Não vai ser possível escapar a mais democracia nas empresas
A questão que se põe hoje é fundamental: estamos ou não dispostos a partilhar o poder de decisão nas empresas?
1. Desvendar verdades escondidas
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
1. Desvendar verdades escondidas
Face à acumulação de dados estatísticos, é hoje impossível negar que está em curso uma transferência escandalosa de riqueza (e de poder) do trabalho para o capital. Essa transferência não resulta da evolução tecnológica nem da globalização, como sustenta o FMI; resulta sim do processo de financeirização económica. Esse processo, caracterizado pela influência crescente da esfera financeira sobre a esfera produtiva da economia, foi fortemente promovido por um modelo de governo das empresas (o “modelo do valor acionário”) segundo o qual as empresas devem ter como objetivo prioritário maximizar o valor das ações. Este modelo de governo, adotado a partir dos anos 70, foi justificado por Milton Friedman (New York Times, 1970) pelo facto de os acionistas serem os proprietários das empresas e, consequentemente, quem mais riscos corre ao investir nelas.
Ora, é necessário distinguir a empresa (organização produtiva constituída por equipamentos e trabalhadores) da sociedade por ações (entidade jurídica com competência para estabelecer os contratos necessários ao funcionamento da empresa). Os acionistas são proprietários exclusivamente das suas ações. Aliás, a sua responsabilidade e o risco que correm limita-se às ações que detêm; as suas ações podem perder valor mas eles não são responsáveis pelos resultados das empresas. Gerir as empresas segundo o modelo do valor acionário, isto é, tendo em conta exclusivamente os interesses dos acionistas e não o interesse da empresa como um todo, não tem nenhum fundamento jurídico.
Todos os juristas sabem que os acionistas não são proprietários das empresas e alguns deles denunciam a fraude dos economistas, sem que isso modifique esta crença de tão enraizada que está no mundo académico e na opinião pública. Claro, os economistas liberais mais esclarecidos desenvolveram modelos para mostrar que, independentemente da questão da propriedade, é ao procurar maximizar o valor das ações que as empresas conseguem atingir a maior eficiência económica. Assim, os Princípios de Governo das Sociedades da OCDE, revistos em 2015, continuam a recomendar que esse seja o objetivo principal das empresas.
2. Argumentar com factos empíricos
Contudo, os estudos mais recentes questionam muito seriamente a credibilidade dos modelos económicos. Maximizar o valor das ações leva as empresas a adotar uma visão de curto prazo que se revela prejudicial à capacidade de inovação, fator que todos reconhecem ser essencial para a competitividade. De facto, este modelo de governo levou à adoção de práticas de gestão e de rácios de performance baseados na contenção dos custos, práticas e rácios que entretanto se disseminaram por todas as empresas, para além das sociedades por ações. Por exemplo, é hoje prática corrente monitorizar o desempenho financeiro de todas as subunidades das empresas (e das organizações públicas), o que por sua vez se traduz na fixação de objetivos quantificados para cada trabalhador. Isto provoca uma perda de autonomia e uma intensificação sem precedentes do trabalho e coloca todos os departamentos e serviços sob pressão, transformando a gestão num “governo pelos números” generalizado, em que as metas financeiras se sobrepõem a todas as outras dimensões. Valores como o da justiça nas retribuições ou o do tratamento digno dos trabalhadores passaram para segundo plano.
Ora, a evidência empírica recolhida pela economia experimental e comportamental mostra que, se os incentivos monetários e o medo de ser despedido levam os trabalhadores a cumprir o seu dever, estes só entregam o melhor de si à empresa, só se dedicam inteiramente e são criativos se se sentirem tratados com justiça e respeito. Até o ultraliberal Oliver Hart, prémio Nobel de Economia de 2016, pressupõe agora nos seus modelos que os trabalhadores têm de sentir que “recebem o que merecem” para dar a sua melhor performance. Parece, assim, que se o modelo do valor acionário, que descarta estas dimensões, permite alcançar a eficiência pela redução de custos, outro modelo de governo é necessário para promover a inovação.
3. O modelo da codeterminação
Estimular a inovação requer então criar as condições para uma maior justiça, distributiva e processual, nas empresas. Isto requer, por sua vez, que os trabalhadores participem nos órgãos de governo das empresas. Na última década, vários estudos examinaram os efeitos do modelo de governo em vigor nos países escandinavos e na Alemanha, modelo denominado de “codeterminação”, que prevê que representantes dos trabalhadores integrem os órgãos de governo das empresas numa proporção de 1/3, ou 1/2 para as maiores empresas. Globalmente, os resultados são os seguintes: a codeterminação não tem efeito sobre os indicadores de eficiência financeira, tem um efeito pequeno ou nulo sobre a produtividade e um efeito significativamente positivo sobre a inovação.
Os sindicatos, na sua maioria, têm-se contentado com o “pacto social” resultante do pós-guerra, segundo o qual os trabalhadores aceitam obedecer aos empregadores em troca de salários elevados. Esta posição afastou do debate político a revindicação da participação dos trabalhadores nas decisões de gestão, estratégicas e operacionais; decisões que, no entanto, determinam poderosamente a sua vida. Porém, essa participação seria certamente a única forma de inverter o processo de desvalorização do trabalho observado desde os anos 80, processo que vai tender a reforçar-se com a robotização e a “uberização” do trabalho.
É ao nível europeu que tem de ser estabelecida uma regulamentação do governo das empresas baseada no princípio da codeterminaçao. Só assim se pode evitar a perda de competitividade que decorreria das práticas de “law shopping” — a procura dos países com regulamentações mais favoráveis por parte das empresas que querem investir. A questão que se põe hoje é fundamental: estamos ou não dispostos a partilhar o poder de decisão nas empresas? O modelo do valor acionário é o modelo de governo que alimenta o processo de financeirização; só a mudança para um modelo com maior participação dos trabalhadores pode combater esse processo e os seus efeitos perversos. Para resolver esse impasse é necessário sanar os bloqueios atuais.
A autora escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico