A história dos primeiros 100 dias – e porque Trump tem razão acerca do “marco ridículo”
Dizem os especialistas que os presidentes, o público e os meios de comunicação fariam melhor se prestassem menos atenção a um prazo arbitrário.
A data era 24 de Julho de 1933. O Presidente Franklin D. Roosevelt estava sentado à secretária na Sala de Recepções Diplomáticas da Casa Branca. À sua esquerda, tinha um microfone e à direita, um copo de água. À sua frente tinha um discurso, escrito em algumas folhas de papel.
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A data era 24 de Julho de 1933. O Presidente Franklin D. Roosevelt estava sentado à secretária na Sala de Recepções Diplomáticas da Casa Branca. À sua esquerda, tinha um microfone e à direita, um copo de água. À sua frente tinha um discurso, escrito em algumas folhas de papel.
Nesse dia, cerca de quatro meses depois da sua tomada de posse, Roosevelt proferiu o seu terceiro discurso ao povo feito através da rádio. Este discurso – uma das quase 30 conversas à lareira que fez enquanto Presidente – era um apelo ao aumento do salário mínimo e uma espécie de actualização sobre o seu plano para arrancar o país da Grande Depressão. No seu relatório de progresso de quase três mil palavras, Roosevelt falou sobre os sucessos da sua jovem presidência – os primeiros cem dias tinham sido “dedicados a pôr em marcha o New Deal”.
Desde então, a ideia dos “primeiros cem dias” ganhou vida própria: há quem tente avaliar o sucesso (ou o fracasso) de uma Administração com base nos actos realizados nos primeiros meses, enquanto outros vêm isto como um período em que os líderes estabelecem o tom do resto da sua presidência.
Porém, segundo os especialistas, o que se tornou aparente com o passar dos anos é que os primeiros três meses dizem muito pouco sobre os sucessos de um novo Presidente e menos ainda sobre o seu legado ou sobre o seu programa. É um período demasiado curto para concretizar algo duradouro e significativo.
“Penso que a História nos ensina que este é um marco de referência arbitrário”, disse Fredrik Logevall, historiador e professor de Assuntos Internacionais na Universidade de Harvard. “Não tem estado muito correlacionado com o sucesso ou o fracasso posterior. O sucesso de uma Administração depende dos quatro anos – ou dos oito anos, no caso de haver dois mandatos.”
Na realidade, segundo Logevall, esta é uma armadilha em que caíram, de forma consciente, muitos presidentes depois de Roosevelt, exercendo pressão sobre si próprios para transformar a Administração numa “colmeia de actividade”, de forma a cumprir o que sabem ser um prazo pouco significativo.
Tendo em conta o aumento do sectarismo no Congresso, promulgar legislação importante em apenas três meses tornou-se um feito quase impossível. Isto faz com que o desempenho legislativo nos primeiros cem dias seja apenas “uma medida imperfeita” do sucesso, afirmou Jon Schaff, um professor de Ciência Política na Northern State University, no Dacota do Sul.
“A produtividade nos primeiros cem dias raramente diz alguma coisa sobre quem ocupa a Casa Branca,” disse Schaff. “Normalmente, diz mais sobre as circunstâncias em que está a cumprir o mandato.”
Ainda assim, os primeiros cem dias têm-se tornado uma ferramenta para os jornalistas fazerem um apanhado de uma presidência nova e uma estratégia de relações públicas para uma Administração se promover junto do público, segundo os especialistas.
Isto é compreensível, disse Nicole Hammer, uma professora de Estudos Presidenciais no Miller Center da Universidade da Virgínia. No entanto, não se deveria analisar excessivamente o que diz esse apanhado.
Durante os seus primeiros cem dias, Roosevelt apresentou ao Congresso 14 propostas de lei. Uma delas, a Lei de Emergência de Assistência aos Bancos, que pretendia estabilizar o sistema bancário, foi criada em quatro dias. O Congresso promulgou-a em oito horas. Roosevelt ratificou a lei apenas cinco dias depois de tomar posse.
Roosevelt movia-se a uma velocidade sem precedentes. Isto acontecia porque era preciso. O Congresso prometeu-lhe autonomia porque era preciso.
Quando Roosevelt tomou posse, um quarto dos trabalhadores do país estavam desempregados e milhões de proprietários tinham entrado em incumprimento nas hipotecas. Dezenas de bancos tinham ido à falência e centenas de quintas enfrentavam acções de despejo todos os meses.
O sucesso dos seus primeiros 100 dias foi, em certos aspectos, o produto de uma conjugação ideal de factores: uma crise económica gigantesca e uma maioria no Congresso que deu a Roosevelt a capacidade de promulgar rapidamente legislação importante, explicou John Frendreis, professor de Ciência Política na Universidade Loyola, em Chicago.
Isto faz com que Roosevelt seja “uma espécie de anomalia”, disse Schaff, porque enfrentou desafios que, até aos dias de hoje, nunca foram igualados.
Segundo Frendreis, o exemplo contemporâneo mais aproximado é, provavelmente, o Presidente Barack Obama. Tal como Roosevelt, este tomou posse no meio de uma crise económica e tinha uma maioria no Congresso que lhe permitiu promulgar rapidamente o seu pacote de estímulos, no valor de vários milhares de milhões de dólares. O Congresso promulgou a Lei de Recuperação e Reinvestimento Americanos praticamente sem os votos dos Republicanos. Obama ratificou a lei menos de um mês depois de se tornar Presidente.
Os primeiros cem dias das presidências depois de Roosevelt tornaram-se cada vez menos produtivos, afirmam os especialistas. Isto deve-se, em parte, ao Congresso.
