Se fosse nos EUA, seria pior
Ali estou, de madrugada, com os meus a dormirem deitados nos bancos de um aeroporto russo que nada tem que ver com a opulência dos palácios e das igrejas que visitámos.
Gosto de fazer pantominices para fazer rir os meus filhos e o meu marido. Nem sempre sou bem-sucedida. Mas, por vezes, ouço: “Agora estiveste bem”, e é como o torrão de açúcar que o treinador dá ao pónei, dou mais uma voltinha, à espera de nova recompensa. Eles são iguais a mim. Lá estamos numa competição para ver quem diz a maior palermice e, enquanto estamos nisto, espreito pelo canto do olho a reacção de quem nos rodeia. Não compreendem o que dizemos, falam e escrevem noutra língua, mas será que percebem que somos felizes ou parecemos só uns idiotas?
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Gosto de fazer pantominices para fazer rir os meus filhos e o meu marido. Nem sempre sou bem-sucedida. Mas, por vezes, ouço: “Agora estiveste bem”, e é como o torrão de açúcar que o treinador dá ao pónei, dou mais uma voltinha, à espera de nova recompensa. Eles são iguais a mim. Lá estamos numa competição para ver quem diz a maior palermice e, enquanto estamos nisto, espreito pelo canto do olho a reacção de quem nos rodeia. Não compreendem o que dizemos, falam e escrevem noutra língua, mas será que percebem que somos felizes ou parecemos só uns idiotas?
E tento pôr-me nos pés deles, dos russos que nos olham sem expressão, sem curiosidade. Serão felizes? Dizem disparates só quando chegam a casa? Nunca dizem porque seria um enorme desperdício de tempo?
Às 23h15 entramos num autocarro que nos levará de São Petersburgo para Talin. Às 23h30 somos convidados a sair. O visto expira daí a 30 minutos e chegar à fronteira demora umas horas. Estão -4ºC e pelo telefone informam-nos que teremos de tratar do visto no aeroporto.
Os guias turísticos da cidade aconselham a não usar o metro à noite por causa dos neonazis, mas nós com os nossos rostos fechados de quem caminha para o desconhecido metemos medo até ao grupo que entra com os casacos com símbolos nacionalistas, numa das estações que há dias sofreu um atentado.
Chegamos ao aeroporto e perguntamos como resolvemos a situação. Só amanhã, a partir das 10h. Não vamos arriscar sair com o visto caducado. Nunca nos passou pela cabeça que um autocarro fosse diferente de um avião. Se às 23h15 apanhássemos um avião, ninguém nos questionaria se estivéssemos em espaço aéreo russo às 24h01. Tentamos transmitir tranquilidade aos nossos filhos, procuramos fazê-los rir, sem sucesso.
Percorremos o aeroporto à procura de um sítio para dormir, contamos-lhes do filme Terminal de Aeroporto de Spielberg, com Tom Hanks, tentamos aliviar a tensão, não conseguimos. Organizamos turnos e todos nos voluntariamos para ficar de vigília.
Agora somos nós que olhamos sem expressão, para não denunciarmos o medo que sentimos. Ali estou, de madrugada, com os meus a dormirem deitados nos bancos de um aeroporto que nada tem que ver com a opulência dos palácios e das igrejas que visitámos.
As horas passam devagar, a apreensão é grande mas minimizamos à frente deles. “Daqui a pouco saberemos dizer os avisos em russo”, brinco. De cinco em cinco minutos, há uma voz que avisa que só se pode fumar a 15 metros das portas do edifício, sob pena de serem aplicadas “medidas legais”. A mesma voz diz para não tocarmos em nada que não nos pertença.
A manhã chega e decidimos ligar para a embaixada portuguesa, que nos informa dos passos a dar. Às 9h59 já estamos à porta do serviço de emigração, mas só às 10h01 batemos para não melindrar os trabalhadores. Duas mulheres e um homem num serviço de emigração e nem um fala inglês. Uma diz atabalhoadamente que vai chamar um intérprete. “Ten minutes.” Dez minutos russos passam mais devagar que os nossos. Dez minutos russos são suficientes para recebermos uma chamada do consulado português em São Petersburgo. Suavemente, batemos à porta e explicamos que há uma pessoa que fala russo do outro lado da linha.
