“A música, a poesia e a arte podem ser alternativas à energia negativa do mundo”

Os Sonic Youth, a espiritualidade, Trump, o papel da arte nestes estranhos tempos e o prazer da meia-idade. Aos 58 anos, Thurston Moore parece mais consciente de si e do que o rodeia do que nunca. No novo álbum experimenta novas estruturas para o formato canção e diz que é tempo de nos organizarmos.

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Quem olha para o seu divórcio de Kim Gordon com azedume, por ter originado o fim dos Sonic Youth, poderá não perdoar-lhe. Mas ele, 58 anos, músico, poeta, editor, improvisador, herói do rock alternativo, não está nem aí

Diz que nunca se sentiu tão bem e quem somos nós para o contradizer? Os que continuam a associar a cultura rock aos ideais da juventude poderão estranhar. Quem cresceu a ouvir Sonic Youth poderá não perceber. E quem olha para o seu divórcio de Kim Gordon com azedume, seja porque romantizava essa relação ou porque ficou zangado por ter originado o fim dos Sonic Youth, poderá não perdoar-lhe. Mas ele não está nem aí.

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Diz que nunca se sentiu tão bem e quem somos nós para o contradizer? Os que continuam a associar a cultura rock aos ideais da juventude poderão estranhar. Quem cresceu a ouvir Sonic Youth poderá não perceber. E quem olha para o seu divórcio de Kim Gordon com azedume, seja porque romantizava essa relação ou porque ficou zangado por ter originado o fim dos Sonic Youth, poderá não perdoar-lhe. Mas ele não está nem aí.

Thurston Moore, 58 anos, músico, poeta, editor, improvisador, herói do rock alternativo, criador de tangentes entre cultura popular e radicalismo artístico, diz-nos que está num bom momento. “Vivi coisas fantásticas quando tinha 20 ou 30 anos e estou agradecido por isso, mas sinto que, enquanto artista e pessoa, encontrei nos últimos anos um ponto de equilíbrio mais satisfatório, sem que isso signifique menos inquietação pelo que me rodeia. Continuo a fazer o que mais gosto, com a paixão de sempre e segundo as regras que vou ditando a mim próprio.”  

No seu novo álbum, Rock N’ Roll Consciousness, dir-se-ia que tudo isso está presente. Nota-se o despreendimento de alguém que já não tem nada a provar. E também está lá a passagem do tempo sem angústias. Mas isso não significa menos desejo de se pôr em causa. No total são apenas cinco longas canções (o single Cease fire surge como faixa escondida) que possuem a dose certa de exploração sónica e envolvimento melódico, com doses de dissonância e crescendos rítmicos, mas também de quietude, essencialmente transportada pelas letras e pela vocalização. É um disco focado na espiritualidade, como contraponto à desordem do mundo, e na ideia de ensaiar novas estruturas para o formato canção.

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É como se tudo confluísse para a acalmia, mas o cenário é o de uma tempestade em alto mar, com ângulos de ruído, rasgos harmónicos, cavalgadas para secção rítmica e linhas de baixo minimalistas, num jogo de contenção, espaço e deflagração. É um disco que gira em torno da sua guitarra e, claro, sendo ele personagem central dos Sonic Youth é impossível escapar às comparações. “É o meu vocabulário, é natural que ele esteja presente”, diz. É um excelente disco. Talvez o melhor material saído da mente de um dos ex-membros do grupo desde a dissolução há seis anos.

Os tempos que se seguiram a essa ocorrência não foram fáceis para ele. Nunca são. O casamento com Kim durava desde 1984. Com os Sonic Youth desde 1981. Durante os últimos anos escapou sempre às formulações mais grosseiras onde muitos o tentaram aprisionar, sem deixar de reflectir serenamente sobre os acontecimentos, mesmo quando à sua volta se notava algum ressentimento. Pelo meio gravou dois álbuns a solo em nome próprio (Demolished Thoughs, de 2011, e The Best Day, de 2014), andou entre concertos e recitais de poesia, e participou em inúmeras outras aventuras e colaborações – de Anne-James Chaton, aos membros vivos dos Can, passando pelos Chelsea Light Moving ou Twilight. Nada de cintilante, como se de alguma forma se quisesse preservar numa altura em que só lhe queriam falar do divórcio, optando por sair das luzes dos holofotes.