Na década de 1970, o Congresso expandiu massivamente os seus subcomités, de forma a oferecer aos seus membros mais oportunidades de exercer cargos de liderança, contou Schaff. Isto acrescentou mais passos ao processo legislativo, transformando a promulgação de nova legislação num processo mais longo e mais complicado.
O sectarismo e a polarização também se tornaram mais pronunciados, em particular ao longo da última década.
“Os partidos eram entendidos de maneira diferente. Havia democratas conservadores e republicanos liberais”, explicou Hemmer, do Miller Center. “Hoje em dia, isso acontece cada vez menos.”
Esta desagregação parece estar ainda mais acentuada durante a Administração Trump, em que as divergências acontecem não só entre os dois grandes partidos, mas também dentro do partido do poder.
Em 2000, George W. Bush candidatou-se à presidência com o objectivo de se concentrar em cortes nos impostos e na reforma educativa.
Numa entrevista à CNN sobre os seus primeiros cem dias, o Presidente Bush disse que tinha feito progressos no seu plano para reduzir os impostos e que continuava a negociar com os democratas sobre o seu programa para a educação. A sua grande reforma fiscal e o programa No Child Left Behind foram promulgados durante o primeiro ano da sua Administração.
No entanto, Bush iria perceber em breve que o mundo consegue interferir até com os planos mais bem estruturados.
Depois dos atentados terroristas do 11 de Setembro de 2001, apenas oito meses depois da tomada de posse de Bush, o Presidente que tinha planeado concentrar-se na política nacional deu consigo a liderar o país numa guerra no valor de três biliões de dólares.
“Foi uma viragem de 180 graus face ao programa nacional”, disse Hammer. “Os ataques do 11 de Setembro e, posteriormente, os fracassos dessa política viriam a definir a segunda metade dessa Administração.”
Mas, mesmo sem catástrofes naturais ou atentados terroristas capazes de mudar por completo o percurso de uma Administração, os legados presidenciais – sob a forma de legislação importante – raramente acontecem nos primeiros cem dias, excepto em períodos de crise.
O Presidente Lyndon B. Johnson ratificou a Lei dos Direitos Civis a 2 de Julho de 1964, cerca de sete meses depois de assumir a presidência.
Obama ratificou a sua emblemática lei sobre os cuidados de saúde – o Affordable Care Act, conhecido como Obamacare – a 23 de Março de 2010, mais de um ano depois de tomar posse.
Mesmo a Lei da Segurança Social de Roosevelt só foi ratificada a 14 de Agosto de 1935, quase dois anos depois de este se tornar Presidente.
“A maioria dos presidentes não tentaria promulgar legislação enorme e definidora nos primeiros cem dias”, disse Hemmer. “Os primeiros 100 dias são um período de adaptação; cometem-se alguns erros e conquistam-se algumas vitórias, mas, geralmente, é o que acontece mais para o final do primeiro ano (que define a presidência).”
O recente desastre com a lei dos cuidados de saúde pode servir de lição. O Presidente Trump tinha prometido uma lei que iria revogar e substituir a lei dos cuidados de saúde de Obama nos seus primeiros cem dias. Especificamente, no primeiro dia. A possibilidade de isto acontecer terminou no mês passado, quando os Republicanos da Câmara dos Representantes não conseguiram reunir apoios suficientes dentro do seu próprio partido para aprovar esta legislação criada à pressa.
O Presidente John F. Kennedy foi claro em relação à sua frustração com o marco dos cem dias. Via-o como uma pressão impossível para fazer magia em apenas três meses, segundo o Professor Logevall, de Harvard. “Ele disse aos seus conselheiros que era uma loucura e que não queria ficar preso a isto”, contou Logevall.
Kennedy deixou isto claro no seu discurso da tomada de posse: “Tudo isto não estará terminado nos primeiros cem dias. Nem nos primeiros mil dias, nem no final desta Administração… mas comecemos.” (Kennedy, claro, foi assassinado perto dos mil dias da sua presidência.)
Ainda assim, muitos presidentes sucumbiram à pressão e a sombra dos primeiros cem dias de Roosevelt continua a assombrá-los.
O Presidente Richard M. Nixon chegou ao ponto de criar um Grupo dos Cem Dias – conselheiros encarregados de promover a ideia de que a sua Administração trabalhava sem parar, ao mesmo tempo que tentava, como disse Nixon, “libertá-lo do facto de a quantidade de legislação ser vista como a principal medida de sucesso nos primeiros cem dias”.
A conclusão, segundo os especialistas, é que os presidentes, o público e os meios de comunicação fariam melhor se prestassem menos atenção a um prazo arbitrário.
O 45.º Presidente dos Estados Unidos da América parece estar de acordo.
Enquanto candidato, Trump gabou-se do seu “Contrato com o Eleitor Americano” – que descreveu como “um plano de actividades de cem dias para Tornar a América Novamente Grande”. Durante a campanha eleitoral, Trump falou repetidamente sobre o que iria fazer nos primeiros cem dias.
“No dia 8 de Novembro, os americanos vão votar neste plano de cem dias para devolver a prosperidade à nossa economia, a segurança às nossas comunidades e a honestidade ao nosso governo”, escreveu Trump no seu Contrato. “Este é o meu compromisso convosco.”
Com o Presidente a não conseguir cumprir as promessas principais do seu plano de cem dias, o seu discurso mudou.
Como escreveu Aaron Blake, do Washington Post, “parece que o Presidente Trump viu notícias na sexta-feira de manhã que mencionavam o marco dos cem dias, que se aproxima. E ele decidiu que não gosta deste marco arbitrário – mesmo nada”.