Ficamos a saber que temos de comprar uma viagem de avião, pagar uma multa e sair dali o mais rapidamente possível, caso contrário, seremos apresentados em tribunal.
Mas não podemos sair de autocarro? De comboio? Alugar um carro? É que tínhamos um barco para apanhar em Talin e os aviões não voam para essa cidade... Não, avião ou tribunal. Se quisermos, podemos comprar pela Internet, que fica mais barato, mas temos de imprimir os bilhetes, diz o intérprete que chegou entretanto e que percebemos ser superior dos outros três. E onde imprimimos? Nos correios. Os correios estão fechados, é sábado. E não podem imprimir ali? Por momentos o intérprete parece quase humano, daquele grupo a que nós acreditamos pertencer, mas o rosto volta a endurecer para dizer que não. Um agradecimento e um aperto de mão deixam-no confuso por segundos.
Escondemos a parte do tribunal aos nossos filhos e compramos a viagem mais barata para a cidade da União Europeia mais próxima. Agora é preciso pagar a multa. Na noite anterior já nos tinham dito que seria no banco. No serviço de emigração, também. Assim que entramos, as duas funcionárias gritam-nos que a troca de moeda se faz na porta ao lado. Não, não, queremos pagar a multa. “Never heard of it”, responde uma, indiferente.
Saímos e vamos ao guichet ao lado. “I just change money”, grita a mulher. Saímos e vamos ao balcão de informações onde estão quatro jovens, 18 ou 20 anos, que não falam inglês. Ligamos para o consulado e passamos o telefone às meninas. Ah... não sabem onde se paga a multa. De telefone em riste corremos para os serviços de emigração, subimos as escadas até ao primeiro andar. “Ainda bem que não estamos em Frankfurt!", digo, fazendo referência ao maior aeroporto europeu, mas sem conseguir dar o tom de brincadeira necessário, tal é a frustração. Outra corrida, escada abaixo, com novas instruções. Nas informações vão chamar um responsável da companhia aérea que nos irá transportar. Dez minutos. Já disse que os dez minutos russos são diferentes dos nossos? Talvez porque nenhum dos relógios do aeroporto está certo.
A senhora da companhia dá-nos um impresso em russo e explica que temos de pagar a multa no banco, aquele para onde nos encaminham sempre. Assim que entramos, a funcionária que nunca ouviu falar de multas grita: “Visa? Next door.” Na porta ao lado, um aviso diz que a senhora que só troca dinheiro está numa pausa de dez minutos, que se transformam em 20 quando nos vê do outro lado do vidro. Assim ficamos até a fila começar a engrossar e a funcionária decidir que está na hora de regressar ao trabalho. Olha para o impresso e diz-nos quanto temos de pagar e que vai demorar, adivinhem, dez minutos, para preencher cada um dos papéis e como somos quatro... E só me lembro do Kafka, mas não partilho com ninguém porque não tem assim tanta piada.
Na hora do check-in há mais um papel para preencher, que teremos de apresentar com o passaporte e a multa. Do fundo da sala branca que nos dará acesso ao outro lado, aquele onde apanharemos o avião, aparece um funcionário que ordena ao meu filho: “You, come with me, and you!”, aponta para o meu marido. “You”, atira-me. "Eu estou com a minha filha", respondo. "Ela também", diz ele, arrancando-nos os passaportes das mãos e desaparecendo atrás de uma porta.
Em silêncio, sentamo-nos num corredor. “Os vossos passaportes é que nos vão salvar”, digo aos meus filhos, que já viajaram para países com regimes totalitários. Ouvimos um carimbo e contamos as vezes que é usado, quatro. “Se fosse nos EUA, seria pior!”, acrescento. Desta vez, sorrimos aliviados. "Para o ano voltamos", promete o pai. Eles dão uma gargalhada.