França: entre o centro e os extremos
Há quem se apresse a declarar o fim do binómio esquerda-direita. As coisas não são bem assim.
1. Numa entrevista concedida esta semana ao jornal Le Monde a propósito do seu novo livro, intitulado Civilisation: Comment nous somme devenus américains, Régis Debray começa por lembrar um adágio atribuído a Paul Valéry de extraordinária actualidade: “Tudo o que é simples é falso e tudo o que o não é, é imprestável.” E se este fosse, na verdade, o verdadeiro drama da política contemporânea? Debray não explora muito essa questão, mas ela acaba por impor-se face ao que se tem vindo a passar em múltiplas sociedades democráticas nos últimos tempos.
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1. Numa entrevista concedida esta semana ao jornal Le Monde a propósito do seu novo livro, intitulado Civilisation: Comment nous somme devenus américains, Régis Debray começa por lembrar um adágio atribuído a Paul Valéry de extraordinária actualidade: “Tudo o que é simples é falso e tudo o que o não é, é imprestável.” E se este fosse, na verdade, o verdadeiro drama da política contemporânea? Debray não explora muito essa questão, mas ela acaba por impor-se face ao que se tem vindo a passar em múltiplas sociedades democráticas nos últimos tempos.
Concentremo-nos no presente processo eleitoral francês: à esquerda e à direita assistimos ao crescimento das visões extremistas fundadas em representações simplistas da história, da economia, da política e, nalguns casos, da própria antropologia. Essa opção pelos extremos verificou-se em dois momentos distintos — primeiro nas primárias realizadas pelos dois grandes partidos de centro-direita e de centro-esquerda, depois na expressiva votação obtida na primeira volta das eleições por Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon. Tal tendência continua a manifestar-se agora nas sondagens que indicam que uma parte substancial do eleitorado de François Fillon se dispõe a votar na candidata da extrema-direita e uma componente significativa dos apoiantes de Mélenchon manifestam a intenção de não votar em Macron. O que têm em comum estas tendências mais extremistas? Entre outras coisas, uma obstinada rejeição de uma interpretação complexa das sociedades contemporâneas. A direita, perante um mundo em mutação acelerada, refugia-se nos velhos conceitos do nacionalismo, da família tradicional, da autoridade social, na exaltação da pureza étnica — se não mesmo racial —, na apologia da tradição e no culto desmedido de uma identidade opressiva e completamente fechada. A esquerda, por seu lado, recupera um discurso antiliberal, recicla o princípio da irredutibilidade do antagonismo social, adere a reivindicações corporativas, aproxima-se perigosamente de posições contrárias à afirmação do primado da liberdade individual.
Entre estas duas posições muito polarizadas subsiste um centro — que, paradoxalmente, sairá vitorioso — acusado de desenraizamento cosmopolita, de deslumbramento e insensibilidade social e de estar inserido num poder oligárquico internacional completamente alheio aos problemas e às preocupações populares. Emmanuel Macron é caricaturado como o símbolo absoluto desse universo que quase se exime de obedecer à lei da gravitação terrestre.
Perante isto, há quem se apresse a declarar o fim do binómio esquerda-direita e a sua superação por um novo tipo de antagonismo entre a “casta” e a “plebe”, entre aqueles que beneficiam com o processo de globalização em curso e a enorme multidão que dele sai prejudicada. As coisas não são bem assim, porque se fossem Marine Le Pen seria a próxima Presidente francesa. Atentemos num dado curioso: apesar de Mélenchon não apelar ao voto em Macron, só uma pequeníssima parte do seu eleitorado irá votar em Le Pen; e mau grado Fillon ter declarado peremptoriamente o seu apoio a Macron, quase metade dos seus votantes irão agora apoiar a candidata da Frente Nacional. Ora, isto significa por si só que a clivagem esquerda-direita continua a ter um vasto significado político e eleitoral. Apesar da muito aludida proximidade dos programas eleitorais da extrema-esquerda e da extrema-direita, a verdade é que subsiste um mundo de referências filosófico-políticas a separá-los. Mélenchon pode e deve ser acusado de uma atitude politicamente errada ao não apelar explicitamente ao voto em Macron, mas seria do domínio do delírio atribuir-lhe qualquer tipo de pulsão sequer aproximada com o ultramontanismo, a xenofobia e o racismo do extremismo de direita. O que nele há de preocupante é outra coisa, o seu pendor ostensivamente antiliberal que o leva a apoiar personagens tão sinistras como Maduro ou os irmãos Castro e a revelar uma excessiva complacência para com a autocracia de Moscovo.
