Flutuando por entre o silêncio

Ryuichi Sakamoto, GAS ou Visible Cloaks recordam-nos que a música ambiental tem cada vez mais tonalidades na procura do espaço, do tempo e do silêncio, num mundo com ruído a mais.

Foto
O novo álbum de Ryuichi Sakamoto funciona como reparação depois do dia a seguir ao confronto com a morte

Em 2006, em entrevista ao músico japonês Ryuichi Sakamoto, este dizia-nos que a omnipresença da música, em todos os lugares e a toda a hora, se havia tornado na sua principal inimiga. Uma espécie de ruído normalizador impunha-se, decorrente da música hoje estar em todos os espaços privados e públicos (rua, restaurantes, aeroportos, centro comerciais, lojas ou praia), o que acaba por padronizar tudo o que escutamos, acabando por gerar, paradoxalmente, uma relação de indiferença com a própria música. Na altura dizia-nos que era necessário reaprender a ouvir.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Em 2006, em entrevista ao músico japonês Ryuichi Sakamoto, este dizia-nos que a omnipresença da música, em todos os lugares e a toda a hora, se havia tornado na sua principal inimiga. Uma espécie de ruído normalizador impunha-se, decorrente da música hoje estar em todos os espaços privados e públicos (rua, restaurantes, aeroportos, centro comerciais, lojas ou praia), o que acaba por padronizar tudo o que escutamos, acabando por gerar, paradoxalmente, uma relação de indiferença com a própria música. Na altura dizia-nos que era necessário reaprender a ouvir.

Mais de dez anos depois esse excesso é ainda mais evidente. O silêncio é ainda um bem mais precioso. Nesse contexto talvez não surpreenda que cada vez mais discos se tentem aproximar do quase silêncio, como se quisessem criar uma relação de exigência com o ouvinte, solicitando-lhe respiração, tempo de fruição e espaço de reflexão, um recentrar na música e no que a rodeia. Nada de novo. Muitos outros o fizeram ao longo dos anos – de John Cage a Stockhausen, passando por Brian Eno – mas que ganha nova pertinência nestes tempos de comunicação ubíqua, onde privado e público, real e virtual, se vão amalgamando.

Nos anos 1970 quando Brian Eno imaginou a designação música ambiental justificou-o através da sua relação com o expressionismo abstracto e construtivismo russo. Com essas duas correntes artísticas havia percebido que a pintura não tinha que ser figurativa. “Podia criar outros mundos, com diferentes gravidades e leis físicas”, afirmou então. “Tínhamos a sensação de que a pintura era apenas um pedaço do universo de todo o universo que representava.” Com a música acabou por tentar fazer o mesmo, “como se ela pudesse começar num ponto infinito antes do tempo e terminar num ponto infinito do futuro.” 

Hoje a música ambiental pode tomar inúmeras formas. Contemplativa, como no início do ano Brian Eno apresentou no álbum Reflection. Imponente, como no novo registo do alemão Wolfgang Voigt com a designação GAS. Reflectindo a relação com a tecnologia, como na compilação Mono No Aware. Ou intercultural, de forma imprevisível, como nos Visible Cloaks.

Pode também funcionar como reparação depois do dia a seguir ao confronto com a morte, como em Async de Ryuichi Sakamoto, o seu primeiro álbum de estúdio dos últimos oito anos e o seu 16º a solo. É uma obra registada depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro em 2014 e de o ter combatido desde então. É um disco onde cada som transporta essa sensação de fragilidade da vida. É uma obra sobre a passagem do tempo. O que foi. O que resta.

Se nos anos 1970 deu nas vistas com a Yellow Magic Orchestra e nos anos 1980 descobriu a sua veia mais pop ao lado de inúmeros músicos (de Iggy Pop a David Byrne), no século XXI veio a expor um lado mais experimental (ao lado de Alva Noto ou Christian Fennesz) que nunca deixou de estar lá. É mais essa dimensão que está presente no novo registo, com sons espaçados de piano e linhas contínuas de órgão, concebendo uma sonoridade onde o analógico e o digital, melodias circulares e sons concretos de objectos quotidianos, acabam por se envolver na mesma teia.

“Regressei a um ponto da minha vida em que simplesmente queria ouvir o som dos objectos e isso incluía pensá-los como instrumentos”, afirmou recentemente, reflectindo que a experiência da proximidade da morte contribuiu não só para que voltasse a ter uma relação de prazer com as minudências da vida, como a reouvir os sons quotidianos como se fosse a primeira vez.

Foto
O alemão Wolfgang Voigt que adopta a designação GAS

Trata-se de uma colecção de peças instrumentais, marcada por dois temas onde a voz irrompe. “Because we don’t know when we will die, we get to think of life as an inexhaustible well”, diz em Full Moon o escritor Paul Bowles (num texto que é repetido depois em várias línguas), cuja voz foi registada quando Sakamoto concebeu a banda-sonora de The Sheltering Sky de Bertolucci. A outra voz é a de um velho conhecido, David Sylvian, que recita um poema de Arseny Tarkovsky, pai do realizador Andrei Tarkovsky.

Em ambos os casos estamos perante reflexões existencialistas que se constituem como centrais num álbum que pretende funcionar como experiência imersiva. De tal forma assim é que Sakamoto já veio dizer que não tem pretensões de o apresentar ao vivo através de qualquer espectáculo convencional, preferindo expor a música pelo mundo através de instalações sonoras, estando a primeira já patente no Watari, Museu de Arte Contemporânea de Tóquio, contando com um sistema de som envolvente e imagens originais concebidas pelo artista e realizador Apichatpong Weerasethakul.

