incoerências, absurdos face ao progresso científico, violência, e, no entanto, você mostra que todas as civilizações se constroem sobre religiões. Por que razão a “falsidade” da religião é mais congregadora do que a “verdade” da ciência ou da natureza humana, para formar uma civilização?
As pessoas, e isso está na natureza humana, preferem uma ilusão que lhes dê segurança a uma verdade que as inquiete. Antes fábulas que prometem que a morte não existe e que a vida continua depois do falecimento, do que uma verdade científica que traz a prova de que, uma vez mortos, apenas conhecemos a decomposição e o vazio.

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jean-luc bertini © flammarion

Existem grandes dicionários das religiões que mostram que elas nascem, que elas vivem, que elas declinam e que elas morrem em grande número. Ninguém já acredita nos deuses dos egípcios, nos dos gregos do tempo de Péricles, ou nos do México pré-colombiano. Mas essas religiões perdurarão enquanto o Homem perdurar, porque elas trazem consolo àqueles a quem a filosofia não trouxe a serenidade.

Acrescentemos que essas fábulas, que ameaçam com castigos ou maldições eternas sobre os transgressores da ordem moral, logo da ordem política, são muito úteis aos poderosos, para governarem o povo através do medo e com a ajuda dos padres.   

Não se pode considerar que no final vai surgir algo de positivo com o enfraquecimento do religioso, vai surgir uma sociedade mais esclarecida, que considera as suas raízes religiosas apenas como fundamentos históricos e culturais, sem outro alcance?
Não acredito na morte do sentimento religioso. Creio na morte de uma forma refém desse sentimento, e que é a religião, mas não no desaparecimento do sentimento religioso, que é o único amparo que os homens têm para viver uma existência que os conduz irremediavelmente para o nada. A razão não é suficiente: no ateu, ela serve o seu ateísmo, no crente, ela serve a sua fé. Não se consegue convencer um ser em que a angústia existencial é tal que o seu cérebro reptiliano sustentado pelo seu córtex se desliga alternadamente. Não é preciso subestimar os poderes da razão. Ela não pode fazer tudo e, infelizmente, ela também tem servido alguns senhores malvados.

Mostra a relação patológica entre corpo e sexualidade — e também de qualquer noção de prazer — nos primeiros cristãos. Seguem-se todas as frustrações, violência, discriminação. Não se encontra aí a causa primeira do fracasso anunciado da influência do religioso, uma quantidade de injunções contranatura?
Antes dos monoteísmos, os homens não se separavam da Natureza, eram uma parte dela e têm consciência disso. Com os judeus, depois os cristãos, depois os muçulmanos, chegam os Livros, que se interpõem entre os homens e o mundo e que são, todos os três, livros que convidam a detestar o corpo, a sensualidade, a sexualidade, o prazer, o desejo, as mulheres. O animismo, o totemismo, o politeísmo ou o panteísmo, que são as religiões de antes do monoteísmo, adoram o corpo, a carne, a sexualidade. O Deus único é ciumento, vingativo, autoritário e ameaçador. Mas também o tempo dos monoteísmos acabará por passar.   

Como os homens pouco a pouco esqueceram os pormenores dos textos e dos acontecimentos religiosos dos primeiros tempos da cristandade, a nossa civilização conseguiu produzir saber, tecnologia, um acumular de avanços na medicina, no conhecimento do Universo, em todos os domínios. Sob o jugo de uma religião, esses progressos rápidos e úteis seriam possíveis? O religioso não se revela um poderoso paralisador das sociedades humanas? 
A religião monoteísta baseia-se num Livro e afirma que tudo está nesse Livro. Qualquer descoberta científica que entre em contradição com aquilo que o Livro ensina é perseguida, criminalizada, e os cientistas que alcançaram essa descoberta são per-seguidos. Se a Bíblia diz que a Terra está no centro do Universo e se Copérnico afirma que na realidade é o Sol que aí se encontra, então ele tem problemas com a Igreja. Se a Bíblia diz que Deus criou o Homem com terra e que dele tirou uma coste-la para criar Eva, então Darwin estava errado ao inscrever o Homem no final de uma longa evolução que conduziu até ele. Os progressos da ciência são sempre alcançados contra e apesar da religião.

O que se critica noutras religiões é semelhante (efabulação, violência, coerção, etc.). Desde quando se pode considerar que uma civilização seria mais esclarecida, melhor para a Humanidade, do que outra, se elas empregam os mesmos métodos nocivos provenientes das suas res-pectivas religiões?
 A comparação entre civilizações não permitiria hierarquizá-las: em função de que critérios? Uma civilização na qual se come os seus mortos seria inferior a uma outra que os incinera ou a uma terceira que os enterra e confia os defuntos ao apodrecimento da terra, ou ainda a uma outra que os expõe aos pássaros carnívoros no alto das torres?

Se mesmo assim você quiser um critério, digo-lhe que a melhor civilização é aquela que não quer destruir outra. Não aquela que gerou Homero ou Mozart, mas a que deseja viver em paz com ela própria e com as outras.

A existência de Jesus é questionada, desde há muitos anos. Muitas teses colocaram em destaque as impossibilidades, as inverosimilhanças e a ausência de provas da sua realidade. Você faz mesmo uma lista precisa. Por que razão a contestação da existência de uma figura tão tutelar e fundadora da nossa civilização não causa mais ruído, mais debate?
Porque quanto mais o dizemos de forma habitual, menos é polémico, mais facilmente passa. Contestar a historicidade de Jesus numa civilização que fez dessa ficção as suas fundações, é tarefa impossível. Isso acontecerá quando o cristianismo tiver passado e quando os historiadores fizerem com esta religião o que outros já fizeram com a religião dos gregos ou dos romanos — na qual já ninguém acredita. Zeus tem para mim a mesma consistência histórica que Jesus ou Mazda ou Zoroastro [Zaratustra]. Enquanto estivermos nesta civilização, não conseguiremos ver sobre que mitologias ela está construída. Para tal será necessário um olhar exterior vindo de um outro espaço geográfico que não o espaço cristão, ou de um tempo que não o tempo cristão.  

