D. Carlos Azevedo: “Maria não vem do céu por aí abaixo”
Delegado pontifício da Cultura no Vaticano diz que é o momento de se falar com a “linguagem exacta” sobre o que se passou há 100 anos na Cova da Iria: foram visões místicas, não aparições. O Papa Francisco anunciou ontem a canonização dos pastorinhos para 13 de Maio.
D. Carlos Azevedo, bispo-delegado do Conselho Pontifício da Cultura no Vaticano, defende que a leitura de Fátima não pode ser literal, mas teológica, “há uma interpretação a fazer” porque os fenómenos místicos “são naturais”. E acredita que o Papa Francisco “vai iluminar a actualidade da mensagem de Fátima” sobre a humanidade e a co-responsabilização dos cristãos perante o futuro: “Se não mudarmos os critérios, vamos ter consequências negativas dos nossos comportamentos.”
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D. Carlos Azevedo, bispo-delegado do Conselho Pontifício da Cultura no Vaticano, defende que a leitura de Fátima não pode ser literal, mas teológica, “há uma interpretação a fazer” porque os fenómenos místicos “são naturais”. E acredita que o Papa Francisco “vai iluminar a actualidade da mensagem de Fátima” sobre a humanidade e a co-responsabilização dos cristãos perante o futuro: “Se não mudarmos os critérios, vamos ter consequências negativas dos nossos comportamentos.”
Entre o trabalho que desenvolve hoje na área cultural no Vaticano e a investigação nos seus arquivos sobre a Igreja portuguesa, adianta que o segundo grande congresso de música sacra vai realizar-se em 2018 em Roma, desta vez destinado aos compositores contemporâneos, e que a consulta de processos até agora intactos tem revelado histórias de personagens que não quiseram ser bispos e cartas desconhecidas de D. António Barroso, cujo processo de canonização está em curso.
Nos arquivos do Vaticano encontrou documentos que mostram como foi restaurada a diocese de Leiria e reaberta a Nunciatura Apostólica em Portugal. Teve a surpresa de, sendo acontecimentos contemporâneos dos de Fátima, não ver ligação entre eles. Qual a importância destes episódios para a história da Igreja em Portugal?
Encontrei dados inéditos. Havia a questão de a diocese de Leiria ter sido restaurada em Janeiro de 1918, o bispo só ter sido nomeado em 1920. Não se sabia porque demorara tanto tempo e encontrei essa documentação. Primeiro, a restauração da diocese. Alguns historiadores diziam que fora restaurada em 1918, talvez já por influência das visões de 1917. Sabíamos que o movimento [para a sua reabertura] vinha quase desde que a diocese fora suprimida no século XIX, mas especialmente a partir de 1914. Foi até criado um jornal de propósito em Leiria para lutar pela restauração.
Esse movimento teve algum resultado junto da nunciatura, na altura com um encarregado de negócios, Aloisi Masella, porque em 1910 tinha sido suspensa a presença do núncio. Fez conhecer ao secretário de Estado do Vaticano toda essa vontade. Masella é muito ajudado por António Antunes, natural de Leiria e vice-reitor em Coimbra. Os dois tinham-se conhecido como estudantes na universidade em Roma. António Antunes ajuda-o a criar todo o processo de justificação para a restauração da diocese. A novidade é que em 30 de Abril de 1917, a quinze dias das primeiras visões, ele envia uma informação ao secretário de Estado a dizer que está decidida a restauração da diocese e que falta escolher a data oportuna para o dar a conhecer: prova que não teve absolutamente nada a ver com as visões, não havia notícia disso.
Depois conto por que se atrasou a escolha do primeiro bispo. António Antunes, que tinha ajudado ao processo de restauração, é o escolhido pelos bispos. Era de Leiria conhecia a diocese e não se falava ainda em nada de visões. Mas ele estava doente e não queria ser bispo; achava que não tinha energia. A Santa Sé cede e o bispo de Coimbra pede-o para auxiliar. Acabaria por o suceder [mais tarde]. É assim que [num novo processo aberto, o padre] José Alves Correia da Silva é escolhido para Leiria. Tem três bispos que votam nele e três em Agostinho de Jesus e Sousa. O Núncio envia o processo e remete a decisão para Roma. Da parte de Portugal não houve qualquer pressão.
Como historiador, isto é conhecer a memória, é um serviço que se pode fazer à Igreja, estando em Roma, e conhecer a nossa realidade histórica.
