Ir à missa é bom para o ateísmo
Tal como o Papa prefere “ateus a católicos hipócritas”, eu prefiro um bom Papa a um mau ateu. Mas ser religioso é um estilo de vida. Como ser vegetariano, punk ou minimalista.
Por causa do Papa Francisco, descobri há dias que entrei numa categoria social cuja existência desconhecia. Como ateia que elogia publicamente este Papa, foi-me dito que sou a prova de que os crentes devem desconfiar de Francisco.
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Por causa do Papa Francisco, descobri há dias que entrei numa categoria social cuja existência desconhecia. Como ateia que elogia publicamente este Papa, foi-me dito que sou a prova de que os crentes devem desconfiar de Francisco.
A lógica é mais ou menos esta: os ateus gostam da sua “leveza” — este é um Papa light que apareceu na capa de uma Rolling Stone — e gostam do seu discurso pouco metafísico e muito social.
Talvez por ser uma ateia com pedigree de algumas gerações, penso na religião como um guia moral, um conjunto de práticas interiores e de compreensão do mundo, mas sobretudo como um estilo de vida. Ser religioso não é muito diferente de ser vegetariano, punk ou minimalista. Olhando de fora, é evidente o sentimento de pertença a um grupo e de como isso dá satisfação e conforto a quem adere. Não é a ressurreição que é um mistério. O mistério são os sistemas de crenças religiosas.
Confesso que tenho um certo fascínio por ouvir crentes, mas sempre que assisto a uma missa fico mais ateia. Há dias assisti a uma na igreja dos Jerónimos e saí a pensar no Papa e em como ele está tão sozinho na sua missão. Francisco é um religioso moderno, inspirador e comovente à frente de uma estrutura retrógrada, pessimista e incapaz de falar sobre a vida contemporânea. Às tantas, o padre dos Jerónimos perguntou: “E a vida é só isto? Batemos na parede e depois não há mais nada...?” Que estranha forma de usar o poder da palavra. O que aquele padre escolheu para dizer, num momento em que cada vez menos pessoas vão à igreja, é que a vida só vale a pena porque há ressurreição? Sem ressurreição, temos uma existência irrelevante e inútil e, no fim, esborrachamo-nos contra um muro?
Há uns anos, li a história do pensamento ateu que Christopher Hitchens publicou em 2007 — The Portable Atheist. É um livro ambicioso, que começa no filósofo romano Lucrécio e acaba no escritor Salman Rushdie. Tem mais de mil páginas. Um dos meus ensaios favoritos é do iluminista David Hume, um excerto da sua História Natural da Religião, de 1757, em que o filósofo faz a demonstração racional, em 41 pontos, da impossibilidade dos milagres. Hume argumenta que as estações do ano provam que os milagres são uma ficção — ou seja, que a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno são a prova definitiva contra a existência dos milagres. A ideia é simples: quando chegamos a Março, sabemos que o frio vai começar a desaparecer e que o calor vai começar a aparecer. Sabemos que é assim porque já vimos isso acontecer dezenas de vezes e, antes de nós, milhões de pessoas testemunharam o mesmo durante séculos e séculos. Isto é verdade para todos os fenómenos, escreve Hume. Além disso, quando algo extraordinário acontece, somos muito cautelosos até aceitarmos a nova ideia. Se cem pessoas têm uma experiência contrária à de 50 pessoas, duvidamos da palavra das 50 pessoas e acreditamos no que o grupo maior nos diz. Se forem cem pessoas contra a palavra de uma só, duvidamos ainda mais. Porque não aplicamos essa regra — que usamos em tudo na vida — também aos milagres que diferentes religiões no mundo nos contam?, pergunta David Hume.
Outro texto desconcertante é de Mencken, o jornalista e crítico americano que, sendo uma figura estranha em muitos aspectos, deu um contributo para o debate sobre a religião. No seu ensaio Memorial Service, de 1922, Mencken começa por perguntar onde é o cemitério dos deuses mortos e quem rega as suas sepulturas. Lembra que Júpiter foi o rei dos deuses na Roma Antiga, e a seguir pergunta: “Mas quem venera hoje Júpiter?” E quem venera o deus asteca Huitzilopochtli, em nome do qual 50 mil raparigas solteiras eram sacrificadas todos os anos — e isto há apenas 500 anos? Hoje, nem no México as pessoas se lembram dele. O seu irmão também foi um deus poderoso, embora em menor grau (por ano, merecia o sacrifício de apenas 25 mil virgens). Mas também o seu nome desapareceu. A partir daqui, Mencken faz uma lista de deuses importantes — deuses de povos civilizados e avançados para o seu tempo — que foram adorados e seguidos por milhões de pessoas durante séculos, mas que morreram. Desapareceram e hoje ninguém se lembra, sequer, dos seus nomes. A lista dos deuses mortos tem 150 nomes. Todos omnipresentes, omniscientes e imortais.
Também é bonito o texto do cientista Carl Sagan sobre o mistério dos deuses regionais e os crocodilos do Nilo. Sabemos que ao longo da história da humanidade houve centenas de milhares de religiões. E por isso, diz Sagan, é surpreendente que sempre que alguém se converte a uma religião escolha uma que está ao pé de si, que faz parte da sua comunidade, e não uma religião distante, do outro lado do mundo. Se há tantas possibilidades, porquê escolher a religião que está à mão? Por exemplo, continua Sagan, é muito raro que alguém no Ocidente se converta a uma religião cujo Deus tem uma cabeça de elefante. Porque será? Como é que se explica que a aparição de Deus com cabeça de elefante esteja praticamente reservada aos indianos na Índia ou em Londres, onde a comunidade indiana é grande? Do mesmo modo, como se explica que a aparição da Nossa Senhora aconteça no Ocidente e raramente no Oriente, onde por acaso não há tradição cristã? Ou seja, conclui, a predisposição para a crença religiosa vem da comunidade e da tradição.
Sagan também questiona o argumento moral de Kant, um filósofo crente. Essencialmente, Kant diz que somos seres com moral, logo Deus existe. Como é que saberíamos usar a moral se Deus não existisse?, pergunta. É neste ponto que Carl Sagan conta a história dos crocodilos do Nilo, que viajam durante imenso tempo com os seus ovos dentro da boca e nunca os comem. Por que é que resistem à tentação? Porque os crocodilos são seres com moral ou porque, antes deles, outros crocodilos comiam os seus próprios ovos e acabaram por auto-extinguir-se e desaparecer da Terra?
Há dias, falei destes três ensaios no Centro de Reflexão Cristã, no Chiado, numa das Conferências de Maio — O que está a mudar com o Papa Francisco (a próxima é no dia 17). No fim, um estudante levantou-se e pediu a palavra. “Quando contou essa história dos crocodilos, fiquei a pensar: não terá sido Deus a dizer-lhes para não comerem os ovos?”
Tal como o Papa prefere “ateus a católicos hipócritas”, eu também prefiro um bom Papa a um mau ateu. Mas, sobretudo, gosto de crentes com ironia.