Somália: Zeinab foi vendida em casamento para os irmãos não passarem fome

As Nações Unidas afirmam que a seca e os conflitos na Somália, Sudão do Sul, Nigéria e Iémen estão a alimentar o pior desastre colectivo da humanidade desde a II Guerra Mundial.

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Zeinab, de 14 anos, em frente do abrigo da sua família Zohra Bensemra/Reuters

À medida que os poços da vila secavam e o gado morria no matagal seco do Sul da Somália, Abdir Hussein teve uma última oportunidade de salvar a família da fome: a beleza da filha de 14 anos, Zeinab.

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À medida que os poços da vila secavam e o gado morria no matagal seco do Sul da Somália, Abdir Hussein teve uma última oportunidade de salvar a família da fome: a beleza da filha de 14 anos, Zeinab.

No ano passado, um homem mais velho ofereceu mil dólares pelo dote dela, uma quantia suficiente para levar a família alargada até Dollow, uma cidade somali perto da fronteira com a Etiópia, onde agências internacionais de ajuda humanitária distribuem comida e água às famílias que fogem de uma seca devastadora.

Zeinab recusou.

“Preferia morrer. É melhor correr para a mata e ser comida por leões”, disse a rapariga magra de olhos escuros, numa voz aguda e suave.

“Então ficamos, morremos de fome e os animais vão comer os nossos ossos”, replicou a mãe.

Esta conversa, que foi contada à Reuters pela adolescente e pela mãe, é típica das escolhas que as famílias somalis enfrentam ao fim de dois anos de poucas chuvas. As colheitas secaram e os ossos brancos do gado estão espalhados por todo o país, situado no Corno de África.

Este desastre faz parte de um arco de fome e violência que ameaça 20 milhões de pessoas, à medida que se alastra por África, na direcção do Médio Oriente. Estende-se desde o solo vermelho da Nigéria, a Oeste (onde a rebelião jihadista do Boko Haram, que já dura há seis anos, obrigou dois milhões de pessoas a fugirem de casa), até aos desertos brancos do Iémen, a Leste (onde facções em guerra bloqueiam a ajuda humanitária enquanto crianças morrem de fome).

No meio, estão os desertos secos da Somália e os pântanos do Sudão do Sul, rico em petróleo, onde as famílias com fome que fogem da guerra civil que dura há três anos sobrevivem comendo raízes de nenúfar.

Já há fome em partes do Sudão do Sul, pela primeira vez em seis anos.

Na Somália, segundo as Nações Unidas, mais de metade dos 12 milhões de habitantes precisam de ajuda. Uma fome parecida, em 2011, agravada por anos de guerra civil, deu origem à última vaga de fome a nível mundial, que matou 260 mil pessoas. Agora, este país está novamente à beira do abismo.

Neste momento, o número de mortos ainda está na casa das centenas, mas os números vão aumentar se as chuvas entre Março e Maio falharem. As previsões não são boas.

Enquanto o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ameaça cortar o orçamento para a ajuda externa, as Nações Unidas afirmam que a seca e os conflitos nestes quatro países estão a alimentar o pior desastre colectivo da humanidade desde a II Guerra Mundial.

“Estamos num ponto crítico da história”, declarou Stephen O’Brien, secretário-geral adjunto para os Assuntos Humanitários, perante o Conselho de Segurança, em Março. “Estamos a enfrentar a maior crise humanitária desde a criação das Nações Unidas.”

As Nações Unidas precisam de 4,4 mil milhões de dólares até Julho, afirmou O’Brien. Até agora, receberam 590 milhões.

A escolha

Nas estatísticas não aparecem as escolhas devastadoras que as famílias fazem todos os dias para sobreviver.

Abrigada sob os ramos secos de um espinheiro, enquanto esperava por uma chávena de farinha, uma mãe acabada de chegar a Dollow contou que andava a dar de comer aos filhos mais novos, enquanto os mais velhos passavam fome.

Outra tinha deixado o filho doente de cinco anos à beira da estrada com familiares afastados, enquanto guiava as crianças que ainda conseguiam andar para os pontos de ajuda. Uma terceira mulher despediu-se do marido deficiente e caminhou pelo deserto durante uma semana, com o filho bebé ao colo, até ao lugar onde havia comida.

Hussein trocou a liberdade de Zeinab pelas vidas das irmãs.

“Senti-me muito mal”, contou ela, dentro da cúpula de paus, trapos e plástico que a abriga a ela e a mais 14 familiares. “Acabei com os sonhos da minha bebé. Mas, sem o dinheiro do dote, tínhamos morrido todos.”

