As esculturas de José Pedro Croft são capazes de pintar Veneza

Emocionado, dedica trabalho inaugurado na Bienal de Arte de Veneza à sua primeira galerista. O artista ameaça-nos com equilíbrios precários, mas também nos ajuda a ver o mundo através de filtros coloridos.

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Passamos o portão do muro alto que cerca a Villa Hériot na ilha da Giudecca, em Veneza, e antes de podermos olhar para o histórico edifício, logo uma escultura de José Pedro Croft ameaça cair. Com uma altura que chega aos oito metros, um espelho gigante desencontrado da sua moldura em ferro faz-nos questionar a estabilidade da escultura monumental, sentirmo-nos em perigo de derrocada neste nosso primeiro encontro com o trabalho que o artista português apresenta na Bienal de Artes de Veneza.  

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Passamos o portão do muro alto que cerca a Villa Hériot na ilha da Giudecca, em Veneza, e antes de podermos olhar para o histórico edifício, logo uma escultura de José Pedro Croft ameaça cair. Com uma altura que chega aos oito metros, um espelho gigante desencontrado da sua moldura em ferro faz-nos questionar a estabilidade da escultura monumental, sentirmo-nos em perigo de derrocada neste nosso primeiro encontro com o trabalho que o artista português apresenta na Bienal de Artes de Veneza.  

Está tudo certo, explica o comissário João Pinharanda, é essa a sensação que podemos experimentar ao encontrarmos a primeira das seis esculturas feitas de ferro, vidro espelhado ou garridamente colorido que constituem a representação oficial portuguesa na 57.ª Exposição Internacional de Arte, inaugurada esta quarta-feira em Veneza. “A peça é uma espécie de concentração de tudo o resto, do que as pessoas vêm ver”, explica João Pinharanda, que tem aqui o seu primeiro projecto com Croft, convidado para expor depois do curador ter recebido a incumbência da Direcção-Geral das Artes de comissariar a presença portuguesa neste evento que este ano tem como tema geral “Viva Arte Viva”. “Há um plano que parece que tomba para cima de nós, mas se o virmos do outro lado também parece que vira para aí. São aqueles jogos que Croft faz com os planos.”

As esculturas simulam então, explica o comissário no catálogo, a instabilidade da sua própria estrutura, provocando “desacertos e desvios, vertigens e arritmias, alterações de cor, aproximações e afastamentos de planos e de reflexos”.

“Isto tem tudo que ver com o maneirismo e não com o barroco, apesar da presença dos espelhos”, explica Pinharanda ao PÚBLICO perante as obras que vamos descobrindo no jardim desta casa de Verão, virada para a grande laguna, e composta por dois edifícios do princípio do século XX. “Não nos dão um ponto de estabilidade. E isso tem tudo que ver com as questões contemporâneas, porque a melhor maneira de pensar toda a falta de estruturação, de cânone, é entendermos que o mundo está permanentemente em desequilíbrio.”

Foi durante os discursos da pré-inauguração que tiveram lugar na véspera, com a presença do ministro e do secretário de Estado da Cultura, que José Pedro Croft, 59 anos, se emocionou e, com a voz um pouco embargada, dedicou este trabalho à sua primeira galerista, Maria Nobre Franco, falecida há dois anos. “Sempre acreditou na minha obra e levou-a para fora de Portugal nos já longínquos anos 80.”

Perante uma inauguração concorrida, Croft deu por terminado um trabalho de ano e meio que esteve para ser mostrado noutro local da Giudecca. “Foi um trabalho complexo, ambicioso e tão difícil como estimulante, começado com um projecto no Campo di Marte, a desenvolver em diálogo com a arquitectura de Álvaro Siza, com a sua métrica austera e depurada, num local com a dureza de um estaleiro.”

De seguida, lembrou Croft, novas circunstâncias desse projecto, a ser erguido ao lado de um edifício inacabado de Siza, ditaram que se conseguisse terminar a obra do arquitecto português que estava parada desde os anos 80 na Giudecca, através da representação oficial portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza do ano passado.  Foi por isso que se impôs a mudança para o novo cenário, de certa forma paradisíaco, do jardim da Villa Hériot. “Adaptaram-se as esculturas a condições novas e bem diversas. Com novos cálculos de engenharia, elas transportaram, no entanto, a memória desse primeiro lugar, ganhando outras possibilidades.”

Além de Siza, o artista já explicou como se inspirou numa exposição com as pinturas de Sol LeWitt que viu na Punta della Dogana, por sua vez inspiradas nas obras de Malevitch. “Vamos tropeçando em coisas e elas vão-nos levando para um caminho.”