Por que é que o pároco de Fátima que estava a reunir dados sobre o fenómeno de Fátima não os enviava para o Patriarcado de Lisboa [a que pertencia então Leiria]?
Ele ouvia sempre os pastorinhos passados uns dias de cada uma das visões, mas nunca enviou informação para Lisboa. Acreditava que viria um bispo para Leiria e que depois lha podia entregar directamente. Há aqui todo um conjunto de razões que se tornam mais explicáveis devido a esta investigação.
Tenho centenas de páginas de documentação inédita que vou encontrando nas caixas que vou abrindo. Publiquei três livros e tenho mais em andamento, fora do trabalho pastoral.
Em todo o seu livro Fátima, das Visões dos Pastorinhos à Visão Cristã nunca fala em aparições, mas sim em visões imaginativas. Porquê?
Chegou o momento para falarmos com linguagem exacta. Joseph Ratzinger no ano 2000, quando fez o comentário teológico à última parte do segredo de Fátima, usou sempre a palavra visões e esse é o rigor teológico. O grande teólogo Karl Rahner também escreveu um livro sobre visões e profecias, usando a palavra visões. Esse é o termo exacto.
As visões, de vários tipos, são fenómenos místicos, espirituais, não físicos. Claro que uma pessoa ao descrever uma visão projecta os seus arquétipos, o que tem na sua mente, a sua memória, e na mensagem que recebe já entra a fé. Há uma mensagem que a transcende e que tem de ser interpretada. É a revelação particular que depois tem de ser interpretada à luz do evangelho e da doutrina, segundo as regras que a Congregação da Doutrina da Fé publicou em 2011, mas já conhecidas desde 1998.
Há muitos fenómenos de visões. Nós, párocos, conhecemos sempre alguém que nos vem dizer que tem visões. Estes fenómenos são naturais, sobretudo em períodos de crise, de dificuldade, ou da própria pessoa ou do mundo, em período de guerra, como foi o caso de 1917. É impressionante a densidade de factos do ano de 1917 em Portugal e no mundo.
Há uma interpretação a fazer e essa interpretação é a da presença maternal de Maria na vida dos cristãos, como disse João Paulo II quando foi a primeira vez a Fátima. Todos os cristãos sentem essa presença mas alguns podem-na sentir de modo mais intenso. Isso então é uma visão, uma experiência mística. A presença de Maria não vem do céu por aí abaixo. Essas descrições são mais simples, mais imediatas, para entender o que é uma visão mística, mas precisamos de usar a linguagem exacta para não cair no ridículo. Gostava que este livro servisse para quem não crê ter respeito para com o episódio, ainda que não acredite.
E integra disciplinas como a psicologia?
A psicologia e a teologia espiritual. São estes dois ramos do saber. A teologia espiritual tem muito de psicologia, e descreve a diferença entre uma alucinação, sugestão, a diferença entre vários elementos de uma experiência psicológica.
Os pastorinhos viveram uma visão imaginativa?
Sim, conforme Ratzinger classificou já no ano 2000 e o próprio Rahner já o tinha feito nos anos de 1940.
Está contra uma "acção milagreira de Deus", defende que os fenómenos místicos não podem ir contra os conhecimentos científicos e devem atender a cultura sua contemporânea. Olhamos para a história dos santos e milagres da igreja e está povoada de pastorinhos. Hoje não havia lugar para eles. O que fica, para a Igreja?
Lugar para a mística. Há muita experiência urbana de grandes místicos. Por exemplo, Adriana von Speyr, que é pouco conhecida em Portugal, que foi uma grande mística com o teólogo Urs von Balthasar no século XX. De certo modo podemos comparar com São João da Cruz com Teresa de Ávila. Adriana era uma mística que tinha visões. Acontecem no século XX coisas reais, profundas, muito evangélicas e com base nos critérios que dão autenticidade. E continuam a acontecer. Temos que estar despertos para essas realidades na vida da Igreja actual.
No seu livro pergunta como é que Fátima emerge actual, quando o factor religioso, debilitado no Ocidente cristão e vigoroso num Islão intolerante, se traduz em aspiração espiritual. Que resposta encontrou?
Encontrei uma resposta clara e penso que o Papa Francisco ao ir a Portugal vai iluminar a actualidade da mensagem de Fátima. O fenómeno da Cova de Iria acontece na Primeira Guerra Mundial e aponta já para a Segunda Guerra - "se não mudarem os critérios de vida, vem uma guerra pior". Agora, o Papa Francisco tem falado numa terceira guerra "em episódios". Nestes últimos dias temos recebido notícias de um perigo de armamentos, ameaças a que é preciso dizer "tenham juízo". É preciso um apelo de Deus, ter confiança no futuro com base na mudança de critérios políticos, económicos, como o Papa tem dito, para bem de toda a humanidade.