Na actualidade conserva o que de melhor a vida artística lhe ofereceu desde os anos 1980, mas o seu olhar é para a frente. “Os Sonic Youth foram a minha vida, a minha família, durante muitos anos e é impossível escapar disso. Fizeram parte de uma boa parte da minha existência criativa durante trinta anos, portanto é algo que ficará sempre comigo, mas as nossas vidas pessoais seguiram novos caminhos e é nisso que me vou concentrar porque existem sempre coisas novas para fazer.”

Apesar de agora parecer mais solitário, diz que é ainda e sempre a ideia de comunidade que o inspira. “Quando cheguei a Nova Iorque nos anos 1970 foi isso que me motivou, essa energia de estar rodeado de pessoas que queriam fazer arte, música ou manifestos políticos e que desejavam trocar ideias. Nos últimos anos tem havido apatia, mas a ideia de comunidade está de volta. O mundo de hoje pede isso. É tempo de nos organizarmos. Falarmos uns com os outros. Criar comunidade.”

Para já existe o novo álbum. Para ele continua a ser um desafio a feitura de um disco. “Não sinto pressão em fazê-los, porque os adoro, colecciono-os, sou maluquinho por discos”, ri-se. “Adoro todos os momentos da sua feitura – da música ao grafismo, passando pela gravação ou mistura.” E depois gosta de ter o objecto na mão, tocar-lhe, cheirá-lo. Pode ser um CD, um LP ou uma cassete. O digital é que não o apaixona. Não me interessa da mesma forma, mas está tudo bem”, reflecte, não fazendo juízos de valor sobre. “Desde miúdo que os discos me interessam. É natural essa predilecção. Queria fazer discos como as bandas de que gostava. E é isso que tenho feito desde então, com sentido de responsabilidade a partir da minha experiência e idade. Não faço discos com a ideia que tenho de estar presente nas tabelas de vendas ou de ser um artista que chega a um público muito alargado. Não que isso tenha algo de mal, mas apenas porque tenho total consciência que a música que me interessa dificilmente obterá esse efeito.”

O rock e a cultura dos privilégios

Mas nem sempre foi assim. No final dos anos 1980 e parte significativa dos 1990, os Sonic Youth, através de álbuns como Evol (1986), Sister (1987), Daydream Nation (1988) ou Dirty (1992), personificaram a hipótese do rock enquanto lugar de pesquisa poder alcançar um público mais abrangente, algo que viria a ser usufruído pela geração grunge dos Nirvana. Hoje o rock já não está com o mesmo à vontade no centro do mercado. O predomínio fica por conta do hip-hop e R&B.

“A forma como o rock é apresentado hoje no centro do mercado corresponde a uma ideia genérica ou a uma fórmula”, começa por reflectir. “A experimentação foi sendo deixada de lado e as editoras deixaram de se interessar por promover ideias radicais, pelo menos no consumo de massas e no que diz respeito ao rock & roll.” O que não significa, na sua visão, que na actualidade não esteja a ser feito rock com criatividade. “Nunca existiu tanta música rock interessante como hoje, mas regressou às caves mais invisíveis. De alguma forma é como se o cenário pop-rock não fosse tão apelativo para as massas como já foi. Agora é como se cada artista fosse convidado a criar a sua própria alternativa, à base de um estilo de vida modesto, sem ambições de gerar cultos de celebridade como no passado.”

Há aspectos positivos e negativos a retirar deste contexto. “Existe hoje mais controlo criativo e isso é positivo, mas as receitas são menores, pelo que nem todos auferem o suficiente para, pelo menos, continuarem.” De uma coisa parece estar certo: “Hoje, pelo menos no mercado de massas, quem inova são os artistas de hip-hop ou R&B. Nem todos, claro, mas muitos deles são radicais e experimentais e isso é novo”, argumenta, dando um exemplo: “O ano passado, por influência da minha filha, um dos álbuns que mais fui ouvindo foi A Seat at the Table de Solange.”  

Existe um factor histórico, na sua opinião, que poderá a ajudar a perceber a ocorrência. “O rock transformou-se numa cultura de privilégios, acomodou-se de alguma forma, enquanto o hip-hop é mais conotado com os lugares de exclusão e para se chegar ao topo, durante muito tempo, era preciso lutar arduamente. Para os agentes do hip-hop ou R&B operar no mercado de massas é significativo. É motivo de orgulho. É um triunfo. Não creio que suceda o mesmo no rock. Essa talvez seja apenas uma perspectiva social. Mas é fantástico ouvir R&B a expor ideias de estúdio interessantes. Não faço ideia porque é que isso não acontece hoje com o rock & roll mais massificado.”

