Sobredotados: para estes alunos não é difícil aprender, o problema é a escola

Os alunos sobredotados aprendem depressa. Mas começam a perder o interesse por aulas que não os desafiam. E os problemas de comportamento e o isolamento vão-se instalando. Especialistas, alunos, famílias dizem o mesmo: “A maior parte das escolas não dá resposta nenhuma.”

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Ainda não eram 9h da manhã e o telemóvel de Ana César Aires já tocava. Era a professora do 1.º ciclo do seu filho com mais uma queixa: Pedro não tinha feito os trabalhos de casa. Não era a primeira vez que acontecia. “Era um massacre”, recorda esta mãe, “ligava todos os dias, muitas vezes mais do que uma vez”. A história tem cinco anos e o telefonema daquele dia foi o gatilho que fez a família procurar ajuda até descobrir uma resposta: Pedro é sobredotado. Tem mais facilidade do que a média para aprender. Mas os problemas de atenção e comportamento são um dos reflexos clássicos das dificuldades que estes alunos têm para lidar com as escolas. E estas não conseguem, muitas vezes, dar-lhes uma resposta.

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Ainda não eram 9h da manhã e o telemóvel de Ana César Aires já tocava. Era a professora do 1.º ciclo do seu filho com mais uma queixa: Pedro não tinha feito os trabalhos de casa. Não era a primeira vez que acontecia. “Era um massacre”, recorda esta mãe, “ligava todos os dias, muitas vezes mais do que uma vez”. A história tem cinco anos e o telefonema daquele dia foi o gatilho que fez a família procurar ajuda até descobrir uma resposta: Pedro é sobredotado. Tem mais facilidade do que a média para aprender. Mas os problemas de atenção e comportamento são um dos reflexos clássicos das dificuldades que estes alunos têm para lidar com as escolas. E estas não conseguem, muitas vezes, dar-lhes uma resposta.

Durante todo 1.º ciclo, Pedro Aires teve “um aproveitamento excelente”, recorda o pai, Renato. Os problemas com a escola não eram académicos, mas de comportamento. Não fazia os trabalhos de casa e não estava atento às aulas: “A escola estava sempre a reportar-nos chatices.”

Pedro Aires reconhece: “Os trabalhos não me ajudavam a compreender mais a matéria e então não fazia.” Tem agora 12 anos.

Por vezes, prossegue, fazia um ou dois exercícios e deixava o trabalho incompleto. Já tinha compreendido o necessário e ia dedicar-se a outra coisa. Hoje continua a deixar algumas coisas por fazer. Nas aulas, diz, não são raras as vezes em que sabe mais do que aquilo que os professores estão a ensinar. “Aprendo algumas coisas na escola, mas outras vezes ouço coisas que já sei e aí corto-me um bocadinho”, explica.

Distrai-se, fala com os colegas. Ou então senta-se sozinho “para não ter ninguém com quem falar”, continua, com um sorriso.

Os atritos com a escola, um externato em Rio Tinto, que ainda frequenta, levaram Ana César e Renato Aires a procurar ajuda para perceber o que se passava com o filho. Foram a um psicólogo, que fez uma avaliação e mediu as capacidades cognitivas de Pedro. E ficaram a saber que o filho tinha características de sobredotação, ou seja, uma facilidade em aprender que o distingue dos restantes colegas — e o coloca entre um grupo que a Organização Mundial da Saúde estima que represente entre 3% e 5% da população. Não foi propriamente uma surpresa para uma família que viu o filho começar a ler aos quatro anos e a escrever as primeiras letras com cinco. A resposta foi, isso sim, “um alívio”, explica o pai: “Finalmente sabíamos o que se passava.”

Os problemas de comportamento “são habituais”, entre as crianças sobredotadas, explica Cristina Palhares, que coordena o núcleo de Braga da Associação Nacional para o Estudo e Intervenção na Área da Sobredotação (ANEIS) e trabalha há duas décadas na área. “Todos os dias, a escola é um sítio onde não aprendem e torna-se um lugar de fastio.”