A palavra fundamental no apelo de Fátima - "se não mudardes, o mal vai vencer" - é a conversão, que muitas vezes se aplica só a uma questão muito individual e não à História. [O fenómeno de] Fátima é extremamente profético, as crianças tiveram um carisma profético. Aquilo que disseram marcou a história da humanidade, a ponto de João Paulo II sentir que se aplicou à sua própria vida.
A terceira parte do segredo abre mesmo para o futuro, não ficou reduzida ao Papa, aplica-se à humanidade actual, ao seu futuro: se não mudarmos os critérios, vamos ter consequências negativas dos nossos comportamentos, de uma economia que dá cabo da vida das pessoas. Tudo isto é muito concreto. O apelo de Fátima à conversão emerge muito actual.
Num mundo agitado e divido por um Brexit, populismos e ameaças, espera essa mensagem do Papa?
Vivemos em todo o mundo, não apenas na Europa, uma complexidade de situações, com populismos e grandes impérios seduzidos por essa atitude, não apenas os pequenos países como a Venezuela. Temos o problema das migrações que está a desestabilizar a aparente segurança da Europa, temos uma realidade africana cheia de dramas e uma dificuldade em encontrar líderes que vejam o bem comum do povo. Em todo o mundo há situações de ausência do bem comum, do bem da humanidade. O Papa vem ao centenário de Fátima carregar às suas costas o drama actual da humanidade e prevenir para terem cuidado, a continuar assim isto não terá grande saída, não haverá um êxodo de libertação, mas de desgraça.
Na vinda de Paulo VI a Fátima ficou célebre a expressão "homens, sede homens" na homilia. É preciso que a humanidade seja mais humana, tenha em conta o bem comum. Não é só a globalização económica que tem consequências nos outros. As nossas atitudes no dia-a-dia também têm no futuro da humanidade. Somos co-responsáveis pelo mal da humanidade. Enquanto permitirmos, muitos ditadores são ditadores por voto popular, como se viu agora na Turquia. É preciso ter consciência do bem e não ir na sedução fácil de um líder que manobra o povo.
Propõe uma leitura teológica de Fátima, não literal: a visão do inferno como apocalipse bíblico, a Rússia como Babilónia, a execução do bispo vestido de branco como perseguição à Igreja. Esta Fátima de que fala não está longe do que motiva os seus peregrinos?
Se interpretamos a Bíblia, que é a palavra de Deus, aplicando ao contexto do nosso tempo, muito mais devemos aplicar uma mensagem que é particular. A própria Lúcia, ao longo das suas memórias, vai interpretando, digerindo, porque vai ganhando cultura espiritual e teológica, que não tinha aos 10 anos. É espantoso como crianças com aquela idade, num lugar sem cultura teológica, recebem uma mensagem com uma densidade tão forte e implicações tão grandes na história da humanidade.
Não é essa perspectiva que tem mobilizado os peregrinos que vão a Fátima, seguramente a sua maioria. São histórias pessoais. Como se fará essa ponte?
Esse é o trabalho da mediação que a Igreja é chamada a fazer. Os pastores na Igreja são chamados a acolher todas as pessoas com o nível de ansiedade espiritual com que chegam. Cada um, com a carga das suas feridas e história pessoal, entrega e espera uma consolação espiritual da vida e uma esperança renovada.
Mas a mensagem de Fátima é também de inquietação, de conversão, e esta dimensão é mais difícil de fazer passar. Exige um trabalho pedagógico da Igreja para que se possa ajudar a que a pessoa verifique que as suas próprias feridas são fruto dos males da sociedade. As causas são da própria história, como quando as pessoas iam a Fátima na guerra colonial, ou na emigração. O seu sofrimento é mais largo, tem causas, e é preciso tratar essas causas. O pastor é chamado a ajudar as pessoas a perceber os seus dramas, mas não a personalizá-los, no sentido de uma privatização.