Retomando o adágio de Valéry, seremos levados a pensar que o centro-direita e o centro-esquerda se tornaram progressivamente impopulares por rejeitarem a retórica do simplismo dogmático. Se o adágio corresponder inteiramente à realidade, então estraremos condenados, mais cedo ou mais tarde, a assistir ao triunfo de soluções simplistas e falsas. De resto, foi já isso que aconteceu nos Estados Unidos com a vitória de Trump e no Reino Unido com o triunfo do “Brexit”. Para que tal não ocorra, pelo menos sistematicamente, haverá que refletir sobre as grandes mudanças verificadas no interior dos sistemas políticos e partidários nas democracias ocidentais. Nessa perspectiva, convirá ter em atenção o que tem vindo a ser escrito por alguns importantes ensaístas que se dedicam à análise do presente, como é o caso do jornalista americano Thomas Frank. Este, num curioso livro intitulado What’s the matter with Kansas, reflete sobre a realidade política dos Estados Unidos, salientando aquele que lhe parece ser o principal paradoxo político do nosso tempo: o Partido Democrata tornou-se um partido das elites, empenhado em grandes causas societais e muito distanciado das preocupações da classe operária e dos sectores tradicionalmente identificados com a pequena e média burguesia. A sua implantação eleitoral é mais forte simultaneamente nas regiões mais ricas e nas regiões mais pobres. Já o Partido Republicano, recorrendo a um discurso anti-elites, agrada ao americano médio e a parte substancial das classes trabalhadoras com rendimentos relativamente baixos. Isto começa a passar-se também um pouco na Europa. Num contexto de grande transformação cultural, tecnológica e social é muito difícil estabelecer a distinção entre motivações revolucionárias e motivações reaccionárias. Ambas têm sempre, contudo, alguns pontos em comum: pouco apego à liberdade, escasso respeito pela democracia representativa, profunda adesão a utopias colectivistas ou comunitaristas ou até mesmo organicistas.
Emmanuel Macron vai ser quase seguramente o próximo Presidente da República da França. Como aqui afirmei na semana passada, apesar de ceder nalguns aspectos a um discurso um pouco populista, o seu programa não se afasta em nada da tradição social-democrata europeia. Será eleito com mais votos oriundos da esquerda do que da direita. É provável, e até mesmo desejável, que se empenhe na construção de uma maioria parlamentar capaz de integrar alguns elementos do centro-direita. Nesta fase da vida política francesa, este entendimento poderá revelar-se da máxima utilidade.
2. Num excelente artigo publicado no Observador, Luís Aguiar-Conraria demonstra com assombrosa clareza o carácter quase infantil da solução engendrada por alguns elementos do Partido Socialista e do Bloco de esquerda para resolver o problema da enormíssima dívida pública nacional. A minha dúvida é apenas uma e de formulação deveras simples: está o PS que conta, o que governa, o que se pronuncia nas instâncias europeias, o que se dirige aos mercados financeiros internacionais, de acordo com aquele comovente conto de fadas? Estará mesmo António Costa ao corrente de tão inusitado quanto fútil documento? Estaremos perante dois Partidos Socialistas? Um exuberantemente adolescente e outro proclamadamente adulto? Ou estaremos apenas perante um deplorável exercício de cinismo político, que em nada concorre para a saúde da nossa democracia?
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico