O fotógrafo, a mulher, a filha e o futuro homem dela

Edgar Pêra roda o seu novo filme, Caminhos Magnéticos, entre Lisboa e Guimarães. Uma história sobre dinheiro e totalitarismo. O francês Dominique “Delicatessen” Pinon é o protagonista.

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Dinero. Dinero. Come to my pocket!”. Virado para um grande ecrã de onde caem notas sobre notas, Dominique Pinon abre os braços e grita esta ávida prece. Mas a frase não está no argumento. O actor francês faz apenas um intervalo lúdico entre as gravações de um monólogo da sua personagem em Caminhos Magnéticos, a longa-metragem que Edgar Pêra está actualmente a rodar entre Guimarães e Lisboa.

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Dinero. Dinero. Come to my pocket!”. Virado para um grande ecrã de onde caem notas sobre notas, Dominique Pinon abre os braços e grita esta ávida prece. Mas a frase não está no argumento. O actor francês faz apenas um intervalo lúdico entre as gravações de um monólogo da sua personagem em Caminhos Magnéticos, a longa-metragem que Edgar Pêra está actualmente a rodar entre Guimarães e Lisboa.

Na história, que o realizador foi buscar uma vez mais à escrita de Branquinho da Fonseca (1905-1974) – de onde já tirou Rio Turvo (2007) e O Barão (2011) –, Dominique Pinon é Raymond, um fotógrafo e autor de BD francês que a seguir ao 25 de Abril de 1974 se radicou em Lisboa, casou com a portuguesa Gertrudes, e desde então não voltou a Paris.

“A história passa-se no dia do casamento da filha dele [Catarina], o que o deixa muito atormentado, porque ela vai casar com um homem muito mais velho do que ela [Damião], que tem muito dinheiro, mas Raymond não sabe que felicidade é que esse ‘tipo’ pode trazer à sua filha”, explica o actor francês ao PÚBLICO no intervalo de mais um dia de rodagem, a meio da semana passada, no palco do Centro Cultural Vila Flor.

“Não se pode ter tudo na vida. Viver é sempre sentir a falta de qualquer coisa”, e “o dinheiro, por si só, não vale nada”. Estas, sim, são deixas do monólogo de Pinon no filme, e que o actor teve de repetir algumas vezes à procura do acerto entre o seu discurso e as imagens que iam sendo projectadas como “cenário” na tela daquele palco de Guimarães.

Dominique Pinon, 62 anos, é um dos rostos mais icónicos do cinema francês das últimas três décadas, e que numa filmografia já com mais de centena e meia de títulos se notabilizou principalmente com a sua colaboração com Jean-Pierre Jeunet, como em Delicatessen (co-realizado com Marc Caro, 1991), Alien: O Regresso (1997) ou O Fabuloso Destino de Amélie (2001).

Mas Edgar Pêra e o produtor Rodrigo Areias (Bando À Parte) escolheram Pinon por ser também um grande actor de teatro. “Começámos por procurar um actor argentino” – o nome de Ricardo Darín chegou a ser equacionado –, “pelo facto de o conto do Branquinho da Fonseca se passar nesse país. Mas depois chegámos à conclusão de que o importante era que fosse apenas um estrangeiro. E o Dominique Pinon é também um grande actor de teatro, com uma grande desenvoltura, e como a personagem fala muito em monólogos, eu sabia que ele seria perfeito para o filme”, explica Pêra.

Rodrigo Areias acrescenta que sentiu também essa evidência quando, numa sessão em Veneza, viu Pinon como protagonista de uma curta-metragem, Ferdinand Knapp (Andrea Baldini, 2014) – que, de resto, lhe valeria um prémio de interpretação. “Saí da sala e liguei logo ao Edgar Pêra: ‘Já descobri o actor para o teu filme’”.

Ficção virou documentário

O realizador descobriu uma edição de Caminhos Magnéticos num alfarrabista da Baixa do Porto quando aí filmava O Homem-Teatro (2001). “O livro tem dois contos, A Tragédia de Don Ramón – que é a base desta história: um pai que vê a filha casar com um homem rico questiona-se sobre a importância do dinheiro e o sentido da sua própria vida – e A Conspiração, este sobre um país que acaba de viver uma guerra civil”, explica Pêra.

Reuniu-os para o projecto do seu filme, que começou a preparar há já mais de uma década. “Juntei o ambiente de fim de guerra civil ao guião da história principal. Não me interessava uma guerra civil baseada nos conceitos de terrorismo que temos hoje, de guerra de religiões, mas antes a coisa mais antiga que se pode conhecer, que é a luta de classes”, diz o realizador e argumentista, acrescentando que preferia “ter de um lado os sem-abrigo, os espoliados, aqueles que lutam pela liberdade, e do outro a alta finança, os militares”.

Quando começou a escrever o filme, Edgar Pêra estava a pensar numa “história de ficção", mas tendo em conta a realidade em que vivemos, o filme "já é hoje mais um documentário”, observa o cineasta, referindo-se à questão do terrorismo, mas também à recente eleição de Donald Trump e às presidenciais francesas.

Dominique Pinon admite que o argumento “é algo bizarro, porque é apenas o esqueleto de alguma coisa”. Mas o título Caminhos Magnéticos atraiu-o, e também o levou a aceitar o repto de fazer o filme. “Mesmo não tendo visto nenhum dos filmes do Edgar, quis conhecê-lo: vim a Lisboa, falámos, passeámos pela cidade, vimos os lugares, e aceitei o desafio”.