É muito importante que a fé seja personalizada, que cada um tome consciência, mas que a perceba incluída na comunhão da Igreja e de toda a sociedade. A igreja é chamada, a partir do sofrimento pessoal, a dizer por que cada um sofre, a ir às razões profundas do mal e a tentar curar a sociedade em que o cristão está inserido. Vai também à realidade da política, porque se houve mensagem de visões no mundo que fosse política, foi exactamente Fátima. Hoje, os teólogos escrevem sobre Fátima, dizem isso, mas fica muito em congressos, ao nível de uma elite. É preciso ajudar as pessoas a terem uma amplitude da sua experiência pessoal e a inclui-la em algo mais largo e mais profundo.
Fátima teve, nas suas palavras, períodos de “apropriação”, que significa manipulação, especialmente pela ideologia nacionalista. O que propõe agora implica uma sintonia dentro da própria Igreja em relação a Fátima que historicamente também não se sente, com sectores críticos em relação ao fenómeno.
É preciso transformar algumas elites que já têm esse sentido crítico em linguagem acessível e comunicação que ajude os próprios peregrinos a fazerem um itinerário mais profundo, para além da razão que os leva lá. Esse é um serviço que é necessário multiplicar, desenvolver, exige uma conversão pastoral como o próprio Papa Francisco tem dito e uma conversão de critérios para que a transmissão da fé seja mais exigente, mais cristã. As atitudes de sofrimento, da relação com Deus, podem tornar-se rapidamente fanáticas, fundamentalistas. Vemos noutras religiões, mas também no cristianismo, na medida em que reduzimos a mensagem ao nosso próprio problema. Jesus não veio fazer isso: católico quer dizer universal [do grego katholikos]. Quando o Papa fala ele está a defender os interesses da humanidade, isso é que é o serviço. Temos de ajudar cada um a sair de si, da sua concha, para implicar-se com a transformação da sociedade. Este trabalho não é fácil. É mais fácil dar explicações mágicas da realidade do que as que implicam transformação pessoal.
Na história dos outros santuários marianos também vemos oração, penitência, conversão. Em que Fátima é diferente?
É diferente devido a todo o contexto histórico em que ocorreram as visões, e devido à implicação da mensagem, concretamente a parte do segredo que foi conhecido já nos anos 1940, e o que foi escrito em 1944 mas só foi conhecido no ano 2000. Essa leitura que tem implicações históricas deu a visão concreta aplicada à transformação da história. Nenhum outro santuário tinha esta amplitude profética - houve [nos outros] uma questão mais espiritual, de renovação interior, mais de uma oração de comunhão com Deus, de ter o olhar de Deus sobre a vida. Curiosamente Fátima diz que o olhar sobre a vida leva a olhar de modo diferente o mundo, e faz esta passagem, do ponto de vista pessoal para as consequências. A visão do inferno [foi transmitida] com linguagem própria da época, é preciso perceber o que significa hoje. Daí o esforço teológico que tem de ser feito, e que tento recolher da reflexão dos teólogos que já têm avançado alguma iluminação sobre as várias mensagens de Fátima. E percebemos que elas têm um alcance como não era habitual em outros santuários.
Não voltamos a um certo profetismo, como foi o nacionalista?
Lúcia foi a que ficou com a responsabilidade de transmitir a perspectiva. Não foi fruto de sebastianismos ou visões de missão profética de Portugal no mundo que depois podemos aplicar e comparar. É a própria mensagem que está lá contida, no que Lúcia escreveu, nas memórias, na parte da comunicação da mensagem essencial.
A experiência de João Paulo II personalizou Fátima?
O Papa João Paulo II foi fundamental na relação com Fátima sobretudo pela devoção pessoal a Maria, com o seu lema totus tuus, e com a sua própria história universalizar ainda mais Fátima - na relação com o drama e os problemas da humanidade e com o atentado ter sido a 13 de Maio.
Não se impôs a perspectiva do milagre?
É sempre o risco da religião. Somos seguidores de Jesus que tentou libertar-nos dessa visão. Ele sempre disse "a tua fé te salvou", "foste tu", "tu é que acreditaste e conseguiste vencer o teu problema". Ele sempre relacionou a capacidade de acolher na fé os problemas que temos e esse é que é o sentido que damos à palavra milagre. É a renovação excepcional que alguém é capaz de ter devido à fé. Por exemplo, o Papa Pio XII foi ordenado no mesmo dia 13 de Maio de 1917, e daí ele ter pessoalmente sentido uma implicação em Fátima. Para quem não tem fé são meras coincidências, para quem tem fé não são. A fé transforma os factos numa implicação pessoal.