Zeinab, cujas mãos pintadas com hena também estão cobertas com rabiscos adolescentes feitos por ela, usa um lenço apertado na cabeça e uma saia comprida e sem graça. Por baixo, há um par de calças decoradas com pedrinhas coloridas e uma vontade férrea. Quer ser professora de inglês. Quer terminar a escola. Não quer ser casada.

“Quero algo diferente disto”, disse ela, enquanto o sobrinho de dois anos rebolava nu na areia e o irmão bebé chorava baixinho.

Contra os sonhos de Zeinab estão as vidas de 20 sobrinhos, os filhos das suas três irmãs mais velhas, todas elas casadas muito cedo e todas viúvas ou divorciadas. Também há o muito cansado irmão mais velho, a irmã mais nova com um diastema e os pais de meia-idade.

Antigamente, a família tinha vacas, cabras e três burros que eram alugados com carruagens para transporte. Mas os animais morreram e Zeinab tornou-se a sua única esperança de fuga.

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A família de Zeinab em Dollow Zohra Bensemra/Reuters

Durante um mês, ela recusou, retraindo-se e fugindo quando se esqueceram de trancar o quarto dela. Finalmente, confrontada com as necessidades esmagadoras da família, Zeinab cedeu.

“Não queríamos obrigá-la,” disse a mãe, com rugas de preocupação gravadas na testa, enquanto a filha estava sentada, muito séria, ao seu lado. “Fiquei tão perturbada que não conseguia dormir. Os meus olhos estavam tão cansados que não conseguia usar uma agulha.”

O casamento

O dote foi recebido, o casamento foi celebrado e a união foi consumada. Zeinab ficou durante três dias e fugiu.

Quando a família alugou carros para fazer a viagem de 40 quilómetros até Dollow, Zeinab veio com eles. Matriculou-se na escola local, onde as paredes de madeira, cobertas com chapas de ferro onduladas, servem de salas de aula para dez professores e cerca de 500 alunos.

O marido de Zeinab veio atrás.

“Ele diz: se a rapariga não me quer, é preciso devolverem-me o dinheiro. Senão, levo-a à força”, conta Zeinab em voz baixa. “Envia-me mensagens que dizem: 'dá-me o dinheiro, senão fico contigo como teu marido'”.

A família de Zeinab não pode reembolsar nem sequer uma fracção do dote. Os seus únicos bens são dois colchões de espuma manchados, três panelas e a lona cor-de-laranja que cobre a cúpula improvisada. Não podem vender mais nada.

Então, Abdiweli Mohammed Hersi, o professor de inglês de Zeinab, decidiu intervir. Hersi já viu centenas de alunos desistirem da escola por causa da seca.

Uma rapariga saiu para trabalhar como criada, para ajudar a alimentar a família. A geração dela foi a primeira em que as filhas iam à escola. Um rapaz adoeceu e morreu; a cólera explodiu em toda a Somália, à medida que a bactéria infectou as reservas de água decrescentes.

Este ano, cinco raparigas saíram devido a casamentos forçados ou precoces, contou Hersi. Noivas jovens e relutantes não são invulgares na Somália, mas são menos habituais em tempos bons, disse o professor, pelo menos em Dollow.

“Antes da seca, havia menos casos”, explicou ele. Há um globo terrestre insuflável pendurado no tecto da sala de aula. “Há pais que dão as filhas a outros homens para receberem o dinheiro.”

O fim

Ninguém sabe quantas famílias estão a fazer escolhas como a de Zeinab.

“Não temos dados concretos, alguns relatórios revelam que os números são pequenos, mas estão a aumentar, em particular nas regiões do Sul e do Centro”, disse Jean Lokenga, presidente do departamento de Protecção de Crianças da UNICEF na Somália.

Outros grupos de ajuda humanitária contaram que muitas famílias afectadas pela seca são pobres demais para pagar dotes depois de os seus animais terem morrido. Não conheciam programas para ajudar raparigas como Zeinab.

Hersi levou Zeinab a um grupo local de ajuda humanitária, que a levou ao grupo italiano Cooperazione Internazionale. O coordenador regional, que estava de visita numa viagem com financiadores da União Europeia, decidiu intervir.

“Temos de fazer alguma coisa por esta rapariga”, disse Deka Warsame, ao servir chá aos colegas que se tinham reunido para ouvir a história, enquanto a chamada para as orações soava pelos telhados. “Senão, vai haver uma violação todas as noites”.

A equipa de Warsame fez uma recolha de fundos e obteve dinheiro suficiente para reembolsar o dote. Warsame disse a Zeinab que o grupo ia servir de mediador num encontro entre os homens das duas famílias. O marido iria recuperar o dinheiro se se divorciasse dela perante testemunhas.

Os olhos escuros de Zeinab ergueram-se do chão.

“Vou ser livre?” perguntou ela.

Reuters

Tradução: Rita Monteiro