Com quatro décadas de carreira, consultar a discografia completa do japonês é perdermo-nos num ciclo infindável de álbuns, bandas-sonoras para filmes, óperas ou projectos artísticos dos mais diversos quadrantes. Curiosamente numa altura em que também ele parece perspectivar o tempo, existe quem olhe com muito interesse para o período da Yellow Magic Orchestra, quando a electrónica nipónica dava ainda os primeiros passos.

Foi a esse período que, em 2010, o músico e produtor americano Spencer Doran se foi inspirar para lançar Fairlights, Mallets and Bamboo – Fourth-World Japan, Years 1980-1986, uma colecção de temas da YMO, Sakamoto, Haruomi Hosono ou Seigen Ono. Inspirado pelo conceito “quarto mundo” cunhado pelo músico Jon Hassell, propunha uma unificação de configurações remotas e futuras, através da confluência entre marcas ancestrais e técnicas digitais, desenhando um amanhã utópico onde elementos de diferentes culturas à volta do globo se fundiam totalmente.

De alguma forma é isso que se ouve agora em Reassemblage, o fascinante segundo álbum dos Visible Cloaks, o projecto que Spencer Doran divide com Ryan Carlile. “Acabamos por nos apropriar de múltiplos sons de diversas culturas e criar qualquer coisa sem uma fonte sonora clara, provindo de tantos lugares que resulta em algo labiríntico e abstracto”, já esclareceu Doran. Dito assim poderá parecer que estamos perante mais um projecto de músicas do mundo. Mas não. Longe disso. O mundo prometido que aqui é desenhado parece provir de estradas digitais que nunca foram percorridas. Sim, existem algumas alusões sonoras, e a voz da japonesa Miyako Koda (Dip In The Pool), que prometem encontros entre Oriente e Ocidente, mas o resultado final desemboca numa música serena, baladas futuristas onde orgânico e sintético, passado e futuro, se entretecem de forma indistinta.

Foto
Os americanos Visible Cloaks e a sua electrónica estranhamente intercultural

Não por acaso o título do álbum é uma referência a Reassemblage (1982), documentário filmado no Senegal pelo realizador vietnamita Trinh T. Minh, que acaba por reflectir que nunca conseguimos decifrar totalmente uma cultura que nos é estranha. O que é possível compreender são apenas sinais, sintomas ou aproximações, mistura de ambientes naturais com sons transparentes e um incessante borbulhar electrónico, que se mesclam para formar paisagens alienígenas, que nos são devolvidas de forma gráfica, como se conseguíssemos ver o som.

É música que flutua entre silêncios e onde, apesar de todas as referências precisas de lugares, nunca sabemos onde estamos exactamente. O mesmo se poderia dizer de Narkopop, o excelente novo álbum de GAS, o projecto que o alemão Wolfgang Voigt tem vindo a desenvolver desde 1996 ao longo de quatro álbuns. Há dezassete anos que não gravava com esse nome e agora eis que o co-fundador da editora Kompakt e figura central das electrónicas das últimas décadas com inúmeros pseudónimos, regressa com a sonoridade de sempre, electrónica densa mas vaporosa, parecendo repetir-se incessantemente, mas sempre diferente, com o batimento cardíaco de um tecno em câmara-lenta revestido de camada ambiental, num todo planante, climático e hipnótico.     

Se o ambiente em Sakamoto nos devolve fragilidade, aqui existe qualquer coisa de imponente, em bruto, embora geométrico. Aparentemente nada de novo, mas não é bem assim. O som é mais profundo, rico e luxuriante do que nunca, como se evocasse um filme épico ou uma grandiosa zona industrial desolada. É música electrónica panorâmica de grandes gestos e no entanto também meditativa, uma austera polifonia de sons saturados que, apesar da sua majestade, guarda também lugar para que o ouvinte se possa projectar nela de forma introspectiva. Música onde muitas vezes nada parece ocorrer e onde tudo o que é essencial ao nível da pele e da emoção acaba por acontecer.

Mas nem só de nomes firmados como GAS vivem hoje as correntes ambientais. É até mais correcto dizer que alguns dos sons mais estimulantes do momento provém do quarto de jovens músicos pouco ou nada conhecidos, cada um com características próprias, mas partilhando alguns elementos, de tal forma que quando juntos parecem movidos por conceitos comuns. Basta ouvir a excelente compilação Mono No Aware para entende-lo, na qual participam nomes como Yves Tumor, M.E.S.H. ou HELM.

Limerence

Ideia de Bill Kouligas, no contexto da editora Pan de Berlim, congrega algumas das esquinas mais obscuras do ambientalismo, mas sempre com a sensação de espaço, e um mundo de alusões à volta, para explorar, numa congregação de sons misteriosos, vozes que sussurram segredos que nunca desvendaremos, alusões das quais apenas entrevemos uma sombra, como se ainda estivéssemos a viajar num universo que nos é familiar, mas onde já só conseguimos discernir memórias, elementos dispersos, emoções distorcidas pelo tempo.

Esta não é música agradável para ouvir em fundo. É música que reflecte o presente, turbilhão de vasos comunicantes que tanto procuram refúgios de silêncio, como tentam dar novos sentidos ao ruído incessante que nos envolve.