Migrantes ou não, estamos todos no mesmo barco
A partir de Matéi Visniec, Migrantes fala de uma Europa fechada e alheia a um fenómeno que não é único. A peça tem encenação de Rodrigo Francisco e está em cena no Teatro de Almada até sexta-feira.
Não é a primeira vez que milhões de pessoas deixam tudo o que lhes é familiar para, com pouco mais que a roupa que têm no corpo, arriscarem um encontro com a morte enquanto procuram uma segunda oportunidade para a vida. A Europa é ela própria filha de vários ciclos de migração causados por guerras ou regimes ditatoriais. Nascido em 1956, o jornalista e dramaturgo romeno Matéi Visniec cedo se serviu da arte para denunciar o regime comunista de Nicolae Ceau?escu, mas acabaria por exilar-se em França em 1987. Foram as memórias das suas vivências enquanto migrante e as infindáveis notícias que passavam diante dos seus olhos enquanto jornalista da Radio France que o levaram a escrever sobre a crise de refugiados que tem marcado os últimos anos. Migrantes, o novo espectáculo da Companhia de Teatro da Almada (CTA) que parte da obra do dramaturgo romeno, tem encenação de Rodrigo Francisco e está em cena até sexta-feira. “Procurei um maior entendimento de um grande drama e fenómeno humano que está a transformar a Europa”, começa por explicar Matéi Visniec por e-mail ao PÚBLICO.
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Não é a primeira vez que milhões de pessoas deixam tudo o que lhes é familiar para, com pouco mais que a roupa que têm no corpo, arriscarem um encontro com a morte enquanto procuram uma segunda oportunidade para a vida. A Europa é ela própria filha de vários ciclos de migração causados por guerras ou regimes ditatoriais. Nascido em 1956, o jornalista e dramaturgo romeno Matéi Visniec cedo se serviu da arte para denunciar o regime comunista de Nicolae Ceau?escu, mas acabaria por exilar-se em França em 1987. Foram as memórias das suas vivências enquanto migrante e as infindáveis notícias que passavam diante dos seus olhos enquanto jornalista da Radio France que o levaram a escrever sobre a crise de refugiados que tem marcado os últimos anos. Migrantes, o novo espectáculo da Companhia de Teatro da Almada (CTA) que parte da obra do dramaturgo romeno, tem encenação de Rodrigo Francisco e está em cena até sexta-feira. “Procurei um maior entendimento de um grande drama e fenómeno humano que está a transformar a Europa”, começa por explicar Matéi Visniec por e-mail ao PÚBLICO.
O escritor e jornalista romeno caracteriza o teatro como “uma síntese especial de todas as linguagens” que é necessária para uma introspecção individual e colectiva sobre uma realidade que, embora mostrada diariamente nos meios de comunicação social, ainda parece distante aos espectadores. Mas as centenas de pessoas que tentam diariamente chegar à Europa em pequenos botes sobrelotados pondo-se à mercê do perigo absoluto não são assim tão diferentes de quem as vê. Foi com o objectivo de esbater essa distância que Rodrigo Francisco decidiu levar a palco o texto de Matéi Visniec. “Queremos que as pessoas tenham um prazer inteligente [ao vir ao teatro], o prazer da reflexão”, explica o também director artístico da CTA, notando que a peça “não apresenta soluções, mas dá um passo importante para que este problema possa ser discutido”.
Um ataque à hipocrisia
Migrantes procura transportar o público directamente para as frágeis embarcações que carregam a esperança de milhões de cidadãos provenientes de países como a Síria, Iraque, Afeganistão, Líbia ou Somália e fá-lo também fisicamente no momento em que o traficante que lidera um dos botes se dirige directamente à audiência. “Têm que manter a calma, se alguém se puser de pé ou gritar é posto borda fora”, avisa, aconselhando todos os que estão a bordo a livrarem-se dos seus documentos e das suas identidades para se tornarem refugiados de guerra. “Não se vão pôr a dizer que viviam na merda e que os vossos filhos morriam de fome. Se se puserem com essa conversa, eles mandam-vos logo de volta”, atira, iniciando um discurso politicamente incorrecto que ataca, durante toda a peça, a hipocrisia da distinção entre os conceitos de “refugiado político” e “refugiado económico”.
