Os artigos de fé dos euro-apocalípticos
Em vez de entendermos o debate que agora se abre como a “última oportunidade” para a Europa, entendamo-lo antes como a primeira oportunidade para fazer qualquer coisa de novo: participar nele em vez de o rejeitar à partida.
Está para lá de qualquer dúvida: nesta ocidental praia lusitana, os pessimistas levam uma vantagem quilométrica no debate público. O pessimismo não é só o equivalente opinativo ao “com um simples vestido preto eu nunca me comprometo” popularizado pela saudosa Ivone Silva. O pessimismo é uma obrigação, uma missão e uma devoção. A qualquer pergunta, abanar pesarosamente a cabeça e dizer “estou francamente pessimista” dá sempre pontos extra.
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Está para lá de qualquer dúvida: nesta ocidental praia lusitana, os pessimistas levam uma vantagem quilométrica no debate público. O pessimismo não é só o equivalente opinativo ao “com um simples vestido preto eu nunca me comprometo” popularizado pela saudosa Ivone Silva. O pessimismo é uma obrigação, uma missão e uma devoção. A qualquer pergunta, abanar pesarosamente a cabeça e dizer “estou francamente pessimista” dá sempre pontos extra.
Em Portugal só há uma coisa que dá mais caução instantânea do que estar pessimista: é estar pessimista sobre a Europa. Sobre a Europa, aliás, não há apenas que estar pessimista. É preciso estar apocalíptico e aderir aos seguintes artigos de fé: isto é insustentável, logo não há solução. Se houver solução é insustentável também. Pode não ser insustentável, mas não vai funcionar. Não vai funcionar porque não pode funcionar. Se funcionasse, era uma desgraça. Se funcionar e não for uma desgraça, nunca vai ser implementado porque a Alemanha não quer. E, de qualquer forma, é insustentável.
Bem se pode apontar que a crise da zona euro não é a mesma antes e depois de Mario Draghi ter decidido fazer “tudo o que fosse necessário” para salvar a moeda da UE. Bem se pode notar que a Alemanha votou vencida contra essas medidas do BCE, e que até houve quem na Alemanha as levasse a tribunal, sendo derrotado de novo. Poderia até assinalar-se que a zona euro está a crescer há vários trimestres ininterruptos, e agora a crescer mais do que a economia dos EUA. De nada serve. O problema do euro-apocalíptico é que, perante uma pergunta como a que deixei na última crónica, “E a União Europeia? Será esta a sua última oportunidade?”, não é capaz de ler o ponto de interrogação. Só uma resposta negativa o conforta.
Pois bem, a grande dificuldade da questão europeia é que ela não é uma daquelas perguntas para “responder adivinhando”. É uma pergunta para “responder fazendo”. E, nesse tipo de perguntas, não só é importante ler o ponto de interrogação como até pôr em causa os próprios termos da questão.
Já seria tempo de pensarmos, por exemplo, se o problema não estará na sofreguidão com que nos colocamos a questão da “última” oportunidade. Noutras paragens até o maior revés na luta pelo progresso social (um exemplo: esta semana, Trump deu um passo de gigante para cortar o acesso à saúde a 24 milhões de cidadãos) é entendido como uma etapa da luta política que um dia poderá ser vencida. Na Europa, pelo contrário, qualquer luta pelo progresso social está condicionada há demasiados anos pela questão de saber se a UE sobrevive. Aqueles que acham que o apocalipse está para breve escusam-se a lutar pela Europa e arriscam-se a cometer o mesmo erro do Brexit: alguns políticos britânicos consideraram que estavam a jogar por antecipação em relação ao fim da UE e arriscam-se agora a ficar isolados se mais ninguém os seguir.
Ora, se a questão da sobrevivência da UE fosse uma pergunta apenas para “responder adivinhando”, bem poderíamos concentrar os nossos palpites em Emmanuel Macron, pela razão óbvia de que nem um político tão sortudo como ele poderá por si só salvar a Europa. Mas como o futuro da UE é uma questão para “responder fazendo”, o mais importante não é o que um político faz, mas o que todos nós não fazemos. Cada pessoa, ou país, ou campo político que se recusar a ir a jogo no debate europeu por estar convencido de que a UE anda perto do fim está na prática a garantir que o seu futuro seja determinado por outros. Para Portugal, esse seria um erro fatal.
Em vez de entendermos o debate que agora se abre como a “última oportunidade” para a Europa, entendamo-lo antes como a primeira oportunidade para fazer qualquer coisa de novo: participar nele em vez de o rejeitar à partida. Em que condições, e com que conteúdo, será o tema da terceira crónica da semana.