E continua. “Mas hoje o que é rock para massas? Não é fácil de perceber. Justin Bieber? Não. Grupos como U2, Green Day, Radiohead ou Pearl Jam? Talvez. Não tenho nada contra essas bandas, algumas são constituídas por pessoas genuínas no que fazem, mas nos cenários mais minoritários existem hoje bandas que me fascinam e estão interessadas em superar o que já foi feito, o que no fim de contas é aquilo que sempre me interessou. No centro do mercado é mais difícil a indústria promover esse tipo de ideias. Não tenho dúvida que a minha editora adoraria que o meu disco competisse nesse universo, mas a realidade é que não é isso que está a acontecer neste momento. Mas não estou preocupado. Quero tocar para o maior número de pessoas, mas apenas porque quero editar mais discos ou livros. Apenas isso.”

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Curiosamente, no novo registo acabou por trabalhar com alguém que conhece bem as receitas do êxito. Falamos do produtor inglês Paul Epworth, conhecido por assinar produções de sucesso para Adele, Rihanna, Florence & The Machine ou Coldplay. “Não falámos sobre isso, mas poderia ter usado os seus conhecimentos para ter a colaboração vocal de alguma das suas protegidas”, brinca Thurston, vincando que tiveram boa relação de trabalho. “Ouvi falar dele através de Mark Stewart do Pop Group, que me disse que fazia anos no mesmo dia que eu o que é sempre um bom sinal e que tinha um estúdio maravilhoso e acabei por confirmar isso mesmo, numa visita. E aí as portas abriram-se para ser ele a produzir o álbum e correu muito bem.”

O álbum foi registado no estúdio que já foi igreja (The Church Studios) com Thurston, na companhia de Steve Shelley (bateria), Debbie Googe (baixo) e James Sedwards (guitarra), a registarem as canções em apenas seis dias, em material analógico que já havia sido utilizado pelos Pink Floyd ou Rolling Stones. “A partir do momento em que defini que o disco se iria chamar Rock n’ Roll Consciousness, pareceu-me que uma igreja seria o ambiente ideal para aquele disco”, brinca, enaltecendo as capacidades de Epworth, embora vincando que o importante foi o espaço. “O Paul sabia que, mais do que os seus conhecimentos, o que eu desejava era um local onde pudesse trabalhar e onde os botões funcionassem”, ri-se. “Nem todos os estúdios têm isso.”

Desde o primeiro momento que o objectivo foi criar canções emocionantes, ao mesmo tempo que se desafiava como compositor porque, diz ele, no processo de criação é essencial lidar com o desconhecido. E dá como exemplo a primeira canção do disco, Exalted, longa odisseia de quase doze minutos. “Queria fazer algo que fosse da primeira secção à seguinte, e depois para as seguintes, sem regressar à secção anterior. Mas ainda assim o objectivo era que funcionasse como canção e tivesse essa forma. Foi essa a ideia, ter uma estrutura experimental para uma canção que abordasse os assuntos do espírito.” Dito assim pode parecer um exercício académico, mas não. “Isso interessa-me, mas associado a uma certa alma, a um certo espírito envolvente. O desafio foi esse: como improvisar essa sucessão de secções em canções longas e ao mesmo tempo dotá-las de lógica e consistência.”

Um dos aspectos que sobressai é o prazer dos músicos em tocar em conjunto. É libertada uma energia rara. Thurston ri-se da alusão. “O prazer está em primeiro lugar na nossa política de grupo e essa foi uma das grandes descobertas dos últimos anos”, afirma, acrescentando que os quatro, quando estão juntos, se libertam de todos os atrofiamentos que podem surgir da gestão dos diferentes egos.

“Somos quatro pessoas já com alguma experiencia disto, não somos um bando de jovens com as mãos no ar a tentar competir por atenção na imprensa com o objectivo de sermos celebridades. A Debbie Googe teve um pouco disso com os My Bloody Valentine e eu e Steve Shelley nos Sonic Youth nos anos 1980 e 1990. Ou seja, já passamos por isso, sabemos como é, e não estamos interessados nesta fase em tentar replicar isso o que é muito libertador. Limitamo-nos a usufruir da companhia uns dos outros, sem constrangimentos, o que é óptimo.”

No início eram apenas três músicos reunidos à volta dele e das suas composições. Mas depois, no processo, algo se alterou. “Fomos descobrindo que nos sentimos verdadeiramente criativos em grupo”, afirma, “e acabei por compor canções longas também por isso, porque queria que a guitarra tivesse destaque nessa relação com o ritmo, mas também desejava que todos os instrumentos respirassem e tivessem o merecido destaque.”