Esculturas “pintantes”

A Penelope Curtis, a directora do Museu Gulbenkian de Lisboa que estava entre as muitas caras da inauguração, perguntámos que temas via tratados na obra de Croft. “As esculturas ficam muito bem aqui. Gosto da sua colocação na natureza. Não sei como ficariam no sítio original, mas este sítio é bom para elas por causa da forma como trabalham com o verde, com as árvores. Gosto da forma como alteram as cores do jardim aqui à volta através dos vidros coloridos, da forma como reflectem a luz.” Curtis, uma especialista em escultura, diz que pensaria mais nelas como pinturas. “São ‘pintantes’. Falam do plano, da luz e da superfície. “Os planos reflectem a luz e mudam a superfície. De certa maneira também são fotográficas. É interessante a forma como captam e enquadram uma imagem, tal como uma câmara.” Se se fala de luz, acrescenta, evoca-se igualmente a sombra, o claro-escuro, o opaco e o translúcido.

O desenho — e por arrasto a pintura — é outra vertente da obra de José Pedro Croft. Mas aqui em Veneza o desenho só está presente através de um vídeo sobre o seu trabalho mostrado no interior da casa. Os dois campos estão, no entanto, constantemente a contaminarem-se e o artista explicou ao PÚBLICO que pensou “muitas das questões das esculturas não só estruturalmente mas também como desenho”. E, continua Croft, se elas às vezes se apresentam como “corpos estranhos”, causando por exemplo uma sensação de “perigo de derrocada”, outras “estão a nosso favor, ajudando-nos a ver o mundo” através de filtros coloridos.

Espelhos negros

João Pinharanda imagina os espelhos de Croft a transformarem-se em “espelhos negros” quando a noite cai, conta-nos no catálogo, absorvendo as estrelas e as luzes dos barcos.

Mas os espelhos de que falamos, explica José Pedro Croft, são, na verdade, vidros, que ganham essa qualidade de espelho através da introdução de uma película de vinil reflector. “Quanto mais intensa é a luz, mais qualidades de espelho ganham os vidros.”

Os vidros espelhados que Croft incorpora aqui nas esculturas, ao lado dos vidros coloridos de azul ou vermelho, são de um tom acastanhado, casando-se perfeitamente com a cor da estrutura de ferro parcialmente enferrujada e com os tons térreos da casa. Parecem mais negros que os utilizados em Sabadell, em Espanha, mas o escultor afirma que isso depende apenas do nosso ponto de vista, da claridade do fundo contra o qual se afirmam e da hora do dia ou do tempo que faz.

Se nós vimos espelhos negros ou vidros de Murano e os ligamos à história e à paisagem de Veneza, isso é o normal trabalho do visitante e não deixa de estar também certo, concordam João Pinharanda e o artista. “Esta relação com Veneza sublinha coisas que já estavam no trabalho de José Pedro Croft. É como se tivesse havido um momento de excitação”, comenta o curador.

Do jardim da Villa Hériot, é possível descortinar um cantinho de parte do edifício de Álvaro Siza que ficou logo concluído nos anos 80 e que faz parte da geografia mítica ligada à habitação social do mais famoso arquitecto português. “Acho muito interessante que Croft tenha tentado estabelecer uma relação métrica e estrutural com a obra do Siza, sabendo que havia esta possibilidade de a obra se reiniciar e as esculturas terem que mudar de sítio”, diz Nuno Grande, que foi, juntamente com Roberto Cremascoli, um dos comissários da representação portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza de 2016, dedicada exactamente ao projecto de Siza na Giudecca.

Quem não conhece essa relação com Siza, vai senti-la na escala. “A distância entre os pilares que seguram os vidros é inspirada na métrica dos pilares do edifício da Giudecca, mas depois Croft desconstrói um pouco este Siza que é muito racional, porque estamos a falar de uma obra de habitação social com os custos controlados. É quase como se dissesse: ‘Eu não sou arquitecto, parto da arquitectura, mas vou fazer outra coisa’. Croft pegou nessa racionalidade e introduziu uma certa irracionalidade.”

A escala que encontramos agora na obra de Croft está a caminho da arquitectura. “Há uma equipa vastíssima a trabalhar a partir de uma ideia de Croft. A construção disto teve fundações como um edifício e foram precisas autorizações especiais para ser construído quase como se fosse praticamente um edifício”, lembra Nuno Grande, acrescentando que as obras para completar o segundo edifício de Siza na Giudecca foram finalmente adjudicadas.

Nuno Grande sublinha o facto de as esculturas de José Pedro Croft estarem viradas para a grande laguna, o lado da Giudecca que não dá para a famosa praça de São Marcos. “Já vi várias esculturas na relação com os canais de Veneza e esta é a primeira que acho que enfrenta a extensão da lagoa. É um lugar menos glamoroso que ele conseguiu apanhar bem. As esculturas têm a escala da lagoa, não a escala de um canal.”

Depois de Veneza, Matosinhos vai acolher as seis esculturas. Vão ficar na Casa da Arquitectura, que deverá abrir depois do Verão, fechando assim um círculo, comenta o artista, também em contexto de arquitectura.