Podem os nutricionistas ser patrocinados pela indústria alimentar?
Há quem fique “chocado” por ver marcas como a Nestlé ou a Coca-Cola num congresso de nutrição, como o que começa hoje em Lisboa. E há quem diga que sem patrocínios é difícil organizar congressos. A presença da indústria afecta a credibilidade da classe? O debate está aberto.
O tema é nutrição e sustentabilidade, o patrocínio é de grandes marcas da indústria. Contraditório? O XVI Congresso de Nutrição e Alimentação, que decorre nesta quinta e sexta-feira em Lisboa, organizado pela Associação Portuguesa de Nutricionistas (APN) e que vai debater a sustentabilidade, conta com uma lista de patrocinadores que inclui grandes grupos da indústria alimentar como a Nestlé, ou da grande restauração, como a Gertal ou a Eurest.
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O tema é nutrição e sustentabilidade, o patrocínio é de grandes marcas da indústria. Contraditório? O XVI Congresso de Nutrição e Alimentação, que decorre nesta quinta e sexta-feira em Lisboa, organizado pela Associação Portuguesa de Nutricionistas (APN) e que vai debater a sustentabilidade, conta com uma lista de patrocinadores que inclui grandes grupos da indústria alimentar como a Nestlé, ou da grande restauração, como a Gertal ou a Eurest.
Empresas como a Compal, a cadeia Pingo Doce, laboratórios farmacêuticos como a Roche e a grande multinacional de refrigerantes The Coca-Cola Company estão também entre as que apoiam o congresso.
A questão dos patrocínios de eventos de nutrição tem causado algum desconforto entre a classe e o debate começa a surgir aqui e ali nas redes sociais. “Eu, que sou nutricionista há 20 anos, sinto uma preocupação muito grande com esta situação”, diz Miguel Rego, que trabalha no sector público. “Estes congressos são vistos pela indústria como eventos de relações públicas para comunicar que as marcas são positivas.”
Confessa que ficou “chocado” com o ambiente que viu “nos últimos dois ou três congressos”, com distribuição de amostras de “bolachas, iogurtes, pacotes de leite” num ambiente que parecia o de uma “feira de alimentação”. “Isto não é discutir ciência”, afirma. “É um espectáculo deplorável.”
Preocupa-o em particular porque o público destes eventos “são jovens, saídos da faculdade e que estão a ser doutrinados pelas marcas”. E sublinha que a influência da indústria afecta outro sector particularmente sensível, o da investigação, que, confrontada com a quebra do financiamento público, se vê forçada a recorrer ao apoio de marcas comerciais.
O PÚBLICO contactou a APN, organizadora do congresso, tendo recebido respostas por escrito de Célia Craveiro, presidente da Comissão Organizadora, e Nuno Borges, presidente da Comissão Científica. Os dois responsáveis sublinham que, no caso dos patrocínios financeiros não há interferência das empresas “na construção dos conteúdos científicos” e que “a Comissão científica/organizadora actua com total independência, não havendo, assim, qualquer conflito de interesses”.
No final do programa do congresso, disponível online no site da APN, surge a frase: “A elaboração do programa científico do congresso (excepto simpósios satélite) é da responsabilidade da Comissão Científica, que se considera isenta de quaisquer conflitos de interesse.” Os simpósios satélite aparecem no meio do programa mas têm os patrocinadores identificados: a BEL Portugal, por exemplo, vai falar de “Leite de Pastagem=Riqueza Nutricional” e há um espaço que pertence à Gertal.
Questionados sobre o facto de algumas das empresas patrocinadoras fabricarem produtos que, contendo sal, açúcar e gorduras em excesso, não correspondem aos critérios nutricionais defendidos pelos próprios nutricionistas, os responsáveis da APN reconhecem que “dentro de cada empresa podem existir marcas com produtos mais ou menos interessantes sob o ponto de vista nutricional”.
Defendem, no entanto, que a presença das marcas é “interessante como uma oportunidade única para ouvirem as considerações de cerca de 1500 nutricionistas e outros profissionais da área da alimentação e nutrição” que “podem contribuir para uma mudança positiva”, discutindo “com os promotores dos produtos alimentares a possibilidade de melhoria dos mesmos ou até a criação de novos que venham colmatar determinadas necessidades da população”.
Há marcas vetadas? “Sim, quando o conceito, produto ou serviço não traduza nenhum benefício para a presença numa exposição técnica. [Mas] as rejeições são pontuais pois [...] os potenciais patrocinadores estão muito alinhados com a dinâmica do congresso, quem nele participa e até as linhas mestres de orientação do encontro.”
