Morreu Jonathan Demme, um dos últimos "autores" discretos do cinema americano
Realizador de O Silêncio dos Inocentes e Filadélfia morreu aos 73 anos, deixando uma carreira que se repartiu pela ficção, pela música e pelo documentário.
“O cinema é um meio de contar histórias, e isso é algo que fui compreendendo ao longo dos anos. Muito mais do que estar a fazer um documentário, uma ficção ou um filme-concerto, o importante é perguntar que história estamos a contar e tentar contá-la o melhor que podemos.”
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“O cinema é um meio de contar histórias, e isso é algo que fui compreendendo ao longo dos anos. Muito mais do que estar a fazer um documentário, uma ficção ou um filme-concerto, o importante é perguntar que história estamos a contar e tentar contá-la o melhor que podemos.”
Era assim que Jonathan Demme, que morreu quarta-feira aos 73 anos de idade, definia ao PÚBLICO em 2015 a sua abordagem ao cinema. Numa carreira de mais de 40 anos, iniciada nos anos 1970 pelas boas graças de Roger Corman e que se prolongou até aos nossos dias, Demme tornou-se num dos últimos “autores” discretos do cinema americano, realizador que ia e vinha entre o circuito independente e o sistema de estúdios ciente dos perigos que cada um deles trazia. Recebeu o Óscar de melhor realizador por O Silêncio dos Inocentes (1990) – a adaptação do best-seller de Thomas Harris que ganhou ainda quatro outros prémios, para Jodie Foster e Anthony Hopkins, e lançou a personagem do psicopata Hannibal Lecter como um dos vilões mais fascinantes do cinema e da televisão dos últimos 25 anos.
Demme aproveitou as portas que esse filme abriu junto de Hollywood para impor Filadélfia (1993), um dos primeiros filmes mainstream a debater abertamente a sida, “virando” a carreira de Tom Hanks (que ganhou aqui o seu primeiro Óscar) e Denzel Washington. Mas é igualmente recordado pelas comédias excêntricas e libertárias como Selvagem e Perigosa (1986), que fez de Melanie Griffith e Jeff Daniels nomes conhecidos; pelos seus filmes-concerto como Stop Making Sense (1984), registo de uma produção de palco dos Talking Heads, Storefront Hitchcock (1998) com Robyn Hitchcock e Heart of Gold (2006), com Neil Young, ou telediscos para os New Order ou Bruce Springsteen; ou pelos seus discretos documentários sobre o ex-presidente Jimmy Carter (Man from Plains, 2007) ou sobre o activista haitiano Jean-Dominique (The Agronomist, 2003). O seu amor pelos actores era notório: foi sob a sua direcção que Hanks, Hopkins, Washington, Foster, Ray Liotta (em Selvagem e Perigosa) ou Michelle Pfeiffer (em Viúva… mas Não Muito, 1988) saíram das suas “zonas de conforto” e mostraram novas facetas do seu talento.
Demme, que esteve em Portugal em 2015 a acompanhar a retrospectiva que lhe foi dedicada pelo Lisbon & Estoril Film Festival, admitia não ter uma noção tradicional de carreira, de se deixar levar pelas histórias que lhe apareciam à frente e que tinha vontade de contar. “Não penso excessivamente nisto, mas reparei que gosto de fazer filmes que sejam mais parte da solução do que parte do problema”, disse então. “A palavra ‘responsabilidade’ parece ser muito poeirenta, mas é isso que sinto [quando faço um filme]: o tipo de imaginário ou de ambientes que quero criar são para serem partilhados com pessoas cujas vidas já de si são difíceis e preciso de saber se este filme as vai ajudar.”
Nascido em Baldwin, nos subúrbios de Nova Iorque, em 1944, Demme começou por trabalhar como assessor de imprensa e foi nessa condição que conheceu Roger Corman, em cuja “escola” de baixo orçamento começou a trabalhar em 1970, fazendo a sua estreia na realização em 1974, com A Gaiola das Tormentas. Passou ao patamar seguinte com O Último Abraço (1979), policial hitchcockiano com Roy Scheider, e Melvin e Howard (1980), história inspirada por factos reais de um garagista do Utah que recebeu uma fortuna no testamento de Howard Hughes. Este último foi distinguido com os Óscares de melhor argumento e melhor actriz secundária (Mary Steenburgen), mas o “embalo” que o seu sucesso poderia ter dado ao realizador e ao seu interesse pela humanidade dos pequenos quotidianos americanos esbarrou nos problemas de produção de Amor em Perigo (1984), em que os seus desentendimentos com a estrela e produtora Goldie Hawn levaram ao seu afastamento (o filme acabado foi montado à sua revelia). A experiência foi dolorosa para Demme, que “recuou” com regresso ao circuito independente, assinando em rápida sucessão Stop Making Sense, o seminal filme-concerto dos Talking Heads, e Selvagem e Perigosa, o filme que finalmente popularizaria o seu nome.
O padrão “filme grande”/“filme pequeno” foi sendo repetido ao longo da carreira de Demme, mas sempre com uma atenção ao pormenor, à história e às personagens que o colocava na descendência directa da “segunda linha” da “nova Hollywood” (Hal Ashby ou Bob Rafelson, por exemplo). E, tal como essa geração, Demme não encontrou o seu lugar na Hollywood de blockbusters que se foi cristalizando ao longo dos anos 1990. A aclamação da crítica e os Óscares para O Silêncio dos Inocentes, filme que esteve em risco de não se estrear devido à falência do estúdio produtor, e Filadélfia tornaram-no um nome de peso, mas foi sol de curta duração. Hollywood desinteressou-se muito rapidamente face aos insucessos na viragem para os anos 2000 com Amada (1998), adaptação mal recebida do romance de Toni Morrison que nem a presença de Oprah Winfrey no papel principal ajudou, e com os seus remakes de O Candidato da Manchúria, O Candidato da Verdade (2004, com Denzel Washington e Meryl Streep), e de Charada, A Verdade sobre Charlie (2002).
Mas Demme continuou a trabalhar paulatinamente, assinando em 2008 um dos seus filmes mais bem recebidos, O Casamento de Rachel, com Anne Hathaway e Rosemary de Witt, mesmo que o público não tenha acorrido em grande número – tal como aconteceu com a sua última longa de ficção, Ricki e os Flash (2015), com Meryl Streep no papel de uma roqueira cinquentona em busca da reconciliação com a família que abandonou. Demme experimentou até a televisão, dirigindo episódios pontuais de séries como The Killing – o seu último trabalho foi um episódio da série policial Shots Fired que, ironicamente, deveria ser transmitida no canal Fox nos Estados Unidos nesta quarta-feira, dia do anúncio da sua morte. Ao PÚBLICO disse, sem amargura, que a televisão permitia “trabalhar a narrativa de um modo que não é possível nas duas horas de um filme”.
Daí que não estivesse grandemente interessado em voltar a Hollywood. “Voltar a fazer um filme de grande orçamento é coisa que já não me atrai minimamente”, declarou então. “Já o fiz, e fiz um que tinha um orçamento tão grande que me deixou sem vontade de voltar a fazer outro, por causa da responsabilidade que o dinheiro traz. Mas fazer o que quer que seja é difícil, e não acho que esteja a ficar mais difícil ou mais fácil fazer um filme. Sempre foi incrivelmente difícil.”
Jonathan Demme morreu aos 73 anos de complicações de um cancro, deixando três filhos do seu casamento em segundas núpcias com Joanne Howard. A sua última longa-metragem foi o filme-concerto Justin Timberlake and the Tennessee Kids (2016).