Sim, Le Pen pode ganhar
Marine Le Pen não tem forçosamente de chegar a Presidente para ganhar: o seu objetivo é dominar a política francesa nos próximos anos.
Parece estranho dizê-lo, dois dias depois de Marine Le Pen ter sido apanhada a plagiar três minutos de um discurso de François Fillon, mas a candidata da extrema-direita francesa pode ganhar estas eleições — e ganhará o momento político mesmo que não vença as eleições. Não me refiro portanto apenas a ganhar numa reviravolta inesperada como Trump ganhou nos EUA. Uma vitória dessas não está excluída no caso francês, mas não é só chegando a presidente que Marine Le Pen pode ganhar.
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Parece estranho dizê-lo, dois dias depois de Marine Le Pen ter sido apanhada a plagiar três minutos de um discurso de François Fillon, mas a candidata da extrema-direita francesa pode ganhar estas eleições — e ganhará o momento político mesmo que não vença as eleições. Não me refiro portanto apenas a ganhar numa reviravolta inesperada como Trump ganhou nos EUA. Uma vitória dessas não está excluída no caso francês, mas não é só chegando a presidente que Marine Le Pen pode ganhar.
Marine Le Pen ganha porque, tal como Donald Trump, já se tornou imune ao escândalo. O caso do plágio é instrutivo não só por ser um plágio mas, sobretudo, por Marine Le Pen ter sido apanhada a plagiar quando louvava a França. Para uma candidata nacionalista, que pretende ter o monopólio do sentimento patriótico no seu país, não deveria haver sentimento mais sincero nem discurso mais fácil de improvisar do que o do louvor à pátria. E nada deveria expor mais a sua hipocrisia do que a revelação de que não há no patriotismo de Le Pen qualquer sinceridade mas antes uma pura e simples instrumentalização. Só que, no fundo, já toda a gente sabia isto: não só Le Pen plagiou, como Le Pen é ela própria um plágio de todos os nacional-populistas de pacotilha que a antecederam, a começar pelo seu pai. A mulher do povo que nasceu num castelo privado, a anti-europeia que desvia milhões de euros do Parlamento Europeu para o seu partido, a política tenaz que na verdade nunca apresentou um projeto de lei e por aí afora — sobra muito pouco de autêntico em Marine Le Pen, e isso importa muito pouco aos seus eleitores. Por isso ela é, como Trump, quase indestrutível: o escândalo torna-a mais forte.
Marine Le Pen não tem forçosamente de chegar a Presidente para ganhar: o seu objetivo é dominar a política francesa nos próximos anos. E para tal é evidentemente diferente ser derrotada por 80 contra 20 por cento, como o seu pai, ou poder ficar acima dos 40 por cento como agora parece possível. Se isso acontecer, a Frente Nacional pode passar a ser, para todos os efeitos práticos, a oposição em França. Confesso que nunca imaginei que ela fosse ser objetivamente ajudada nesse desígnio — custa escrever isto — por Jean-Luc Mélenchon. Não só porque sempre acreditei que o núcleo da ideologia de Mélenchon fosse o republicanismo e não o sectarismo de esquerda, mas também porque a esquerda será a maior prejudicada por um resultado que parta a França em duas metades quase iguais de que a esquerda não faça parte.
A estratégia de Marine Le Pen foi sempre a de normalizar a Frente Nacional, “desdiabolizá-la”, como se diz em França. Pois bem, não só ela teve sucesso nessa estratégia como ainda lhe saiu um brinde em troca: a diabolização de Macron. Em princípio, deveria ser possível assumir tudo aquilo que distancia a esquerda de Macron — por exemplo, o facto de ele pretender isentar as ações em bolsa de imposto sobre as grandes fortunas — sem precisar de lhe acrescentar falsas diferenças: os supostos despedimentos na função pública no seu programa são 120 mil aposentações normais (em 500 mil) que não serão substituídas, ou seja, estão abaixo da regra de dois por um que conta com a aquiescência da esquerda para a função pública em Portugal. E sem recear sequer admitir algumas semelhanças: não se pode passar anos a defender a mutualização das dívidas europeias para depois nem sequer notar que um dos primeiros autores dessa proposta, Jean Pisani-Ferry, é o principal economista na candidatura de Macron. Mas nada disto se pode agora dizer sem arriscar tornarmo-nos no alvo da invectiva anti-Macron.
Le Pen pode, pois, ganhar as eleições numa surpresa de última hora. Mas, de certa forma, ela já ganhou politicamente a segunda volta. E o que é mais trágico é que ganhou não por algo que ela tivesse feito mas, sobretudo, pelo que alguns outros não fizeram nos últimos dez dias. O fascismo ganha inevitavelmente de cada vez que alguém falta à chamada do anti-fascismo.