A difícil relação dos sobredotados com a escola provoca frequentemente problemas psicológicos, que podem resultar em sintomas de ansiedade e depressão. Fomos conhecer outro caso: Pedro Alves, 15 anos. Não chegou a esse extremo, mas passou por problemas complicados de auto-estima.

“Quando não se tem amigos, achamos que a culpa é nossa”, desabafa a mãe, Maria Tavares. O filho passou o 1.º e o 2.º ciclo praticamente sem fazer amigos. Quando os colegas falavam de futebol, Pedro só pensava em computadores. Aprendeu a programar, praticamente sozinho, aos dez anos.

Programas “fechados”

Na escola, “precisou sempre de mais qualquer coisa do que aquilo que tinham para lhe oferecer”, defende Maria Tavares, mas isso nunca aconteceu, nem num estabelecimento de ensino privado, em Viana do Castelo — onde fez o 1.º ciclo —, nem numa escola pública em Braga, onde esteve entre o 5.º e o 7.º ano.

As dificuldades da escola em trabalhar com estes alunos são atestadas por especialistas e directores. “Os currículos são centrados na obrigação de todas as crianças aprenderem as mesmas coisas ao mesmo tempo. Isso nunca acontece”, enquadra José Morgado, psicólogo do Centro de Investigação em Educação do ISPA — Instituto Universitário. A resposta dos professores devia ser, em teoria, a diferenciação pedagógica. A realidade é, porém “bem mais complexa”.

“Há questões curriculares e questões educativas, como o exagerado número de alunos por turma nas áreas mais demograficamente carregadas, que o tornam muito complicado”, explica José Morgado.

Os programas “são ainda muito fechados” e os professores “estão muito preocupados em cumpri-los”, concorda o presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas, Filinto Lima. Não há, por isso, grande margem para dar atenção aos alunos que têm facilidade em aprender: “Preocupamo-nos sobretudo com os alunos com dificuldades.”

Sem legislação específica

Portugal é um dos poucos países da Europa sem legislação específica para lidar com a sobredotação, diz Cristina Palhares. O enquadramento legal é dado por um despacho normativo publicado no ano passado, que estabelece as bases para os quatro mecanismos à disposição das escolas para dar respostas a estes alunos: actividades de enriquecimento, que a escola pode decidir oferecer como forma de aprofundar as disciplinas do currículo geral; o ensino diferenciado, que oferece aos jovens a possibilidade de estudarem ao seu próprio ritmo; actividades extra-escolares como clubes, investigação académica ou actividades artísticas; e a aceleração escolar, que permite a um aluno com capacidades extraordinárias saltar um ano (ver texto nestas páginas).

“O importante é que as escolas estejam alerta para as especificidades dos alunos”, faz saber o Ministério da Educação em resposta ao PÚBLICO, e que entendam que os talentos que precisam de ser estimulados são “de todas as áreas de expressão”, não só académica, como física, social ou artística.

Professores que acreditam

Esta é a base formal do trabalho nas escolas. A prática “é uma coisa diferente”, diz Cristina Palhares: “São raras as escolas onde encontramos abertura para avançar para este tipo de respostas.”

Ao longo do seu percurso, Pedro Aires nunca teve uma resposta para a sua sobredotação no externato que frequenta. Só agora, depois de seis anos, o colégio se prepara para criar um plano de estímulo para si dirigido. “Têm sido anos de luta”, afirma a mãe.

A família ainda ponderou mudar o filho de escola: “Mas para quê? A maior parte das escolas não dá resposta de maneira nenhuma. Ao menos aqui ele tem os amigos de sempre.”

Já Pedro Alves, depois de três anos de dificuldades, mudou de escola, está agora numa pública no centro de Braga onde, “finalmente, encontrou professores que acreditavam” que a sobredotação podia ser um problema.

Quando chegou a este estabelecimento, há dois anos, entrou no 8.º ano, mas em Janeiro recorreu à figura do avanço escolar e passou para o 9.º. O resultado não podia ter sido melhor. “Até então o Pedro não sabia o que era o desafio escolar. Era tudo fácil, fazer um teste era um pró-forma”, diz a mãe, Maria Tavares. A grande mudança para ele foi, contudo, psicológica. “Hoje está tranquilíssimo na escola.”