Ao actor francês também interessou o facto de o cineasta português “não ter uma escrita narrativa convencional”. “Agrada-me não estar sempre a trabalhar da mesma maneira”, acrescenta Pinon, em cuja decisão pesou ainda a perspectiva de voltar a ser o protagonista de uma longa-metragem.

Vindo de “uma participação muito pequena no mais recente filme de Roman Polanski, A Partir de uma História Verdadeira (com estreia já anunciada para Cannes), com quem já fizera também uma perninha em Frantic, Pinon vai filmar ainda neste mês de Maio, em Lyon, uma série policial de televisão. “Gosto de mudar; há tantas formas de filmar como personalidades, e isso é bom, porque hoje em dia a tendência é fazerem todos igual em todo o mundo. De tempos a tempos, é bom trabalhar com poetas”, diz.

Em Junho, o actor estará de regresso a Portugal para finalizar a rodagem de Caminhos Magnéticos.

Harmonia na descontinuidade

A história do filme decorre integralmente na capital portuguesa. Mas quem conhece a filmografia do realizador de Delírio em Las Vedras sabe que os cenários iludem sempre o realismo dos lugares. “A acção é em Lisboa, e dentro da cabeça de Raymond. No conto original, era no Bairro Alto, mas eu optei pela relação com o Tejo, abrindo os espaços e situando a personagem nessa solidão nocturna que é a beira-rio”, justifica o realizador.

Apesar disso, a maior parte da rodagem está a decorrer em Guimarães, em cenários que sucessivamente vão sendo montados e desmontados na Fábrica ASA – que desde a Capital Europeia da Cultura/Guimarães 2012 se transformou num grande pólo empresarial e artístico nos arredores da cidade.

“Dado o radicalismo da proposta visual do Edgar Pêra, achámos que podíamos construir cenograficamente grande parte do filme aqui”, diz Rodrigo Areias, que na sua cidade natal criou há meia dúzia de anos a produtora Bando À Parte. “É tudo mais prático e mais barato”, acrescenta.

Depois de duas semanas de rodagem em Guimarães – incluindo, nos últimos três dias da semana passada, a cena central do casamento –, Caminhos Magnéticos vai continuar a ser filmado, em Junho, em exteriores de Lisboa, para regressar depois ao Norte para as cenas finais.

Sobre o radicalismo visual do seu cinema e o seu modo muito pessoal de encenar e iluminar, Edgar Pêra faz questão de enunciar este slogan: “Harmonia na descontinuidade”. Os planos são iluminados com cores que vão mudando repetidamente, como vimos na filmagem do monólogo de Dominique Pinon: vermelho, azul, branco, verde…

“O filme tem um ponto de partida de luz e cor que não é realista, mas é emocional e teatral. Isso vem d’O Barão, mas agora a cores. A minha ideia é trabalhar como se estivesse a filmar um espectáculo ao vivo, em que há toda a liberdade de mudar as cores, mas assegurando sempre a harmonia, essa harmonia na descontinuidade”, explica o realizador, acrescentando que esse equilíbrio “é fundamental para criar o convívio entre o cinema, a banda desenhada, as artes visuais, a instalação, a performance…”

Neste cruzamento de estéticas e linguagens entra também a constituição do elenco, que, no caso de Caminhos Magnéticos, tem a particularidade de contar com… Ney Matogrosso, figura que não sendo estranha aos plateaux de cinema, é bem mais conhecida dos palcos da música.

O ex-Secos & Molhados teve três dias de rodagem em Guimarães, onde interpretou a personagem de um espírita, André. “Muitas vezes associamos o espiritismo a África ou ao Brasil, a sociedades com ligações mais directas às raízes da espiritualidade”, diz Pêra a justificar a escolha de Ney para um elenco em que lhe interessava sobretudo “a voz e a postura” do grande intérprete brasileiro. “O Ney viu O Barão e gostou, e prestou-se a entrar no filme”.

Em declaração à Agência Lusa num intervalo da rodagem, Ney Matogrosso falou sobre a sua personagem: “É um é, que não é, mas vai sendo…”. Confessando também que não tinha uma noção exacta da sua caracterização como um todo, o actor-cantor disse: “Achava que ele era um medium ‘trambiqueiro’, mas já descobri que é outra coisa, mas não descobri exactamente para onde caminha”.

Nessa plêiade de figuras que fazem Caminhos Magnéticos, Edgar Pêra incluiu também vários músicos portugueses, como Paulo “Legendary Tigerman” Furtado, Tó Trips, Manuel João Vieira e Jorge Prendas. Ao lado de actores como Albano Jerónimo, Alba Baptista, Paulo Pires, Ângelo Torres e Teresa Ovídio, que interpreta a figura de Gertrudes, mulher de Raymond, uma actriz luso-francesa que foi sugerida pelo próprio Dominique Pinon, que com ela contracenou na única vez em que trabalhara anteriormente em Portugal, na comédia policial Quasimodo d’el Paris  (Patrick Timsit, 1999), rodado entre a Batalha e a Nazaré, e que acabou por não chegar às salas portuguesas.

Caminho Magnéticos, que tem um orçamento um pouco superior a um milhão de euros, tem estreia projectada para o próximo ano, e Rodrigo Areias espera que ele fique pronto antes do Festival de Cannes desse ano.