Fiscalidade agressiva e Fisco amável
"Planeamento fiscal" é, na maior parte das vezes, o eufemismo usado para designar esquemas para evitar pagar impostos - esquemas legais e ilegais, mas todos imorais.
O Decreto-Lei nº 29/2008, de 25 de fevereiro, afirmando a intenção de regular e obrigar a práticas recomendadas pela OCDE para combater a fraude e a evasão fiscais, estabeleceu deveres de comunicação, informação e esclarecimento à administração fiscal para prevenir e combater o planeamento fiscal abusivo e agressivo.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O Decreto-Lei nº 29/2008, de 25 de fevereiro, afirmando a intenção de regular e obrigar a práticas recomendadas pela OCDE para combater a fraude e a evasão fiscais, estabeleceu deveres de comunicação, informação e esclarecimento à administração fiscal para prevenir e combater o planeamento fiscal abusivo e agressivo.
Veio obrigar intermediários fiscais, designados como "promotores" - instituições de crédito e financeiras, revisores oficiais de contas, sociedades de advogados, solicitadores e contabilistas -, residentes no território nacional, a comunicar ao Director-Geral dos Impostos (DGI) esquemas propostos ou ações adotadas com o único ou principal objetivo de obter vantagens fiscais.
O benefício fiscal é entendido como a redução, eliminação ou adiamento temporário do imposto ou a obtenção de benefícios que não seria alcançado, no todo ou em parte, sem a utilização do dito plano, esquema ou ação. Note-se que se presume que o esquema ou ação é legal. O DL 29/2008 aplica-se a esquemas ou ações de planeamento fiscal que impliquem vantagens fiscais relativas, total ou parcialmente, no Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC), Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS), Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) e Imposto de Selo (IS).
Mas, curiosamente, as "entidades promotoras" (intermediários) não têm de identificar as partes interessadas (utilizadores) relativamente às quais o esquema de planeamento fiscal foi proposto ou adoptado. Nos casos em que os intermediários não estejam estabelecidos no território nacional, o DL prevê que os próprios utilizadores são obrigados a informar a administração fiscal sobre o esquema. Determina coimas, mas apenas para a falta de comunicação ou comunicação fora do prazo. Já para os intermediários que propõem ou apliquem esquemas considerados abusivos pela Autoridade Tributária... não estão previstas sanções!
O nível de amabilidade fiscal para os potenciais "abusadores" ou promotores e utilizadores de planeamento fiscal agressivo vai mais longe ainda: após a comunicação, não há - pasme-se! - qualquer autorização processual ou decisão fiscal a tomar por parte da Autoridade Tributária! O DL limita-se a indicar que o DGI "recebe e trata todas as comunicações", "determina o estudo, a concepção e proposta de medidas legislativas e regulamentares sempre que o julgue necessário em face do tipo, natureza, relevo e utilização do esquema de planeamento fiscal"; "determina a inclusão na proposta de plano nacional de atividades da inspeção tributária ações de inspeção dirigidas aos esquemas de planeamento fiscal que apresentem maior utilização ou relevância"; "podendo ainda decidir realizar ações específicas de inspeção tributária".
Pode! Não tem de...Tanta amabilidade enfurece qualquer contribuinte pagador dos impostos que é implacavelmente intimado a pagar pelo fisco! Pois para os contribuintes intermediados pelos "promotores", mesmo que a Autoridade Tributária esteja perante um descarado esquema de planeamento fiscal agressivo destinado a sonegar milhões à receita do Estado e favorecer, por exemplo, uma multinacional em detrimento de Pequenas e Médias Empresas concorrentes, o DGI pode, amavelmente, fechar os olhos e nada mandar inspeccionar, nem corrigir, nem colectar, nem sancionar!
Justificações não faltarão ao DGI: tem poucos funcionários, pouco apetrechados para ir atrás da criminalidade altamente organizada e de alvo colarinho que promove e aproveita estes esquemas! E haverá quem pense que, quando um dia sair do Estado, pode arranjar emprego em empresa de auditoria, de contabilidade, ou em escritório de advogados promotores destes esquemas. Ou em multinacional ou empresa dos utilizadores que deles beneficiaram... O mesmo se diga de governantes que não se importam de deixar o seu nome ligado a um tão amável decreto-lei, produzido para fingir que se combate a fraude e a evasão fiscais: o Ministro das Finanças da época, Teixeira dos Santos, é hoje presidente de um "promotor", o BCI. E Carlos Lobo, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais em 2008, é desde 2012 "partner" em consultoria fiscal na Ernst & Young, um dos "Big Four" "promotores de planeamento fiscal" a nível global.
"Planeamento fiscal" é, na maior parte das vezes, o eufemismo usado para designar esquemas para evitar pagar impostos - esquemas legais e ilegais, mas todos imorais - que os "promotores" engendram e vendem aos "utilizadores". Tudo depende muito do jogo de aparências e de sugerir transparência onde reina a opacidade.
Por isso o DL 29/2008 encarregou a DGI de criar uma base de dados nacional dos regimes de planeamento fiscal, a ser disponibilizada aos serviços competentes para efeitos da execução da ação de inspeção fiscal. Sucede, porém, os regimes considerados abusivos devem ser publicados no site da Direcção-Geral dos Impostos, mas... sem mencionar o contribuinte ou o promotor a que se referem. A amabilidade prossegue e serve a opacidade do sistema e do esquema.
Ou seja, os promotores e os beneficiários de planeamento fiscal abusivo e agressivo podem continuar a abusar e agredir! A lei limita-se a determinar a publicitação do “entendimento da Direcção-Geral dos Impostos de que certo esquema ou atuação de planeamento fiscal, descrito em termos gerais e abstratos, é reputado de abusivo e pode ser requalificado, objeto de correções ou determinar a instauração de procedimento legalmente previsto de aplicação de disposições anti-abuso” (artigo 15). Mas os promotores e beneficiários em causa não recebem sequer uma indicação direta de que o esquema é ilícito. E, assim, escusam de se preocupar com sanções ou exigência de que paguem ao menos os impostos em falta... O manto diáfano da amabilidade do legislador e o peso dos constrangimentos do DGI protege grandes abusadores e agressores fiscais! Que se dane a justiça contributiva e os idiotas dos contribuintes que teimam em pagar os impostos devidos!
A prova provadinha de que este Decreto-lei não passou de um embuste no combate contra a fraude e evasão fiscais é que em 9 anos, desde 2008, a Autoridade Tributária apenas publicou 13 esquemas de planeamento fiscal que considerou abusivos! Sendo que os mais recentes lhe foram comunicados...em 2010.
De facto, logo em 2011, com o governo Passos/Portas e sob a benção e os olhos bem fechados da "troika", promotores e beneficiários de esquemas de planeamento fiscal abusivo e agressivo perceberam que não tinham mais de se preocupar sequer em comunicar o que quer que fosse ao DGI: um dos seus pares, o advogado Paulo Núncio, "experto" em planeamento fiscal abusivo e agressivo via "offshores", passou a reinar como secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.