Esta é apenas uma das muitas cenas que constituem uma provocação clara a uma Europa insensível que se fecha sob si própria e se escuda da realidade através de uma retórica milimetricamente estudada. “Estamos habituadíssimos a ouvir este discurso que serve de pretexto para grandes oratórias, mas não que não quer fazer nada na prática”, defende João Cabral. O actor, que vai trocando as vestes de político, migrante e traficante ao longo do espectáculo, aponta maior facilidade em mergulhar no papel do Presidente, o protótipo de uma figura que encabeça “uma democracia que está um bocadinho enferma”. Amparado pelo assessor que vai polindo o seu discurso, o político vai trocando palavras como “imigrante” ou “clandestino” por “migrante” e frases como “O nosso país não pode receber mais imigrantes” por “Iremos sempre acolher migrantes, mas de uma forma controlada”. Esta medida tem como objectivo “não estigmatizar” a situação daqueles que arriscam tudo pela condenada travessia até à Europa, mas acaba por camuflar o problema sem apresentar soluções reais. “Não é uma coisa que está a acontecer agora e que nunca tinha acontecido e muitas vezes o discurso da extrema-direita alimenta-se dessa ideia”, nota o actor.
Entrar na pele de migrante já é um processo mais complexo que exige a mesma reflexão por parte do artista como a que se espera vir a ser despertada na audiência. Por mais atentados, bombardeamentos e naufrágios que sejam constantemente mostrados na televisão, João Cabral reconhece que é difícil imaginar as condições desumanas a que estas pessoas se sujeitam em nome da sobrevivência. “São pessoas como nós, que têm vidas iguais às nossas, que estudaram, que fizeram vida, e de repente já não podem seguir o curso de vida normal e humanamente aceitável de viver e morrer, claro, mas morrer de velhice ou de acidente”, explica, comparando ainda o trabalho feito em palco a uma “descida aos infernos que se vai buscar para a nossa realidade europeia e quase burguesa”.
O texto de Matéi Visniec também se presta à sátira que denuncia a insistência do mundo ocidental em acentuar as diferenças entre os que vêm e os que cá estão. Há o Salão de Novas Tecnologias Anti-Imigração, onde se vendem detectores de batimentos cardíacos que permitem identificar os clandestinos. Há a Colinhos d’Aço, uma empresa que pretende melhorar as vedações da Europa com uma vasta gama de arame farpado. Mas há também a manifestação de um grupo de prostitutas que questiona a necessidade das políticas europeias darem apoio à saúde sexual e reprodutiva dos refugiados. “A maioria da gente que vem são homens e chegam aqui vindos de culturas em que uma mulher que tem os braços à mostra pode ser considerada uma prostituta”, problematiza Rodrigo Francisco, acrescentando que “Visniec coloca o dedo na ferida e tira partido, com humor, dessa décalage cultural”.
Migrar para não morrer
Em Janeiro de 2016, o diário francês Le Figaro escrevia que a Câmara Municipal de Munique havia elaborado um “guia de boa conduta” para os refugiados em que figuravam instruções como “Sorrir não é considerado tentativa de assédio” ou “Todas as mulheres merecem o mesmo respeito, seja qual for a sua aparência ou tipo de fato de banho”. O autor romeno serve-se do seu conhecimento enquanto jornalista para alertar para o fosso de separação entre as duas culturas que raramente faz manchetes nos jornais e que, consequentemente, não consegue encontrar bases de discussão para ser encurtado. “A Europa pode tornar-se um grande modelo de civilização e democracia para o resto do mundo, mas isso só acontecerá se não a transformarmos numa fortaleza”, reitera Matéi Visniec.
Todos os dias continuam a chegar botes abarrotados a Calais, Lesbos e Lampedusa. Se esta ideia ficar a pairar na mente do espectador mesmo depois de deixar a sala, Migrantes terá sido missão cumprida. Não é sua intenção dar-nos respostas, mas deixar perguntas no ar e fazer-nos perceber que todas as gerações são feitas de migrantes. Uns vão embora para escapar a um regime. Outros deixam o país em busca de algum conforto. Eles migram para não morrer.