“Benefício mútuo”
E o que leva uma marca a querer estar num congresso de nutrição? A Nestlé, por exemplo, está presente no pequeno-almoço do evento através da marca Fitness Cereais e regressa nas pausas para lanche da tarde do dia 4 e da manhã de 5. Por email, a Nestlé, através do seu gabinete de imprensa, explica que o congresso “é o momento chave para partilhar com os profissionais da nutrição em Portugal a informação sobre os produtos da Nestlé" e as sua "iniciativas de educação alimentar e de educação para estilos de vida saudáveis”. Há um “benefício mútuo”, porque as empresas conseguem assim “comunicar com um número elevado de profissionais e estes podem encontrar, num mesmo espaço, informação útil e relevante para a sua prática diária”.
A questão está, contudo, longe de ser consensual. O deputado André Silva, do PAN (Pessoas, Animais, Natureza) elogia o trabalho da APN e a escolha do tema da sustentabilidade para o congresso, mas, precisamente por causa disso, considera que “devido ao estatuto de interesse público e à necessidade de salvaguarda da sua imagem e credibilidade, [a APN] deve afastar-se das indústrias que possam directamente influenciar as suas análises”.
Mesmo não havendo interferência das marcas nos conteúdos, “pode existir um condicionamento inconsciente”, alerta André Silva. “Estes patrocínios são de grandes marcas da indústria alimentar e da distribuição. É expectável que nos trabalhos não se fale de modo negativo destes patrocinadores.”
Preocupa-o sobretudo o facto de, num congresso que debate a sustentabilidade, haver apoio financeiro de “empresas que têm práticas condenáveis a esse nível, marcas de refrigerantes que dizem que estão a hidratar o mundo ou marcas de lacticínios, que é um sector com impactos ambientais e baixa preocupação com o bem-estar animal”.
Existe alternativa?
Pedro Graça, director do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável, da Direcção Geral da Saúde, refere também “a retracção claríssima dos governos no financiamento público da investigação”, a influência crescente da indústria e a necessidade de “termos um pensamento mais estruturado” sobre o tema. Defende que as comissões científicas dos eventos devem sempre fazer uma declaração de interesses dizendo que o apoio que recebem não influencia as suas escolhas (e o mesmo devem fazer os congressistas, revelando sempre para quem trabalham) e os workshops de marcas devem ser claramente identificados.
Mas, acrescenta, “isso não invalida que sejam identificadas marcas ou instituições com as quais o evento não queira ver-se envolvido”. E não exclui que surjam grupos que exerçam alguma vigilância sobre estas questões, embora reconheça que essa “é mais uma tradição anglo-saxónica”.
Alexandra Bento, bastonária da Ordem dos Nutricionistas, começa por referir que “a Ordem não tem eventos com patrocínios”, mas defende a necessidade de as associações que organizam eventos criarem “um código de conduta e de boas práticas” que é algo que “ainda não existe” em Portugal neste sector. “A Ordem está disponível para participar nesse debate”, assegura.
Mas existe alternativa a estes patrocínios? Abdicar deles significa abdicar também da realização de congressos? Para André Silva ou Miguel Rego, a solução poderia passar por eventos de menor escala, que não tivessem tantos custos. Pedro Graça considera os momentos de encontro entre a classe são importantes e acha pouco realista pensar que se pode avançar sem a indústria alimentar, até porque o diálogo com ela é positivo. “Sou contra o corte radical”, afirma, voltando a frisar a necessidade de regras claras.
A APN explica que a alternativa “seria imputar os custos de execução aos participantes”, mas isso “levaria a que o custo da inscrição crescesse bastante”. “Temos que reger a actividade por princípios éticos fortes”, conclui Miguel Rego, “e a Ordem tem que garantir o cumprimento do Código Deontológico. Se não, estamos a perder mais do que ganhamos”.
No seu artigo 6.º, o Código Deontológico da Ordem dos Nutricionistas estabelece que estes profissionais devem "evitar situações em que existam potenciais conflitos de interesses e declarar publicamente a sua existência quando se verifiquem".
Durante dois dias, no Centro de Congressos de Lisboa, os nutricionistas discutirão, com oradores nacionais e internacionais, temas como a sustentabilidade e uma dieta saudável, mas também a sustentabilidade de unidades de restauração e nas contratações públicas, por exemplo. Outros temas em discussão: a obesidade na gravidez, o Inquérito Alimentar Nacional e a definição de políticas alimentares e medidas para o combate ao desperdício alimentar.