Escolas portuguesas juntaram-se nos Açores para lançar satélites de latinhas
A exploração espacial pode começar cedo na vida e exemplo disso é a competição CanSat. A ilha de Santa Maria foi o cenário da quarta edição do concurso em que alunos do ensino secundário usam latas da dimensão das de refrigerantes como se fossem satélites.
Há uma missão espacial a ser cumprida. Uma vedação separa a pista que vai lançar 15 satélites espaciais do tamanho de latas de refrigerante. E nem há tempos para testes. As nuvens e os ventos fazem prever mau tempo na ilha e pode deitar abaixo toda a missão. Por isso, os cinco lançamentos têm de acontecer já.
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Há uma missão espacial a ser cumprida. Uma vedação separa a pista que vai lançar 15 satélites espaciais do tamanho de latas de refrigerante. E nem há tempos para testes. As nuvens e os ventos fazem prever mau tempo na ilha e pode deitar abaixo toda a missão. Por isso, os cinco lançamentos têm de acontecer já.
O cenário é mesmo como fosse uma pista de lançamento de satélites. A pista de aviões da ilha de Santa Maria, nos Açores, onde também há uma estação de rastreio de satélites da Agência Espacial Europeia (ESA), é o sítio escolhido para a quarta edição nacional da competição CanSat (lata + satélite). Os 15 grupos (de 75 alunos e 15 professores) de 14 escolas do ensino secundário levam computadores, antenas e a esperança de que o trabalho de muitas horas não seja um falhanço.
Vestidos a rigor com camisolas azuis escuras e um símbolo de asas, os elementos da Icarus, (uma referência a Ícaro, personagem da mitologia grega ), da Escola Secundária Adolfo Portela, em Águeda, apontam as três antenas em direcção ao avião ultraleve que acaba de descolar. Seguem-lhe o rasto e sabem que, quando o avião se alinhar com o mar, aí a sua latinha é largada.
Com a cabeça e o computador debaixo de um casaco, para se proteger da chuva, Filipe Almeida, de 18 anos, é o líder da Icarus. É já um veterano no CanSat, é sua terceira edição. Tudo começou com um clube de robótica na escola, com o professor João Cera.“A maior parte nem são meus alunos”, conta. “Na escola, precisamos de cativar os miúdos. E o clube de robótica teve mesmo muita adesão.” Tem sido jornada longa e trabalhosa: “Até tivemos de pedir a chave ao segurança para ficarmos até mais tarde na escola.”
Entretanto, lá ao fundo, o avião larga os primeiros satélites. São momentos de stress para que o sinal chegue. Dizem-se números e olha-se para os ecrãs. E já está. “Tantas horas gastas para depois serem segundos”, ouve-se alguém a dizer. Filipe Almeida deixa o seu posto e parece satisfeito. “O lançamento correu bem, mas tivemos problemas na recepção de dados.”
Artigo científico a partir de um CanSat
Mas na Icarus nem tudo depende da primeira missão. Aliás, a competição divide-se em duas partes: uma missão primária, onde se mede a temperatura do ar ou a pressão atmosférica; e depois há uma missão secundária, que pode ser uma demonstração de tecnologia no satélite ou inspirada em missões reais. A Icarus escolheu a segunda. E para isso Filipe Almeida fez uma proposta à Universidade de Aveiro.
Na latinha foram bactérias do mesmo grupo de bactérias que já tinha estado em experiências na Estação Espacial Europeia (ISS) e em equipamentos no espaço e que sobreviveram à viagem e à descontaminação. Para essas experiências, os cientistas modificaram geneticamente bactérias E. coli, para perceber melhor a sua sobrevivência e resistência. As bactérias foram cedidas por um laboratório belga e farão parte de um artigo científico.
A ver o lançamento também estão Tânia Caetano e Sandra Silva, investigadoras da Universidade de Aveiro. “Este é o terceiro lançamento e eram mesmo três que precisávamos”, conta Tânia Caetano, microbióloga. “Queremos submeter o artigo até ao final do ano, até porque eles vão para a universidade.” Filipe Almeida já tem planos: quer estudar Engenharia Electrotécnica e de Computadores, no Instituto Superior Técnico, em Lisboa.
Entretanto, a chuva aproxima-se e o equipamento tem de ser recolhido. Já na tenda de preparação dos satélites, a equipa D. João Can, da Escola Secundária D. João II, em Setúbal, permanece na incerteza, não encontra o seu satélite no terreno. “Vamos esperar”, diz a professora de Física e Química, Ana Carneirinho, que é a responsável pela estreia deste grupo no CanSat. “Foi o projecto mais difícil em que me envolvi com os alunos.”
Estão a desenvolver o projecto desde Outubro, no curso de Ciências e Tecnologias. “É o ano em que estamos a desbravar caminho.” Até momentos antes do lançamento tiveram de cortar uns ferros do satélite porque as dimensões ultrapassavam o permitido. Escolheram fazer algo simples: medir a aceleração da lata ao longo da queda. “Conseguimos resultados muito semelhantes aos das aulas.”
O seu satélite tem muito da Margem Sul de Lisboa. O material do pára-quedas foi oferecido por uma empresa do Barreiro e os cabos por uma empresa de barcos de Setúbal. “O nosso pára-quedas é feito de material de vela e foi difícil encontrar a cor certa”, diz David Mira, de 16 anos. Também ele espera por notícias do satélite perdido por terras açorianas.
A competição nacional do CanSat já se faz desde 2014 e é organizada pela agência Ciência Viva, pela ESA e pelo seu gabinete educativo (ESERO), inspirada num concurso da agência espacial norte-americana NASA. “Antes de existir o CanSat Portugal, as equipas portuguesas iam por sua conta e risco à competição europeia. Mas já nessa altura apoiávamos essas equipas”, conta Ana Noronha, directora executiva da Ciência Viva, que está a observar os trabalhos e que destaca a multidisciplinaridade da competição: “Há alunos que podem querer ir para biologia, e aqui têm um contacto com a tecnologia. É um quebra-cabeças.” E há regras. Cada satélite tem de ter 4,5 centímetros de espaço livre no interior, uma massa de 300 a 350 gramas e não pode custar mais de 500 euros, por exemplo.
Também Rosalia Vargas, presidente da Ciência Viva, vê os últimos preparativos antes dos próximos lançamentos. “Este é o espírito da ciência: um trabalho de grupo e multidisciplinar.” A base experimental da ciência é um dos objectivos da Ciência Viva e Rosalia Vargas não se cansa de dizer: “É absolutamente fundamental que a Área de Projecto volte às escolas.” Há também o interesse em perceber que caminho seguem os jovens a seguir ao CanSat. “Ainda não fizemos esse rastreio, mas vamos ver se o iniciamos este ano. Tem de ter algum efeito na vida destes jovens.”
Formigas voadoras
Rosalia Vargas pára numa mesa com formigas. E que irão viajar num CanSat. “Descobrimos um planeta que tem condições muito semelhantes às da Terra”, brinca Carolina Gustavo, de 16 anos, do Agrupamento Escolas D. Dinis, em Lisboa. “Vamos colonizar o planeta com as formigas e semear plantas. Depois os humanos já têm fonte de alimento.”
Carolina Gustavo e uma colega da equipa AntDiniz (referente ao filme A Formiga Z) estão a passar as formigas de um recipiente com um gel com proteínas para um tupperware com açúcar e maçã. Agora, a equipa espera pela viagem das formigas.
Entre chuva vem e chuva vai, lá há uma aberta e o avião volta a descolar. A equipa da Escola de Novas Tecnologias dos Açores (ENTA), em Ponta Delgada (na ilha de São Miguel), a ENTA Sat Team 3, está com o seu “arsenal” no campo de lançamento. “Queremos manter o título”, pensa em voz alta Diogo Medeiros, de 18 anos. Afinal, venceram o CanSat nacional e europeu em 2016. Já para João Farias, de 20 anos, este é já o seu terceiro ano no CanSat. Ainda se lembra do satélite com “plástico branco” do primeiro ano. Depois começaram a fazer o projecto com mais antecedência e com todas as tarefas marcadas no calendário. “Deixar para a última hora dá sempre crise.”
Para melhorarem este ano, recorreram à Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade dos Açores. Dentro do seu satélite, viajam minhocas, que são bioindicadores. “Serve para vermos a influência [da pressão ou temperatura] no funcionamento básico das células. Já toda a gente sabe isso, mas fazemos um estudo com o nosso CanSat”, explica o professor Duarte Cota. E tem a certeza que há futuros engenheiros no grupo. “Isto dá-lhes uma bagagem de trabalho em equipa e capacidade de organização.” Para já, João Farias gostava de seguir o ramo das telecomunicações.
Também o lançamento deste satélite se concretiza. Não houve qualquer erro, na opinião do grupo. Entretanto, começa a pingar e o grupo recolhe o material o mais depressa possível. Os lançamentos tiveram mais uma pausa.
Num planeta distante…
Manuel Paiva, professor jubilado da Universidade Livre de Bruxelas e cientista em experiências de missões espaciais, é o presidente do júri do CanSat, composto ainda por Ricardo Conde (engenheiro da empresa Edisoft), Eduardo Ferreira (engenheiro da Navegação Aérea Portuguesa), Rui Agostinho (astrofísico na Universidade de Lisboa), Ana Maria Martins (oceanógrafa da Universidade dos Açores), João Carlos Francisco, (presidente da Aeroclube de Torres Vedras), AgostinhoFonseca (do Instituto Superior Técnico) e Ana Noronha. “Estes dias resumem muito bem o que se passa nas missões espaciais”, diz Manuel Paiva, destacando o “espírito de investigação científica” da competição. “Há uma ideia, uma investigação e uma aplicação prática”, explica o investigador, que em 2016 também fez parte do júri internacional. “O nível dos portugueses está ao nível dos estrangeiros.” Tem uma questão que gostaria de ver respondida: “Gostaria de saber se existe influência do CanSat no futuro destes jovens.”
Já a oceanógrafa Ana Maria Martins acabou por vir a usar imagens de satélites para estudar algo debaixo de água. “Hoje em dia, não há nenhum oceanógrafo que não esteja exposto a estas tecnologias.” Portanto, vê o CanSat como uma forma de incentivar a criatividade e os sonhos.
Para enquadrar a parte secundária da missão, muitos grupos imaginaram que o seu satélite viajaria até um planeta distante. E para avaliar os dados recolhidos pelas equipas está lá Rui Agostinho. “Tive o papel do jurado chato”, brinca. “Muitas vezes, há a ideia de que o que conta é o satélite em si. Mas quando se gasta tanto dinheiro no satélite, o objectivo não é só lançar.”
Por isso, Rui Agostinho tem tentado transmitir a importância desta parte. “É o que obriga lançar o satélite. Vou construir isto para quê? E aí aparece a análise de dados.” Se no ano passado, apenas uma equipa tinha uma componente científica, este ano já foram mais.
Há uma aberta no tempo e chega a vez do lançamento da Escola Básica e Secundária das Flores, nos Açores. A Azorex, nome inspirado na empresa aeroespacial SpaceX, tem uma missão específica: o seu satélite tem lá dentro um rover, que sai da lata, e uma pequena turbina para indagarem, imaginam os alunos, se o planeta Trappist -1e, num sistema de sete planetas descoberto há pouco tempo a 39 anos-luz da Terra, tem condições para aproveitar energias renováveis.
“Gostávamos de investigar as movimentações das massas do ar e da temperatura para colocar uma estação eólica ou solar”, diz Teresa Moreiras, de 17 anos. “Não é assim tão impossível. Até já se fala em turismo espacial.” Além disso, gosta de observar o céu dos Açores: “Percebemos que somos tão pequeninos!” O que Teresa Moreiras quer mesmo seguir é Direito, nem que seja direito espacial.
Um bicampeão
No final dos lançamentos, Rui Pacheco, o piloto do ultraleve, diz que foram difíceis. “Os Açores têm um tempo complicado, devido à altura das nuvens e ao vento.” O ideal era lançar os satélites a 1000 metros, mas só foi possível a cerca de 200 metros.
E, no final, os esperados resultados. Enquanto isso, o satélite do grupo D. João Can é encontrado pela organização e a equipa AntDiniz vê que as suas formigas resistiram à queda. A menção honrosa vai para a equipa Icarus. Em terceiro lugar, fica a equipa CanSat3E3, da Escola Secundária João de Deus, em Faro, e o prémio é participarem na ocupação dos jovens nas férias da Ciência Viva. O segundo lugar é para a EpaSat4, da Escola Profissional de Almada, que vão estagiar na Edisoft, na ilha de Santa Maria. E, por fim, o primeiro lugar vai para um repetente, a ENTA, que irá representar Portugal na final internacional em Bremen, na Alemanha, de 25 de Junho a 2 de Julho.
“Trabalhámos para isso”, reage Ricardo Sousa, da ENTA. “Agora para a final europeia vamos melhorar ainda o pára-quedas”, acrescenta Mariana Marques. E qual o segredo da vitória? “Este ano tentámos melhorar a parte científica”, reage o professor Duarte Cota.
Há CanSats que nunca são descobertos durante a competição, como aconteceu com um dos grupos este ano. Mas nunca é tarde. Nesta edição, foi encontrado um satélite lançado há dois anos pela Escola Secundária de Santa Maria, numa final regional. Vivia lá agora um formigueiro, estava corroído e perdeu o laranja florescente de outros tempos, e agora foi devolvido ao professor responsável. “Ficámos sempre com pena de não o ter recuperado”, diz Tiago Leite. “O pára-quedas não teve tempo de se abrir e o CanSat caiu directamente no solo.” Agora foi uma grande alegria para o professor, que vai avisar os alunos. Mais tarde ou mais cedo, uma missão do CanSat é sempre cumprida.
O PÚBLICO viajou a convite da agência Ciência Viva