O facto de os temas serem longos poderá levantar resistências em alguns sectores, mas já se percebeu que ele não está preocupado com isso. “Não faço canções para encaixar na rádio ou na televisão. Não tenho nada contra, apenas não é o que desejo. Não é esse o objectivo. E felizmente existem muitas outras pessoas, dos Sun O))) aos Swans, a pensar da mesma forma.” A liberação do mercado através do digital teve essa virtude, diz. “Uma grande revolta contra o facto de termos de nos encaixar nos parâmetros industriais. Existe quem o faça. Sempre houve e sempre haverá. Mas também haverá sempre quem faz o que lhe apetece artisticamente. Estou desse lado da barricada.”

É justo que se diga que essa liberdade não nasceu agora. Sempre esteve presente, não só no seio dos Sonic Youth, com o grupo a efectuar vários lançamentos dentro de uma linha assumidamente experimental, como nas respectivas carreiras a solo do quarteto, com imensos projectos laterais a contarem com o talento de Lee Ranaldo, Kim Gordon, Steve Shelley ou Thurston que, ao longo dos anos, nunca dispensou aventuras regulares pelos domínios da improvisação. Alguns músicos portugueses, como a contrabaixista Margarida Garcia ou o baterista Gabriel Ferrandini, sabem-no, tendo tocado com ele.

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Thurston diz que sente ter encontrado uma nova banda, com o baixo hipnótico de Debbie Googe a unificar-se na perfeição à bateria de Steve Shelley ou à flexibilidade da segunda guitarra de James Sedwards

Do que também não tem prescindido é de abordar outros universos para além da música. É sabido que a sua paixão é a literatura, em particular a poesia, tendo fundado uma editora só dedicada ao género, a Flowers & Cream, para além de estar associado ao universo editorial através da Ecstatic Peace Library (extensão da editora discográfica Ecstatic Paece!), que fundou com a namorada Eva Prinz, e que lança também regularmente livros de poesia, arte, fotografia ou design.

Diz que conheceu poesia contemporânea através de Bob Dylan ou Lou Reed, ou de escritores como Allen Ginsberg e William Burroughs. Originário da Florida, chegou a Nova Iorque aos 19 anos, em 1977, com a ideia de ser escritor, ou pelo menos de começar a escrever nos jornais sobre música, como chegou a fazer Patti Smith. “A sua escrita era tão interessante como a música sobre a qual escrevia e existia uma correlação”, assevera. Mas, nesse período, a poesia mais urgente estava nas ruas. Era o período punk. Ele não sabia tocar guitarra, mas isso não era o mais importante e acabou a fazer poesia sónica, embora nunca tenha deixado os livros e a escrita de lado.

“As letras normalmente nascem dos meus poemas e das notas que vou tomando, mas por norma as letras têm um ritmo que a poesia não possui e que é necessária para servir a canção”, declara, antes de explicar as circunstâncias que conduziram ao nascimento do título do presente disco. Desde há cinco anos que ele e a namorada têm leccionado na Universidade Naropa, no Colorado, no âmbito de um curso de Verão de escrita que foi idealizado por Allen Ginsberg.

“A universidade foi fundada pelo budista Chögyam Trungpa e a ideia de consciência é algo que está sempre presente”, explica, “o mesmo sucedendo com a meditação, esse balanço entre o mundo físico e metafísico, o sentimento de pertença, a conexão com algo que representa um todo. Não sou budista, mas interessa-me a filosofia das religiões e pus-me a pensar onde é que eu, na minha realidade, sem ser induzido por nenhum mestre, tenho acesso a essa forma de consciência e conclui que é tocando rock & roll. É aí que essa consciência de mim e do que me rodeia é mais presente. Ou então é estar numa loja de discos, rodeado de documentos físicos. São espaços de conforto onde me abstraio e me sinto em conexão com o universo.”

No momento presente do mundo, com tanta tensão e conflito, poderia ter criado uma obra que fosse directamente politizada, mas o ângulo foi outro. “Isso acaba por estar lá, mas como lugar de resistência.” E esclarece: “É minha convicção que a música, a poesia e a arte podem ser alternativas à energia negativa do mundo. Ao longo dos anos a cultura do rock, e das artes em geral, foram sempre espaço de resistência nesse sentido. Vivemos num mundo onde o enfoque é a riqueza, a ambição, o poder e onde a natureza espiritual da humanidade tem sido esquecida. É tempo de o recuperar.”

