Deixemo-nos imergir pelo piano de Bing & Ruth

Há notas de piano, e uma subtil tapeçaria sonora em seu torno, no magnífico No Home of the Mind, de Bing & Ruth, o Ensemble do americano David Moore, que estará em Lisboa e Braga no final do mês.

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David Moore, o compositor e pianista por trás do projecto Bing & Ruth, diz que cada piano tem a sua personalidade, é preciso saber escutá-lo para depois extrair o melhor dele Tonje Thilesen

Não é apenas música clássica, ou ambiental, ou de câmara, ou minimalista, ou cinemática, ou electroacústica, mas é um pouco de tudo isso. Não é fácil definir Bing & Ruth, notas de piano ondulando num movimento contínuo, rodeadas de ambientes electroacústicos, num constante ruminar que tanto evoca tempos, espaços e geografias, como a possibilidade de os transcender, através de uma música instrumental tão rigorosa quanto emotiva.  

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Não é apenas música clássica, ou ambiental, ou de câmara, ou minimalista, ou cinemática, ou electroacústica, mas é um pouco de tudo isso. Não é fácil definir Bing & Ruth, notas de piano ondulando num movimento contínuo, rodeadas de ambientes electroacústicos, num constante ruminar que tanto evoca tempos, espaços e geografias, como a possibilidade de os transcender, através de uma música instrumental tão rigorosa quanto emotiva.  

As notas de piano são o centro desta música, depois existe uma subtil tapeçaria sonora em seu torno, com cada tema a criar as suas imagens, mas em conexão com um sentido geral, como se todas as peças tivessem que encaixar no mesmo lugar. Por vezes aproximamo-nos do quase silêncio, outras vezes de uma sinfonia sumptuosa quando os efeitos se vão elevando em espiral.

“Limito-me a compor a música que desejo ouvir e que me povoa a imaginação”, diz o americano David Moore, o compositor e pianista por trás do projecto Bing & Ruth. “Não sou muito de fazer ligações com géneros de música ou com classificações, interessa-me mais o tipo de sensações que difunde. Nesse sentido fico satisfeito quando as pessoas dizem que a minha música as induziu a uma experiência diferente ou que as fez perder a noção do tempo e do espaço, como se fosse qualquer coisa que as transcendesse e que estivesse muito para lá delas.”

O novo álbum está aí. Chama-se No Home of the Mind e é lançado pela histórica britânica 4AD, que marcou os anos 1980 (Cocteau Twins, Dead Can Dance, This Mortal Coil), mas que não se ficou pelas linguagens etéreas, fazendo parte do seu catálogo The Pixies ou TV On The Radio. “É um orgulho e uma responsabilidade integrar uma editora com uma cronologia tão rica e diversa”, resume David, que no final do mês estará em Lisboa (23 de Maio, na ZDB) e Braga (24 de Maio, Gnration) com o seu Ensemble, para apresentar o novo disco.  

É naturalmente uma obra com pontos de contacto com as anteriores, mas também com diferenças. Em City Lake (2010), o seu Ensemble era constituído por onze músicos, enquanto em Tomorrow Was The Golden Age (2014), diminuía para sete. No novo registo são ainda menos: cinco. Para além do piano de David Moore, existe o clarinete de Jeremy Viner e os baixos, sopros e processamento de fita de Jeff Ratner, Greg Chudzick e Mike Effenberger. Mas naturalmente as diferenças não se cingem apenas ao número de elementos. Dir-se-ia que ao longo dos anos David Moore foi cortando com o que havia de supérfluo nas suas composições, criando uma ordem mais focada no último disco.

São peças para piano e ambientes electroacústicos, com a dose certa de intimidade, calor e também de alguma estranheza. As notas lânguidas vão-se emaranhando em texturas rumorosas, criando quadros de lirismo e evocação, numa sonoridade palpável que nunca resvala para os terrenos movediços do ambientalismo funcional. “Estou constantemente a compor música nova e neste último disco isso até se intensificou talvez porque é uma obra mais exigente”, afirma. “Não que seja radicalmente diferente do que já fiz — vejo-o mais como um álbum de continuação -, mas porque desde o início queria desafiar-me como compositor e pianista.” De tal forma assim aconteceu, diz, que algumas das coisas que compôs “não estava certo de as conseguir tocar” e teve “mesmo de praticar imenso para o conseguir fazer.” Nesse sentido, justifica, “este foi talvez o disco mais exigente que já concebi.”

