História de três lugares
Na década de 70, o sociólogo Henri Lefebvre escreveu que os centros históricos iriam cumprir uma dupla função: lugares de consumo e de consumo de lugar. Hoje, isto é uma realidade global
Existe, na rua de São Víctor, uma ilha bastante conhecida porque grande parte dos moradores são da mesma família e porque é lá que se organizam as melhores festas de São João (que não a das Fontaínhas). As ilhas do Porto talvez sejam os lugares onde vive a população com menos recursos da cidade mas, no dia 24 de Junho, nunca faltam sardinhas, fêveras ou caldo verde para quem se queira juntar aos residentes. Na ilha do Doutor não se fazem só os melhores arranjos e se exibe a melhor cascata: existe festa e partilha, fala-se no presente e no futuro. Fala-se no passado. Um dos mais ilustres fregueses e principal organizador dessa festa é sempre o senhor José Castelo, antigo padeiro da marinha portuguesa, que percorreu o mundo inteiro atrás do F.C. Porto. Cada vez que há uma reportagem na televisão ou uma simples visita de alguém que não conhece as ilhas, o senhor Castelo faz uma tour pela rua toda, mostrando os seus segredos acompanhado de um grande sorriso. O senhor Castelo arrendou, há já muitos anos, uma casa fora de São Víctor, mas continua a passar o dia todo na ilha, onde vê passar os dias cuidando da sua hortinha.
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Existe, na rua de São Víctor, uma ilha bastante conhecida porque grande parte dos moradores são da mesma família e porque é lá que se organizam as melhores festas de São João (que não a das Fontaínhas). As ilhas do Porto talvez sejam os lugares onde vive a população com menos recursos da cidade mas, no dia 24 de Junho, nunca faltam sardinhas, fêveras ou caldo verde para quem se queira juntar aos residentes. Na ilha do Doutor não se fazem só os melhores arranjos e se exibe a melhor cascata: existe festa e partilha, fala-se no presente e no futuro. Fala-se no passado. Um dos mais ilustres fregueses e principal organizador dessa festa é sempre o senhor José Castelo, antigo padeiro da marinha portuguesa, que percorreu o mundo inteiro atrás do F.C. Porto. Cada vez que há uma reportagem na televisão ou uma simples visita de alguém que não conhece as ilhas, o senhor Castelo faz uma tour pela rua toda, mostrando os seus segredos acompanhado de um grande sorriso. O senhor Castelo arrendou, há já muitos anos, uma casa fora de São Víctor, mas continua a passar o dia todo na ilha, onde vê passar os dias cuidando da sua hortinha.
Embora veja o senhor Castelo com frequência, só me lembrei novamente daquele São João de 2014 há uma semana, quando me contaram uma história muito semelhante. Aconteceu no El Cabanyal, um bairro de Valência (Espanha) que sempre esteve ligado ao mar: primeiro através da pesca, depois através das actividades portuárias que atraíram novos moradores e dinamizaram a economia. Os cabanyaleros sempre se sentiram “como uma família”, em parte porque todas as casas estavam em contacto directo com a rua — a casa comum. Partilha do quotidiano, convívio nos festejos, entreajuda na contrariedade. E miséria, muita miséria. Quando, nos anos 60, as típicas casas de rés-do-chão e andar começaram a ser substituídas por prédios em altura, muitos dos moradores aderiram ao discurso oficial dos construtores, assumindo a propriedade horizontal como uma maneira de viver por cima dos pobres. Não foi esse o caso da família Gallart: três das quatro irmãs compraram apartamentos nesses prédios que, passado pouco tempo, só serviam para ir dormir. Não demoraram a começar a passar todo o dia no rés-do-chão da irmã mais nova, aquela que se tinha recusado a vender uma casa que servia para habitar.
Quanto mais pensamos nestas situações, mais casos nos vêm à cabeça. Acham que não? Façamos um exercício histórico. No final do século XIX, a Sé do Porto era lugar habitual de acolhimento para as populações que encontravam na cidade industrial a promessa de um futuro melhor. Na Sé, as condições de vida eram más, submetidas as populações como estavam à exploração do patrão (e do senhorio) e expostas a todo tipo de doenças e epidemias. A sobre-ocupação do espaço era tão grande que as crónicas falam em arrendamento de degraus de escada. As pessoas com mais recursos saíram rapidamente, mas foram necessárias décadas para que os mais pobres fossem realojados em habitações mais salubres, na periferia. Já nessa altura, o centro se tinha tornado um lugar mais habitável, não sendo difícil adivinhar a sua potencialidade. Porém, antes do património receber a atenção que hoje merece, aquelas pessoas que tinham saído para um bairro camarário já tinham ganho o hábito de homenagear diariamente as suas antigas ruas. Ainda hoje não falta quem passe a maior parte do tempo a conversar no lugar que ainda sentem como a sua casa comum, por vezes ajeitando os dias difíceis à volta de um jogo de cartas.
Na década de 70, o sociólogo Henri Lefebvre escreveu que os centros históricos iriam cumprir uma dupla função: lugares de consumo e de consumo de lugar. Hoje, isto é uma realidade global. Em tempos de domínio do capital financeiro é importante ter em mente que devemos a nossa cidade histórica ao seu património humano: aos bairristas, aos das raízes, aos do tasco e aos da oficina, aos que votam na esquerda e aos que votam na direita, aos que vivem cá e aos que vivem longe. Durante todos os dias das suas vidas, eles também investiram nas nossas cidades.