Na sua opinião, nos próximos anos vamos ter cada vez mais artistas a quererem fazer-se ouvir. “São a expressão emocional das pessoas e são representativos do seu tempo nesse sentido, e mesmo que sejam uns tipos solitários vivendo na sua torre interessam-se pelo bem-estar de todos.” Um bem-estar que, na sua visão, tem sido posto em causa por líderes havidos de poder.

“Se existe algo que deve ser dito neste momento é: não sigam os vossos líderes!”, brinca ele, numa alusão a Trump. “A cultura rock provém de uma tradição de luta, desde os anos 1960 com a guerra do Vietname, e é desse lado da barricada que estou. Acredito num lugar diferente daquele que Trump quer edificar. Mas não se pode ser apenas reactivo porque isso é conceder-lhe autoridade. É essencial lutar contra esse poder, mas tendo noção que ele só existe porque provoca divisões. É por isso uma grande responsabilidade para a arte expressar oposição, mas fazendo-o de uma forma inclusiva, que faça sentido.”

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Já se percebeu. Apesar de viver em Londres nos últimos anos, o que se passa nos Estados Unidos não o tem deixado indiferente. “Sinto que o meu país está numa espécie de missão suicida, sei que são ciclos, mas não deixo de sentir o coração despedaçado por isso”, diz. Mas não é por isso que está na capital inglesa. Habita ali por causa da “minha vida íntima”, ri-se, argumentando que, sub-repticiamente, essa vivência londrina se sente no novo disco, “nem que seja por causa dos músicos ingleses”, que com ele trabalharam, e “que transportaram uma sensibilidade própria.”

De Londres só tem coisas boas a apontar – “é antiquada e grande, uma constante redescoberta nesse sentido, e é central na Europa, permitindo pôr-me em Lisboa, que é uma cidade de que gosto muito, em três horas o que é fantástico”. Mas Nova Iorque é especial. “Mudou muito desde os anos 1970 o que é inevitável. A maior parte da comunidade artística está agora concentrada em Brooklyn, o que não tem nada mal, mas sinto que não é a mesma cidade que conheci. Mas adoro voltar à minha primeira casa. Todos os meus amigos, família e memórias estão lá. Amo Nova Iorque e os Estados Unidos, mesmo sentindo que neste momento é uma sociedade adoentada.”  

Em Londres diz ter uma vida normal, apenas diferenciada pelo facto de não ter um trabalho diário como a maior parte das pessoas. “Mas acabo por trabalhar todo o dia também”, conclui, “porque estou sempre a cuidar dos aspectos organizacionais da minha actividade e a preparar novos projectos”, diz, descrevendo o seu quotidiano regular: “acordo, bebo chá, saio para comprar um jornal inglês e também o New York Times, e depois a minha namorada vai à sua vida e eu à minha. Ao final do dia posso ir ao cinema, ou perder-me em livrarias ou ver música no Café Oto, que é um sítio magnífico focado em música mais experimental. E às vezes gosto de ir ao pub, para sentir o ambiente local.”

E a internet? “Tento não ter o portátil muito tempo aberto. As redes sociais são muito tentadoras. É fácil entrar nesse estranho túnel e ficar por lá. Mas tento estar o mais tempo possível no mundo físico. Em frente a nossa casa, do outro lado da rua, existe um parque e sempre que está bom tempo vou até lá. Fico por ali a ler tranquilamente. Não consigo imaginar nada melhor.”

Isto, claro, quando a sua vida está mais calma. O que é raro. “O mês de Março, por exemplo, passei-o entre aeroportos, hotéis e entrevistas, na Europa. Depois tive dois concertos em Tóquio, regressei a Londres durante dois dias, antes de partir para a Cidade do México para um evento de poesia. Voltei a Londres por causa do projecto à volta dos Can e na última noite toquei com três músicos da improvisação. Nessas alturas nenhum dia é igual ao anterior e anseio por ter dias tranquilos e iguais entre si.”

Nessas ocasiões, afirma, imagina-se a viver numa numa pequena vila no sul da Europa, em Portugal, Espanha ou Itália, e ter uma existência mais relaxada. “Mas depois se calhar também me chateava, não tenho a certeza”, ri-se. “Estou sempre a precisar de alguma tensão, mas também de serenidade.”

Nada de surpreendente. A sua música acaba por ser também assim. “Sim, é verdade, tenho perfeita consciência disso.”