As palavras da música e a música das palavras ocuparam o CCB

A edição 2017 do festival foi dominada pelos intérpretes portugueses, entre os quais se destacaram Susana Gaspar e o Ludovice Ensemble.

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As Letras da Música foi o tema da edição dos Dias da Música de 2017, que ocuparam o Centro Cultural de Belém (CCB) das 21h30 de sexta-feira até este domingo. O tema permitia à partida uma programação diversificada – que incluiu desde orquestras sinfónicas e agrupamentos de câmara a Sérgio Godinho – e, mais uma vez, teve a afluência de um público numeroso e entusiasta. A união da palavra e da música é intemporal e transversal a todas as culturas e a quase todos os géneros e correntes estéticas, tanto da tradição erudita como popular, surgindo também em várias obras puramente instrumentais por via da inspiração literária. Sem a preocupação de marcar momentos-chave da História da Música (do programa estiveram ausentes os motetes politextuais dos finais da Idade Média, a seconda prattica de Monteverdi, o Sprechgesang de Schoenberg ou o notável contributo de Berio em torno da voz humana, para citar apenas alguns exemplos), estes Dias da Música apresentaram de forma mais ou menos aleatória nos seus 60 concertos aspectos das múltiplas relações entre texto e música, da simbiose à simples justaposição.

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As Letras da Música foi o tema da edição dos Dias da Música de 2017, que ocuparam o Centro Cultural de Belém (CCB) das 21h30 de sexta-feira até este domingo. O tema permitia à partida uma programação diversificada – que incluiu desde orquestras sinfónicas e agrupamentos de câmara a Sérgio Godinho – e, mais uma vez, teve a afluência de um público numeroso e entusiasta. A união da palavra e da música é intemporal e transversal a todas as culturas e a quase todos os géneros e correntes estéticas, tanto da tradição erudita como popular, surgindo também em várias obras puramente instrumentais por via da inspiração literária. Sem a preocupação de marcar momentos-chave da História da Música (do programa estiveram ausentes os motetes politextuais dos finais da Idade Média, a seconda prattica de Monteverdi, o Sprechgesang de Schoenberg ou o notável contributo de Berio em torno da voz humana, para citar apenas alguns exemplos), estes Dias da Música apresentaram de forma mais ou menos aleatória nos seus 60 concertos aspectos das múltiplas relações entre texto e música, da simbiose à simples justaposição.

Esta edição ficou também marcada pela participação dominante dos intérpretes portugueses, sintoma da vitalidade e da qualidade das novas gerações, mas provavelmente também da contenção de custos. Como tem sido habitual, decorreram em paralelo actividades pedagógicas pela Fábrica das Artes, conversas e concertos em espaços abertos e realizaram-se os Mini-Dias da Música e a quarta edição do evento Projectar o Futuro com Arte, com a presença de três orquestras formadas por alunos de música do ensino artístico e profissional.

Dada a temática proposta, além dos músicos esta edição do CCB teve também como protagonistas vários actores, como sucedeu, por exemplo, no recital Shakespeare na Música, em que Rita Blanco se associou à soprano Susana Gaspar e ao pianista Nuno Vieira de Almeida. “Como foi possível que nenhum compositor maior, a começar por Britten, tivesse deixado de fora a obra-prima poética que são os sonetos de Shakespeare?”, escreveu Nuno Vieira de Almeida nas notas ao programa, referindo igualmente que grande parte dos compositores “agarrou apenas na trama” de algumas peças ou em fragmentos de textos do grande dramaturgo inglês para “fabricar objectos musicais”.

Partindo deste panorama heterogéneo, o pianista construiu inteligentemente um recital em que os sonetos de Shakespeare funcionam como reflexão do que é dito nas peças musicais, abrangendo estas universos tão diferentes como os de Purcell, Haydn, Schubert, Berlioz, Richard Strauss, Korngold ou Verdi. A declamação inicialmente apressada de Rita Blanco, pontualmente apoiada pelo piano, foi ganhando pouco a pouco maior sintonia com o texto, alternando com a prestação de alto nível de Susana Gaspar, bem ilustrativa da versatilidade da cantora ao nível dos diferentes estilos, da sua atenção cuidada à relação texto-música e à beleza da sonoridade da pronúncia das diferentes línguas. Depois da intensidade expressiva com que cantou An Sylvia, de Schubert, da clareza de dicção demonstrada em She never told her love, de Haydn, e nas canções de Korngold e da afinidade com o imaginário expressionista dos Ophelia Lieder, de Richard Strauss, Susana Gaspar encerrou o recital com uma tocante interpretação da Ave Maria, do Otello, de Verdi, mostrando como está à altura dos grande papéis da ópera italiana oitocentista e dos seus requisitos em termos do colorido vocal e do conteúdo dramatúrgico.