Ao longo de meses tocava todos os dias, de manhã à noite, disciplina que pratica há muito. “A inspiração, a possibilidade de deixar-me ir, aquele lugar onde o imprevisto pode acontecer, nasce com trabalho, só assim as infinitas possibilidades do piano podem ser tacteáveis. Não me interessa estar muito tempo no mesmo lugar. Tenho necessidade de procurar coisas novas e isso implica tocar.”

Uma das formas de se desafiar é tocar em contextos a que não está habituado. No caso do presente disco obrigou-se a tocar em numerosas sessões nos EUA e Europa, sempre com pianos diferentes — “cada piano tem a sua personalidade, é preciso saber escutá-lo primeiro, para depois extrair o melhor dele” — antes de se juntar aos restantes cinco músicos para as sessões de gravação numa igreja em Nova Iorque. “As gravações foram rápidas porque queria captar a espontaneidade do momento, quase como nos velhos registos de jazz.”

Ele que nasceu no Kansas, expõe que as vastas paisagens da infância continuam a ser influência na forma como compõe, mas “não se trata de estar a olhar para uma montanha ou para uma planície e a seguir ir tocar para reproduzir seja lá o que for”, adverte com humor. “É antes um processo subconsciente onde me ponho em situações de desafio. Ou seja, gosto que a música capte o espaço envolvente, mesmo que isso não seja captável pelo ouvinte, embora possa funcionar como segunda camada.”  

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Tonje Thilesen

Os músicos que o acompanham fazem-nos há anos. Conhecem a sua forma de compor. Sabem o que gosta de extrair dos instrumentos. Revêem-se na forma subtil de abordar a matéria musical. Não espanta que diga que quase não precisam de falar para se entenderem. “A minha linguagem é facilmente descodificável por todos o que é óptimo porque permite ir para um outro nível de comunicação desde a entrada. No passado tinha que dar indicações muito precisas aos músicos. Agora componho e deixo que cada um traga a sua personalidade para a música porque sei que posso confiar na sua leitura.”

Em 2006, quando iniciou a aventura Bing & Ruth, fê-lo com o objectivo de tocar para um público não académico, menos influenciável pelas nomenclaturas tradicionais, estejam elas ancoradas na clássica ou no jazz, as duas vertentes que abordou enquanto estudante. Mais de dez anos depois é da opinião que a música mudou e que as barreiras que criam hierarquias e diferenças artificiais tendem a desvanecer-se. O que não significa que não se criem outras, como chamar neoclássicos ou pós-clássicos aos que se movimentam nos interstícios. “As pessoas tendem a necessitar de comparações e de se situar, o que não tem mal nenhum, embora por vezes essas semelhanças sejam superficiais”, diz. “Às vezes basta dizer que toco piano ou que tive estudos clássicos para ser comparado a uma série de gente que, musicalmente, pouco ou nada tem a ver com o que faço.”

David Moore fala de outros pianistas com trajecto pelos conservatórios como Nils Frahm, Peter Broderick, Max Richter ou Lubomyr Melnyk, ou de projectos como A Winged Victory For The Sullen ou Stars Of The Lid, muitas vezes apelidados de neoclássicos, pós-clássicos ou clássicos contemporâneos, ou seja, um sem número de qualificações que só revelam dificuldade em situá-los, o que se compreende por se colocarem numa terra híbrida, algures numa vasta fronteira de catalogações mutáveis.

No caso de Bing & Ruth é como se o projecto criasse pontes invisíveis entre escolas e geografias, tanto fazendo ressoar o minimalismo de Steve Reich ou Terry Riley, como a sensibilidade fílmica das bandas-sonoras de Thomas Newman ou as palpitações contemporâneas de uma série de figuras já nomeadas. Por vezes encontram-se nos palcos do mundo e o facto de se moverem em terrenos instáveis faz com que tanto possam tocar em salas de concertos rock, como em auditórios para música clássica, em espaços de arte contemporânea ou em igrejas.

“Não me atemorizam essas mudanças porque gosto do desafio de, todas as noites, poder ser surpreendido pela acústica, a temperatura e a paisagem humana que é diversa de sala para sala”. Já sobre digressões de longa duração não tem uma opinião positiva. “Estar fora de casa durante muito tempo para cumprir os mesmos rituais todos os dias é possível, mas criativamente não é o melhor, principalmente para quem tenta fazer sempre qualquer coisa de distinto todas as noites.” No início da presente digressão tocavam o álbum do princípio ao fim. “Foi a forma de aprofundarmos a nossa relação com os temas.” Agora é diferente. “Agora tentamos criar um ambiente de alguma transcendência. Já não estamos agarrados ao disco. Deixa-mos ir com ele e esperamos que as pessoas também se deixem imergir pelo som.”