O dia seguinte em França
No dia seguinte à eleição presidencial inicia-se em França outra batalha política de envergadura: a da conquista de lugares no novo parlamento.
1. As eleições presidenciais francesas de 2017 estão destinadas a ser um acto singular de consequências ainda não discerníveis na totalidade. No entanto, algumas são já claras. Como as sondagens sugeriam com nitidez, Emmanuel Macron é o novo presidente da França. A sua vitória, apesar de uma inequívoca e expressiva votação superando os 65%, não foi a de Jacques Chirac em 2002, a eleição com a qual, inevitavelmente, vem à mente fazer comparações. Nessa altura Jacques Chirac acabou por obter mais de 82% dos votos, contra menos de 18% de Jean-Marie Le Pen, quando disputaram a segunda volta. A repetição do que ocorreu em 2002, onde todas as forças políticas convergiram no voto contra o candidato da Frente Nacional (FN), esteve longe de se verificar contra Marine Le Pen, que agora obteve quase 35% dos sufrágios. Os tempos são outros. Impõe-se, assim, olhar para as presidenciais como uma etapa de um longo ciclo político que se prolonga até às legislativas. As grandes questões do dia seguinte são saber até onde irá a dinâmica de vitória de Emmanuel Macron nas legislativas e qual o impacto da queda dos partidos tradicionais de poder, combinado com o peso da FN, nas futuras condições de governação e no sistema político.
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1. As eleições presidenciais francesas de 2017 estão destinadas a ser um acto singular de consequências ainda não discerníveis na totalidade. No entanto, algumas são já claras. Como as sondagens sugeriam com nitidez, Emmanuel Macron é o novo presidente da França. A sua vitória, apesar de uma inequívoca e expressiva votação superando os 65%, não foi a de Jacques Chirac em 2002, a eleição com a qual, inevitavelmente, vem à mente fazer comparações. Nessa altura Jacques Chirac acabou por obter mais de 82% dos votos, contra menos de 18% de Jean-Marie Le Pen, quando disputaram a segunda volta. A repetição do que ocorreu em 2002, onde todas as forças políticas convergiram no voto contra o candidato da Frente Nacional (FN), esteve longe de se verificar contra Marine Le Pen, que agora obteve quase 35% dos sufrágios. Os tempos são outros. Impõe-se, assim, olhar para as presidenciais como uma etapa de um longo ciclo político que se prolonga até às legislativas. As grandes questões do dia seguinte são saber até onde irá a dinâmica de vitória de Emmanuel Macron nas legislativas e qual o impacto da queda dos partidos tradicionais de poder, combinado com o peso da FN, nas futuras condições de governação e no sistema político.
2. O movimento político fundado por Emmanuel Macron, Em Marcha!(Associação para a Renovação da Política), é um recém-chegado à política francesa. Pretende ser uma lufada de ar fresco. Nos seus traços gerais, tem características algo similares ao partido fundado em Espanha por Albert Rivera, o Cidadãos-Partido da Cidadania. Em ambos os casos há um líder novo, abaixo dos quarenta anos, que não é um político profissional, tendo um percurso sobretudo ligado aos meios empresariais e financeiros. O objectivo é renovar a forma de fazer política e estimular a participação cívica. Em ambos, há a ideia de fazer isso fora dos partidos tradicionais, afastando-se dos seus vícios, mas numa lógica pró-globalização e pró-integração europeia — não se trata de contestar o sistema na sua essência. Ideologicamente não se posicionam à esquerda, nem à direita, mas algures no centro do espectro político. Este perfil pode ser muito atractivo para certo tipo de eleitores — normalmente de uma classe média e média-alta urbana —, mas também é detestável para outros. No caso de Emmanuel Macron, muitos eleitores olham-no com indiferença, ou pouco convencidos sobre as suas propostas e qualidades políticas como governante. Face ao que estava em causa na eleição presidencial era apenas o mal menor. Não entusiasma, nem gera adesão genuína.
3. Marine Le Pen origina profunda rejeição em partes da sociedade francesa e fora dela. Mas Emmanuel Macron é também detestável, embora por razões diferentes, aos olhos de uma parte substancial do eleitorado, à direita e à esquerda do espectro político. A sua percepção como um produto de interesses financeiros e empresariais e do establishment que tem governado a França é causa maior dessa antipatia política. É percebido como um novo rosto para uma mudança política cosmética. Macron será uma garantia de que os interesses das elites que têm governado a França e a União Europeia se manterão intocados. A sua passagem pela elitista Escola Nacional de Administração, pelo Banco Rothschild e pelo governo de Manuel Valls / François Hollande, como Ministro da Economia, reforça essa convicção. O seu (neo)liberalismo, implícito, entre outras medidas, na vontade de alterar a legislação de trabalho, tornando-a mais pró-empresas, irrita à esquerda e à direita. Para os sectores mais críticos da globalização e das elites de poder, Macron representa quase tudo aquilo a que se opõem politicamente. Foi provavelmente esta a motivação da esquerda radical de Jean-Luc Mélenchon e do movimento França Insubmissa para não apoiarem Macron na segunda volta das eleições presidenciais. Tal como a Frente Nacional de Marine Le Pen, ambos apostam num presidente politicamente frágil, refém de um parlamento onde terá dificuldade em ter apoios estáveis para os futuros governos.
4. As eleições legislativas do próximo mês de Junho, com a primeira e a segunda voltas previstas, respectivamente para 11 e 18, podem ser a etapa crucial da recomposição do espectro político francês. Os 577 deputados da Assembleia Nacional são eleitos com um mandato de cinco anos (com duração idêntica ao do Presidente da República), por sufrágio universal directo, num escrutínio maioritário uninominal a duas voltas, em cada circunscrição eleitoral. Face à lei eleitoral francesa (o Código Eleitoral), para ser eleito deputado à primeira volta é necessário reunir dois requisitos cumulativos: (i) ter uma maioria absoluta dos votos expressos; (ii) ter, pelo menos, um número de sufrágios igual a um quarto dos eleitores inscritos. Nas circunscrições eleitorais onde ninguém for eleito à primeira volta, por não reunir esses requisitos, será disputada uma segunda volta. Aí podem concorrer os candidatos que tenham tido um sufrágio pelo menos igual a 12,5% dos eleitores inscritos. No caso de apenas um candidato ter preenchido esses requisitos, o segundo mais votado na primeira volta poderá também disputar a segunda. (No caso de nenhum dos candidatos terem preenchido tais requisitos passam à segunda volta os dois mais votados). Na segunda volta é eleito o candidato mais votado, sendo suficiente uma maioria relativa.
5. As legislativas, mais do que as eleições presidenciais, permitirão avaliar melhor a dimensão do futuro impacto político-eleitoral da FN e de Marine Le Pen. Para esta, as presidenciais provavelmente foram mais uma espécie de ensaio para se afirmar como líder da oposição. Para já, a vitória nunca esteve realisticamente ao seu alcance — outra coisa poderá ser em 2022, se a sua afirmação continuar. Assim, após as legislativas será possível perceber, com mais nitidez, em que medida o sistema político-partidário foi estruturalmente modificado, ou se ocorreu apenas um episódio conjuntural, estando a vaga dos partidos anti-sistema em refluxo. Até agora, a FN tem sido um partido largamente isolado do resto do espectro político. Tradicionalmente, nas eleições legislativas anteriores, os seus candidatos que ficavam em primeiro lugar sem atingir maioria absoluta fracassavam na segunda volta pelas coligações que se formavam contra estes. A direita tradicional — fundamentalmente o grupo de partidos que integram, Os Republicanos e também a União dos Democratas e Independentes —, sempre se recusou a entrar em coligações eleitorais com a FN, ou a apoiar os seus candidatos contra a esquerda. A conjugação da lei eleitoral francesa com a recusa de outros partidos em fazerem coligações, tem funcionado como barreira a uma representação significativa da FN no parlamento. Mas isso poderá ser passado.
6. Por tudo isto, no dia seguinte à eleição presidencial inicia-se outra batalha política de envergadura: a da conquista de lugares no novo parlamento. Se a transferência de votos para a FN de Marine Le Pen continuar, seja da direita tradicional, seja de outros sectores contestatários da sociedade, poderá mostrar-se decisiva nas legislativas em vários círculos eleitorais. A perspectiva é de um número invulgarmente elevado de casos envolver uma disputa eleitoral entre três candidatos na segunda volta, o que aumenta as possibilidades dos candidatos locais da FN serem eleitos. Em tal cenário, a FN poderá passar dos actuais dois deputados para um grupo parlamentar com duas ou três dezenas de deputados. Aqui é uma incógnita o que vale politicamente Emmanuel Macron e a sua capacidade de reverter os acontecimentos a seu favor. Terá de o mostrar, e rapidamente. Para se afirmar, precisa de recompor o espectro político. Mas os candidatos do Em Marcha! serão capazes de conquistar o espaço ao centro-esquerda (grupo Socialista, Ecologista e Republicano) e ao centro-direita (grupos Os Republicanos e da União dos Democratas e Independentes), anulando o impacto da FN, mas também a influência dos partidos tradicionais? Ou Macron acabará por se transformar num presidente fraco, refém de um sistema político fragmentado e/ou de um parlamento hostil, que acentuará o mal-estar instalado sob a presidência de Hollande e o descrédito das instituições e valores do establishment?