Mais investimento público, sim, mas com rigor
Longe vai o tempo em que a escolha dos projetos de investimento público era questão de importância secundária.
Não é segredo para ninguém que me encontro entre aqueles que veem nos investimentos de iniciativa pública, em particular em infraestruturas, uma ferramenta importante da política económica na promoção a prazo de objetivos de crescimento económico e de criação de emprego. Também não é segredo que me encontro entre aqueles que lamentam que nesta área tenhamos passado dos 80 para os oito. Do investimento indiscriminado do passado à (quase) ausência de tal investimento no presente. Mais importante ainda, não é segredo que estou entre aqueles que pensam que uma recuperação séria dos investimentos de iniciativa pública só pode e deve existir num contexto de grande rigor e isenção nas análises técnicas subjacentes às decisões políticas.
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Não é segredo para ninguém que me encontro entre aqueles que veem nos investimentos de iniciativa pública, em particular em infraestruturas, uma ferramenta importante da política económica na promoção a prazo de objetivos de crescimento económico e de criação de emprego. Também não é segredo que me encontro entre aqueles que lamentam que nesta área tenhamos passado dos 80 para os oito. Do investimento indiscriminado do passado à (quase) ausência de tal investimento no presente. Mais importante ainda, não é segredo que estou entre aqueles que pensam que uma recuperação séria dos investimentos de iniciativa pública só pode e deve existir num contexto de grande rigor e isenção nas análises técnicas subjacentes às decisões políticas.
Neste contexto, muito me tenho lembrado de uma história que me foi contada nos anos 70 por um professor de economia do planeamento, nos meus tempos de faculdade, para descrever os diferentes sistemas de planeamento que então existiam no mundo. Dizia o professor que existiam três grandes tipos de planeamento. O primeiro era o planeamento “compulsivo”, como o que existia nos países do antigo bloco soviético, por exemplo. O segundo era o planeamento “indicativo”, como em algumas democracias avançadas, como seja nos países escandinavos, por exemplo. E, finalmente, existia o chamado planeamento “decorativo”, como era o caso da América Latina, região de onde este meu professor era aliás oriundo, e que em Portugal poderia ser classificado como “só para inglês ver”.
Esta classificação de “decorativo” assenta perfeitamente às análises de viabilidade económica e financeira, nomeadamente análises de custo-benefício, de projetos de investimentos públicos em infraestruturas em Portugal. De facto, historicamente falando, estas análises ou não são feitas, ou se são feitas, são devidamente ignoradas no processo de decisão política. E se não são ignoradas no processo de decisão política, então é porque, com toda a probabilidade, não são rigorosas e isentas. Há, naturalmente, exceções a esta regra, mas fica o registo de que as decisões políticas em matérias de investimentos de iniciativa pública foram em muitos, se não na maioria, dos casos feitas ignorando a questão da viabilidade económica e financeira dos projetos em questão. Penso, aliás, ser impossível perceber a fundo os problemas que hoje existem com as parcerias público-privadas sem perceber que na raiz do problema estão em muitos casos projetos de investimento de iniciativa pública sem qualquer viabilidade económica e financeira. O caso das subconcessões rodoviárias é disso um caso paradigmático.
Consigo entender que a reação a esta postura possa ser a de pensar que esta é uma questão meramente técnica e que a minha preocupação, portanto, é meramente tecnocrática. Mas não é assim, de todo em todo. É uma questão crucial para o próprio futuro dos investimentos de iniciativa pública que tanto fazem falta ao país. Longe vai o tempo em que a enorme escassez de infraestruturas e a relativa abundância de financiamento (entendam-se os gloriosos anos 90 do século passado) tornava a questão da escolha dos projetos de investimento de iniciativa pública a adotar de facto uma questão de importância secundária. Nos anos 90, era difícil pensar em projetos de investimento que não fossem viáveis, tal era a escassez de infraestruturas, e que não fossem exequíveis dadas as relativas facilidades de financiamento, mormente através de fundos comunitários. Neste contexto, percebe-se que a tendência natural para fazer análises decorativas “apenas para a Comunidade Europeia ver” se tenha instalado e enraizado, e nessa fase sem grandes consequências económicas e financeiras.
Mas hoje, por razões de ordem orçamental e de maior exigência por parte da União Europeia, estamos a anos-luz dessa realidade de então. Não só as infraestruturas não são tão escassas quanto uma vez foram, nem as fontes de financiamento são hoje tão abundantes. Neste novo contexto, manter alguns velhos hábitos será absolutamente mortífero. A existência de análises de projetos feitas com o maior rigor e seriedade para informarem as decisões políticas em matérias de investimentos em infraestruturas é, por todas estas razões, uma questão de sobrevivência destes mesmos investimentos.
A questão da existência de projetos rigorosos e isentos também não é uma questão meramente técnica. Existem metodologias de análise padronizadas, quer em termos comunitários, quer em termos nacionais. Sabemos bem como fazer boas análises rigorosas e isentas. Mas temos de reconhecer que todas as análises técnicas têm graus de liberdade, ou seja, têm áreas em que podem ser manipuladas. E é precisamente aqui que entra a necessidade de transparência, rigor e isenção. Por exemplo, a medida dos benefícios potenciais futuros induzidos pela criação de uma infraestrutura de transporte depende criticamente das projeções sobre o seu potencial uso futuro pela população. Estas projeções podem, e frequentemente foram, artificialmente e arbitrariamente empoladas (a este propósito, vejam-se as subconcessões rodoviárias ou o pesadelo que a ferrovia de alta velocidade poderia ter sido). O simples facto de que o uso das infraestruturas depende crucialmente do tipo de custo que os utentes tenham de pagar pela sua utilização pode ser, e foi quase sempre, ignorado (veja-se o caso das passagens das SCUT a autoestradas com portagens).
É importante salientar uma vez mais que não se trata de preconizar a ditadura da tecnocracia sobre a política. Pela sua própria natureza, as análises técnicas têm muitas limitações, mesmo quando são feitas com o máximo de rigor e isenção. É também importante reconhecer que, em última análise, as decisões são de natureza política e não meramente económica e financeira. As análises de projetos de investimentos de iniciativa pública não têm de ser nem devem ser “compulsivas” no sentido de ditarem unilateralmente as decisões políticas. O que não podem ser é meramente “decorativas”, como continua a ser o caso ainda hoje, na maioria dos casos. Têm, isso sim, de ser “indicativas”. Têm obrigatoriamente de ser uma das peças-chave, mas obviamente não a única, a informar as decisões políticas sobre investimento de iniciativa pública. A qualidade da despesa pública, que tanto ambicionamos, a sustentabilidade a prazo das nossas finanças públicas e, em último caso, o respeito pelos contribuintes atuais e futuros assim o exigem.
CIDADANIA SOCIAL — Associação para a Intervenção e Reflexão de Políticas Sociais
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico