Livrarias muito especiais
Quem gosta de livros e da diversidade do mundo vai a estes microcosmos políticos com prazer.
Há muitos anos que sempre que estou em Nova Iorque visito várias livrarias muito especiais: livrarias empenhadas na luta política, livrarias radicais e alternativas. O seu número tem baixado muito nas últimas décadas, têm desaparecido do centro da cidade, e atiradas para os subúrbios, mas continuam a ser obrigatórias para quem, como eu, procura livros, panfletos, brochuras fora do mainstream das livrarias tradicionais.
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Há muitos anos que sempre que estou em Nova Iorque visito várias livrarias muito especiais: livrarias empenhadas na luta política, livrarias radicais e alternativas. O seu número tem baixado muito nas últimas décadas, têm desaparecido do centro da cidade, e atiradas para os subúrbios, mas continuam a ser obrigatórias para quem, como eu, procura livros, panfletos, brochuras fora do mainstream das livrarias tradicionais.
É verdade que muita coisa já se encontra na Rede, mas é completamente diferente escolhê-las numa livraria onde se pode folhear, comprar e ter uma noção física do livro ou brochura. Não é preciso ser um nostálgico do livro impresso, que não sou, para considerar que ainda há uma considerável vantagem na observação física dos livros e brochuras, em determinadas circunstâncias.
As livrarias políticas militantes tendem a ser daquilo que na Europa se chama extrema-esquerda, embora a definição de radical se aplique melhor aos casos de que falamos. A direita radical não deve gostar muito de livrarias, porque embora existam algumas, por exemplo, em Espanha, são excepções. Há alguns anos, ainda pude frequentar, com algum espanto de principiante, a livraria pioneira do libertarianismo, uma corrente política tipicamente americana e que tem conseguido nas eleições um honroso terceiro lugar depois dos democratas e dos republicanos. Essa livraria, a Laissez Faire Books, que ainda existe como editora, tinha essa mistura que me parecia completamente bizarra de livros e panfletos de Marx, Bakunine, Hayek e Milton Friedman, a apresentava-os como um legado coerente.
Mas hoje os pilares das livrarias radicais em Nova Iorque, que visitei várias vezes e sobre as quais já escrevi, são a Bluestockings e a Revolution Books, dois exemplos muito interessantes porque são muito diferentes. E na sua diferença mostram tradições de radicalismo que emanam de uma visão do mundo tão diferenciada que, tendo alguns livros em comum, são “mundos” com ordens e tradições nos antípodas uma da outra. Ambas são virulentamente anti-Trump, mas as semelhanças acabam aqui.
A Bluestockings foi e ainda é uma livraria feminista, embora hoje as suas estantes tenham todo o catálogo de movimentos e de causas do radicalismo americano (e neste caso europeu): os estudos de género, o capitalismo global, a ecologia, a situação prisional, estudos sobre os negros, a educação radical, etc.. Mas a livraria, que é de propriedade colectiva e funciona com o apoio de voluntários, é também um centro comunitário, onde se realizam várias reuniões das mais estranhas causas e grupos. Tive uma vez a ocasião de assistir de lado a uma realizada sob o efeito da paulada enorme da eleição de Trump, que teria mais ou menos dez pessoas, incluindo um velho hippie, uma jovem mãe com o filho ao colo e um activista muito self-righteous que pretendia conduzir a reunião, no meio do caos das intervenções, com bastante autoritarismo. Não demorei um segundo para perceber que a luta anti-Trump não seria certamente liderada pela Bluestockings, mas hoje já não estou tão certo disso. A grande manifestação anti-Trump, uma das maiores de sempre nos EUA, foi conduzida por mulheres, e as jovens raparigas que estavam ao balcão fazem parte da massa de pessoas que fez essas manifestações.
Mas a Bluestockings não é apenas um catálogo das múltiplas causas activistas — é um espelho total do mundo “politicamente correcto” levado até ao absurdo. O café servido é obviamente “zapatista”, e alguns produtos que se podem comprar são resultado do “comércio justo”, e são coisas orgânicas, vegan e com outras classificações, havendo mesmo algumas que a minha condição masculina me impede de perceber — culpa minha —, como sejam “produtos menstruais alternativos”. Há também uns álbuns para as crianças colorirem sobre a vagina, e todo o espaço é amigável a quem venha de cadeira de rodas, uma boa coisa, embora não se aplique à casa de banho, para o que é necessário ir a um Starbucks perto. Uma coisa estranha é a prevenção de que, mesmo não sendo um “espaço livre de cheiros”, o que se pode facilmente verificar, nem por isso se deixa de “desencorajar” o uso de perfumes, águas-de-colónia, óleos essenciais, sendo que fumar é proibidíssimo e só pode fazer-se “bem longe” da entrada. Todas as citações entre aspas estão no site da livraria.
A população da livraria é predominantemente feminina e jovem, e percebe-se que não vive nem nas altas nem nas médias esferas do “capitalismo global”, e como está situada numa zona pobre da cidade percebe-se que o seu trabalho comunitário atrai uma frequência local com alguma marginalidade que encontra ali um espaço para estar, para ler quando não se tem dinheiro para comprar livros, ou para levar comida e lá comer, numa ou duas mesas colocadas debaixo do letreiro em madeira de uma das últimas lutas sociais e raciais nos EUA, “black lives matter”. Cá fora, na vitrina, resume-se a livraria: livros radicais, café barato, acontecimentos estimulantes e “beautiful community”. Longa vida, Bluestockings!
Na outra ponta da cidade, em Harlem, na Avenida Malcolm X, sobrevive uma outra livraria muito especial, a Revolution Books, nos antípodas da sua irmã do Sul. Onde na Bluestockings reina um certo caos, num espaço que não brilha pela limpeza, a Revolution Books ofusca de lavado, num espaço cuidadosamente organizado onde nada está fora de ordem. As pessoas que mantêm a livraria são também mais velhas, e em nada se distinguem na maneira de vestir e na atitude do comum das pessoas da sua idade e condição. São, em muitos casos, velhos militantes que desde os anos 60 e 70 acompanharam esta tradição do radicalismo americano.
Conheço a livraria desde quando ainda estava em Midtown Manhattan e nada mudou. Aliás, na Bluestockings também não. O espaço em Harlem é maior e por isso ainda melhor se percebe que estamos perante uma organização dotada de um enorme sentido de ordem, o que não é estranho porque a livraria está ligada a um partido comunista, o Partido Comunista Revolucionário, e a uma personagem parecida com o “grande educador”, Bob Avakian.
Tudo na livraria celebra Bob Avakian, um dos raros casos actuais no mundo ocidental de culto da personalidade no contexto comunista. A sua última obra sobre o “novo comunismo” é imediatamente aconselhada e há postais com citações de Avakian, pins e T-shirts com o seu rosto, e várias estantes com obras suas desde a sua autobiografia aos seus livros sobre religião, ciência, política, e múltiplas brochuras com textos seus. Na minha missão de caçador-recolector, lá comprei as últimas obras de Avakian, e recolhi todos os panfletos e periódicos que pude.
O mundo da Revolution Books é claramente militante, e o grupo está ligado a alguns dos movimentos mais radicais contra Trump, mas, como é habitual na tradição comunista, a livraria é pouco ecléctica e variada, principalmente nas publicações em brochura e panfletos. Enquanto na Bluestockings as estantes estão cheias de fanzines e publicações alternativas, a Revolution Books, como tem uma “linha”, pouco se afasta da norma. Vida longa também para a Revolution Books!
Tenho pena que a Laissez Faire Books tenha acabado e já vi suficientes livrarias acabar ou, ainda pior, normalizar-se para se tornarem todas iguais, uma espécie de montra de papel pintado com “novidades” de ontem iguais às de hoje. Por isso, quem gosta de livros e da diversidade do mundo, vai a estes microcosmos políticos com prazer.