Esta é uma exposição sobre o racismo em que o comissário é um optimista
No Padrão dos Descobrimentos estão reunidos 500 anos de pintura, escultura, cerâmica e fotografia para ajudar a perceber como evoluiu a discriminação, algo que está muito longe de ter a ver apenas com a cor da pele.
Logo a abrir há uma pintura do começo do século XVI, de Quentin Metsys, que pode causar alguma estranheza numa exposição sobre racismo, mas só a quem não conhecer a obra do seu comissário, o historiador Francisco Bethencourt, em particular o livro Racismos: Das Cruzadas ao Século XX (Temas & Debates). O óleo do pintor flamengo é uma Flagelação de Cristo em que Jesus está atado a uma coluna, rodeado de homens que troçam dele, rindo-se e puxando-lhe o cabelo. Uns limitam-se a observar, outros parecem claramente contentes por testemunhar esta cena de martírio.
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Logo a abrir há uma pintura do começo do século XVI, de Quentin Metsys, que pode causar alguma estranheza numa exposição sobre racismo, mas só a quem não conhecer a obra do seu comissário, o historiador Francisco Bethencourt, em particular o livro Racismos: Das Cruzadas ao Século XX (Temas & Debates). O óleo do pintor flamengo é uma Flagelação de Cristo em que Jesus está atado a uma coluna, rodeado de homens que troçam dele, rindo-se e puxando-lhe o cabelo. Uns limitam-se a observar, outros parecem claramente contentes por testemunhar esta cena de martírio.
“Todos os estereótipos estão lá”, diz o académico português que dá aulas no King’s College, em Londres, “os narizes grandes, aduncos, a boca, o riso… Estes homens são claramente judeus.” E sendo judeus, explica, isso torna pertinente a inclusão da obra de Metsys numa exposição que quer mostrar que o racismo é muito anterior à teorização que dele se faz (a palavra só surge no final do século XIX) e que está longe de ter a ver apenas com uma discriminação baseada na cor da pele.
“Se concentrarmos o racismo na cor da pele, pomos de fora a perseguição contra os cristãos novos em Portugal e noutros países, excluímos dois dos principais genocídios do séculos XX, o dos judeus e o dos arménios”, explica ao PÚBLICO Bethencourt, repetindo a definição de racismo que formula no seu livro, “depois de a trabalhar durante anos para que fosse suficientemente ampla”, e a que há-de recorrer mais do que uma vez durante a visita guiada à pequena exposição do Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, Racismo e Cidadania integrada na Lisboa 2017 Capital Ibero-Americana de Cultura: “Preconceito face a descendência étnica combinado com acção discriminatória. Se o dissermos assim podemos defender que a perseguição aos judeus e muçulmanos em Portugal nos séculos XV e XVI, é racismo.” Neste caso como noutros, explica, a distinção entre descendência e religião não existe, daí terem continuado a ser perseguidos mesmo depois de terem sido violentamente forçados a converterem-se ao cristianismo, tanto pela Inquisição como pelas leis civis, que vedavam o acesso a universidades, conselhos municipais ou ordens religiosas e militares a todos os que tivessem sangue judeu ou muçulmano nas últimas quatro gerações.
“No meio da discriminação generalizada, havia casos isolados de integração, num clima de grande ambiguidade”, acrescenta o historiador, que prefere não alimentar a polémica relativa à recente visita do Presidente da República à ilha de Gorée, no Senegal (neste antigo entreposto de escravos usado pela coroa portuguesa durante séculos, Marcelo Rebelo de Sousa preferiu falar da abolição da escravatura do que reconhecer o papel determinante os portugueses tiveram no tráfico de mais de cinco milhões de pessoas de África para a Europa e, sobretudo, para o Brasil).
“Parece-me significativo que o Presidente tenha lá ido, mesmo com a sua visão optimista. Toda a história de potências colonizadoras como a portuguesa tem lados sombrios. O que é preciso é confrontar o passado para ultrapassar esse passado.”
É porque gosta do tempo longo, diz, que Francisco Bethencourt quis abordar a tensão entre racismo e cidadania que caracterizou a expansão portuguesa entre os séculos XV e XX, período em que se expulsaram muçulmanos, se forçou a conversão de judeus, se ocuparam o Brasil e territórios em África e na Ásia, se assistiu a mais de 400 anos de escravatura e depois à sua abolição, e se procedeu à descolonização, com todos os desafios e dificuldades que impôs a um e outro lado.
É através da pintura, da escultura, da cerâmica, da fotografia, da gravura, do vídeo, da publicidade e de uma pequena colecção etnográfica que Racismo e Cidadania quer levar os que a visitem a reflectir sobre os processos históricos que conduziram à segregação de minorias em território nacional e à descriminação das populações locais nas antigas colónias.
“O importante é que as pessoas olhem para a história para melhor compreenderem o presente.” Um presente que está longe de ser perfeito, reconhece, mas que o historiador vê com grande optimismo. “A última secção da exposição é consagrada ao mundo pós-colonial, o mundo pós-Revolução de 1974 em que há acesso à cidadania, em que o racismo é punido por lei. Se desapareceu? Não, claro que não, mas já se fez um caminho longo.”
Teoria das raças
Dividida em dois grandes núcleos, o primeiro focado no período do século XVI ao XVIII, o segundo nos séculos XIX e XX e na colonização moderna, Racismo e Cidadania (até 3 de Setembro) começa por expor o preconceitos contra judeus e muçulmanos, ainda no século XV, seguindo depois para uma secção em que se evidencia a inferiorização de africanos e asiáticos ao longo de centenas de anos, através de objectos de submissão dos escravos que os portugueses começaram a traficar em larga escala a partir da costa ocidental africana logo no começo da expansão, reproduções de gravuras de Jean-Baptiste Debret em que se mostram os castigos corporais aplicados a estes seres humanos que eram tratados como qualquer outro bem e pinturas como a que representa o pajem negro do futuro rei Afonso VI, visto como um acessório de corte.
“Por vezes os africanos, os asiáticos e os índios do Brasil são usados para representar o demónio, outros são simplesmente instrumentos exóticos que mostram um império imenso, com muita diversidade, e têm até lugar de destaque.” Como no caso da célebre Adoração dos Reis Magos (1501-06), de Vasco Fernandes (Grão Vasco) e Francisco Henriques, em que, pela primeira vez um dos sábios é representado como um índio do Brasil, com aquele que seria certamente um insólito toucado de penas na época, pintura que o Museu Nacional Grão Vasco emprestou agora ao Padrão dos Descobrimentos. “Toda esta exposição é atravessada por ambiguidades como esta.”
Este primeiro bloco da exposição termina com a chamada teoria das raças, dos séculos XVIII e XIX, em que se faz uma distinção das várias raças em função daqueles que se julgam ser os seus atributos naturais.
Quando o termo racismo surge, muito depois de ter surgido o fenómeno, tal como o descreve Francisco Bethencourt, não tinha o significado que hoje tem, explica o historiador: “A teoria das raças multiplica o racismo e justifica-o durante muito tempo, sendo depois apropriada, instrumentalizada, pelos movimentos nacionalistas dos anos 1920 e 30 [fascismo e nacional-socialismo], mas quando surge ela resulta de uma dinâmica científica que procura compreender os vários tipos humanos.”
O segundo grande núcleo começa com imagens do tráfico de escravos que se prolongam pelo século XIX, apesar dos esforços progressivos no sentido da abolição. Daí passa-se para fotografias do trabalho forçado nas colónias; para a erotização das mulheres africanas, que podiam ser representadas nuas ao passo que a moral do regime não permitia que o mesmo se fizesse às brancas; para a forma como a imprensa procurava inferiorizar os negros, associando-os à antropofagia ou ridicularizando os seus traços físicos; e para as grandes exposições dos anos 1930 e 40, em que o ambiente dos territórios ultramarinos era recriado como se de um parque temático ou de um zoo humano se tratasse.
No último bloco, a arte contemporânea portuguesa e africana encontra-se para falar de um presente que se alimenta da memória. Do português Vasco Araújo há uma escultura inspirada nas gravuras de Debret; do angolano Nástio Mosquito um vídeo que aponta para uma reflexão pós-colonial dos artistas africanos; do moçambicano Gonçalo Mabunda uma escultura feita com restos de materiais que faz pensar em guerra, mas também nas máscaras tradicionais.
“Os artistas africanos têm vindo a participar muito no debate pós-colonial”, defende o historiador. E essa reflexão tem sido suficiente para atenuar conflitos e tensões que ainda persistem? E a história da colonização, não é verdade que é ainda, sobretudo, uma narrativa feita pelas antigas potências colonizadoras? “Eu sou um optimista. Acho que também nessa matéria se tem melhorado muito. A própria teoria das raças foi virada ao contrário pelos afro-americanos — foi usada para inferiorizar, mas eles hoje fazem da raça, do ser negro, um instrumento identitário, um motivo de orgulho que também lhes permite denunciar várias formas de discriminação.”