De Sophia a Molière

Entre as propostas no âmbito da criação portuguesa, foi reposta em versão de concerto (com breves apontamentos cénicos) a ópera de câmara O Rapaz de Bronze, com música de Nuno Côrte-Real e libreto de José Maria Vieira Mendes a partir do conto de Sophia de Mello Breyner Andresen. Estreada em 2007 na sequência de uma encomenda da Casa da Música e do Teatro de São Carlos, a obra assume, nas palavras do compositor, “uma relação aberta com o passado” na forma como assimila e recicla livremente estilos e influências. Se por um lado, essa paleta de recursos contribui para um resultado pleno de contrastes e para uma caracterização bem distinta de cada personagem, no seu todo o discurso multiforme de O Rapaz de Bronze carece de unidade, mas poderá ganhar novos sentidos em diálogo com um boa encenação que faça justiça à magia do jardim e à interacção entre as diferentes flores. Com prestações distintivas do violoncelo solo (Filipe Quaresma) e da percussão (Elisabeth Davis), entre outras, o Ensemble Darcos dirigido pelo próprio Nuno Côrte-Real foi um parceiro eficaz dos cantores, entre os quais se encontravam Dora Rodrigues (que fez o papel de Florinda com grande convicção), Eduarda Melo (um expressivo Rapaz de Bronze), João Cipriano (um assertivo Gladíolo), Bárbara Barradas (Orquídea), Cátia Moreso (Tulipa), Inês Simões (Rosa), André Lacerda (Begónia) e Job Tomé (cravo), intérpretes que assumiram com graça as restantes flores.

No sábado à noite, a Orquestra XXI, sob a direcção de Dinis Sousa, lançou-se num desafio de grande envergadura: a interpretação da Paixão segundo São João, de J. S. Bach, obra escolhida para o oitavo estágio deste projecto que reúne jovens músicos portugueses residentes no estrangeiro. Outra novidade foi a participação do Coro XXI, reunido para o efeito. Se, no início, o conjunto vocal demonstrou algum desequilíbrio na fusão das vozes dentro de cada naipe, foi depois ganhando consistência, acabando por ter uma boa prestação, tanto nos corais mais introspectivos, como nas intervenções dramaticamente mais incisivas dos coros, incluindo a clareza das suas texturas polifónicas.

No que diz respeito à orquestra, apesar de um resultado global satisfatório, um trabalho mais minucioso nas cordas ao nível da articulação e do fraseado pode ainda vir a ser aperfeiçoado, havendo contudo várias intervenções a realçar, como os solos dos oboés e das flautas. Convém ainda ter em conta que realizar a Paixão segundo São João com uma orquestra moderna coloca vários problemas e implica soluções de compromisso que não fazem justiça aos timbres originais, já que Bach previu o uso de instrumentos como oboés de amor, oboés da caccia, a viola da gamba ou as violas de amor (estas últimas substituídas por violinos com surdina). Um contributo de relevo foi o da qualidade dos solistas, contando com a bela voz e a eloquência de João Terleira, que acumulou as funções de Evangelista e as árias de tenor, com sólidas intervenções de André Henriques (Cristo) e Diogo Mendes (Pilatos), a sensibilidade estilística do barítono Hugo Oliveira e o timbre luminoso da soprano Raquel Camarinha.

Hugo Oliveira e Armando Possante (juntamente com Orlanda Velez-Isidro, André Lacerda, Carlos Monteiro, Inês Lopes, Joana Nascimento e Rui Aleixo) fizeram também parte do grupo de cantores que, em conjunto com os instrumentistas do Ludovice Ensemble, dirigido ao cravo pelo seu director artístico Miguel Jalôto, deu vida a um dos mais memoráveis concertos destes Dias da Música: Tudo aquilo que não é prosa é verso; e tudo o que não é verso é prosa. São palavras da famosa comédia-bailado O Burguês Fidalgo, de Molière, com música de Jean-Baptiste Lully, estreada em 1670 na presença de Luís XIV. Os deliciosos intermédios que acompanham as aventuras de Monsieur Jourdain (burguês que quer ascender socialmente, mas a quem falta cultura) e que incluem numerosas danças, personagens típicas e o uso de línguas e estilos de diferentes nações (França, Espanha e Itália) foram servidos por interpretações marcadas por grande rigor técnico, conhecimento estilístico profundo das linguagens estéticas do século XVII e apurado sentido teatral e musical. Um ponto alto ocorreu na cena dos espanhóis (com André Lacerda, Carlos Monteiro e Hugo Oliveira) e na divertida caracterização dos velhos burgueses tagarelas (Joana Nascimento e Armando Possante). Resta perguntar: para quando uma produção integral desta obra, incluindo a parte teatral, cénica e coreográfica? Uma parte do trabalho já está feita.