Noutro aspecto, você compara os métodos da Igreja dos primeiros tempos e medieval aos métodos dos marxistas-leninistas, e depois aos dos fascistas. Todas os três foram responsáveis por atrocidades. Mas a nossa civilização acabou por se livrar do jugo dos reis. Não é isso um sinal da sua saúde, do seu “bom senso” ontológico?
A falha do marxismo-leninismo, do nacional-socialismo e dos fascismos está relacionada com o facto de nenhum desses esboços de “civilizações” ter sido trazido por uma espiritualidade, uma transcendência, algo para lá do religioso. Uma civilização constrói-se sobre uma religião que supõe uma espiritualidade. Não existe qualquer exemplo de uma civilização que não tenha sido construída a partir de um texto sagrado gerador de uma religião. Não haverá nunca uma civilização baseada numa proposta materialista e ateia. A transcendência permite aos homens superarem-se e darem a sua vida para realizar esse projecto, porque eles acreditam que essa morte lhes concederá a vida eterna. Morrer sabendo que depois não existe nada não mobiliza nenhum ser humano a construir uma civilização.

Você afirma que o Maio de 68 e as revoluções culturais dos anos 70 não “criaram uma virtude inédita”. No entanto, o Maio de 68 liberou as mulheres, permitiu que os homossexuais erguessem a cabeça, e isto abrange, sem dúvida, 60 por cento da população. O Maio de 68 permitiu abrir novos horizontes ao pensamento político, à criação artística, na forma de abordar as questões dos hábitos e costumes, etc. Mesmo que muitos desses caminhos tenham chegado a um impasse, de qualquer forma continua a existir um pou-co de virtude, de coragem moral, não?
Qual é o nome da nova virtude que terá tornado possível o feminismo? Você não a conseguirá encontrar. Porque o feminismo, tal como o reconhecimento dos direitos dos homossexuais, são dois combates que provêm de um antigo valor que é a igualdade que, ela própria, provém do universalismo judaico-cristão!  

Que tipo de arte o Maio de 68 poderia ter tornado possível, dado que são as vanguardas literárias e estéticas como o Futurismo, o Surrealismo, o Dadaísmo ou o Letrismo que tornaram possível o Maio de 68? Lembro-lhe que o “Manifesto do Futurismo” data de 1909 e que o Manifesto do Surrealism  de 1924, ou que o Letrismo data de 1945.

O que é que os artistas saídos do Maio de 68 produziram que não estivesse já em Marcel Duchamp? Nada.

Escarnece de certas performances da arte contemporânea (John Cage, Manzoni, etc.). A Arte não tem como vocação exclusiva ser estética, confortável, agradável, decorativa, relaxante ou figurativa, ou burguesa. Toda a história da arte mostra que o gesto artístico tende a tornar-se menos artesanal para se tornar mais abstracto, conceptual. Qual é a sua posição acerca da criação contemporânea?
“Escarnecer” não é a palavra certa, pois em Décadence não faço qualquer juízo sobre essas obras. Certamente não faço juízo negativo! Defendo a arte contemporânea — mas como Marcel Duchamp, que apelava a que se ultrapassasse incessantemente aquilo que já tinha sido feito. O anarquista Duchamp não teria apreciado nada os duchampianos que, um século depois, ainda estão a repeti-lo e a produzir uma arte convencional, institucional e subsidiada que mesmo assim se apresenta como de vanguarda e revolucionária.

Além disso, já escrevi, num livro que se chamava Archéologie du présent [Arqueologia do Presente], que o Belo morreu ao mesmo tempo que Deus o tornou possível. Mas defendi o conceito de Sublime, dizendo que ele permitia um juízo de gosto dessa arte inédita.

E também escrevi uma dezena de livros que fazem o elogio de pintores contemporâneos que expus durante dez anos na freguesia em que moro na Normandia, em Argentan. Como é que ainda podem dizer que desprezo a arte contemporânea?

Faz uma correspondência perfeita entre religião e civilização. Pode definir a palavra “civilização”?
A civilização é a cristalização de uma espiritualidade nas formas políticas, estéticas, artísticas, existenciais, culturais, literárias, musicais, poéticas, filosóficas, arquitectónicas.

O pormenor e a quantidade de documentos estudados para produzir Décadence são impressionantes. Trata-se de um trabalho colossal: como organiza esse trabalho? É trabalho a longo prazo, compilando as pesquisas feitas ao longo de anos, fruto de longas e pesadas sessões de estudo?  Que tipo de escravo do trabalho é você?
Vivo na província, na Normandia, longe das distracções mundanas de Paris. Em minha casa recebo poucos amigos, e não organizo qualquer jantar de conveniência. Não vou a qualquer jantar onde se tem de ir. Não perco tempo com estreias ou nos meios onde se alarga a rede de contactos — não tenho rede. Trabalho todo o tempo, sempre sozinho. Não tenho fins-de-semana, nem férias. Praticamente não vou ao cinema, nem ao teatro, nem à ópera, infelizmente. Viajo por todo o Mundo para fazer conferências e trabalho nos aviões e nos hotéis.

O meu modelo é o meu pai, que era trabalhador agrícola e que trabalhava de forma regular, durante longos períodos. No fim, pode-se regressar, olhar para o campo e ver que se trabalhou bem. Depois re-toma-se a canga, e continua-se.