Relativamente à pequisa que tem feito nos arquivos do Vaticano, que mais dados novos tem encontrado sobre a história mais recente da Igreja portuguesa?
Como andei nas caixas dos processos dos bispos por causa da restauração da diocese e a nomeação do bispo, encontrei, por exemplo, personagens que não aceitaram ser bispos e que tiveram uma pressão enorme para o ser. Encontrei também muitas cartas desconhecidas de D. António Barroso, que não estavam no processo de canonização. A carta que escreve para o núncio sobre a escolha dos bispos [à época] é de um sentido de Igreja muito profundo. Não podemos esquecer que os bispos só puderam escolher os bispos a partir de 1910, porque antes era o rei. A Igreja só teve liberdade de escolher os bispos a partir de 1910. Era uma coisa nova.
E, ao procurar coisas sobre a Inquisição, para o Terramoto Doutrinal, também encontrei sermões de autos de fé inéditos de bispos portugueses. Já transcrevi todos e estou a agora a fazer a introdução e a preparar a publicação. É este o contributo para dar a conhecer um fenómeno muito discutido que era a Inquisição, como era aproveitada a Bíblia, no caso dos sermões, e como se pode estragar a palavra de Deus para condenar inocentes. Encontrei algo de dramático que tem de ser lido no contexto da época, mas diz sobre a responsabilidade dos pastores. Como dizia João Moutinho [em Terramoto Doutrinal], a igreja em Portugal é herética. Ao aceitar a Inquisição, está a aceitar uma instituição que é contrária ao evangelho, portanto, está em heresia.
Foi para Roma trabalhar como delegado-pontifício para a cultura. Em que projecto sob a sua tutela com maior impacto para a Igreja se envolveu?
O último foi o grande congresso de música sacra. O documento de música sacra tem 50 anos. Comecei a preparar a comemoração da data há três anos. Foi feito um inquérito de 40 perguntas às conferências episcopais de todo o mundo sobre como vai a música. Recolhemos as respostas num documento de 100 páginas e a partir daí conseguimos este congresso de 400 pessoas em Roma [foi de 3 a 5 de Março], com a presença do santo padre no último dia. Foi gente de todo o mundo. Só de Espanha foram 40 pessoas. De Portugal infelizmente não houve muita sensibilidade, porque a conferência episcopal não fez comunicar isso à Igreja, foi a conferência episcopal convidada a estar representada e teve uma presença de cinco pessoas. Dos EUA foram 20, do Brasil 15. Houve uma sensibilidade grande para a questão da música.
Qual é a mudança que se perspectiva?
Com o concílio Vaticano II mudou o paradigma das línguas. Antes era em latim: uma música composta em latim servia para todo o mundo. Ao mudar a língua vernácula, mudou o paradigma. Algumas igrejas foram capazes de manter uma certa qualidade com compositores que escreveram para uma nova realidade, mas o nível baixou imenso e as pessoas vão a uma igreja e não saem de lá de alma cheia, do ponto de vista da música. Muitas vezes é uma banalidade, prefere-se música light. A liturgia exige qualidade e isto foi uma reflexão para todo o mundo. As igrejas do norte da Europa conseguiram adaptar-se mais facilmente com alguma qualidade, mas na parte sul, na América latina, a África teve alguma adaptação mas é muito rural, começa agora a estudar música para ser capaz de transcrever em partitura a tradição muito concreta do povo. A expressão da fé exige qualidade, como exigem as liturgias.
Quando se fala em música sacra pensa-se nas grandes composições do passado.
Quando a música gregoriana foi composta ela era cantada nas celebrações. Quando os grandes compositores, como Bach e outros, compuseram a sua música ela era executada nas catedrais. Foi um momento de auge e de grande génio e é necessário continuar a proporcionar. Estamos a preparar um outro congresso para 2018 só para compositores contemporâneos.
Que balanço faz do Átrio dos Gentios, de diálogo entre crentes e não crentes?
Trabalho mais na valorização da arte e do património e na relação da Igreja com a arte, mas tenho ajudado no Átrio dos Gentios. Fui com o cardeal Ravasi ao Brasil e a Braga. Em todo o mundo é uma experiência que tem deixado eco. As várias conferências episcopais têm procurado prosseguir esta atitude de diálogo.
Os problemas da humanidade exigem a colaboração entre os que crêem e os que não crêem. Houve um debate no Parlamento italiano, provocado pelo Átrio dos Gentios, sobre eutanásia com todos os deputados crentes e não crentes. Conseguiram chegar a uma reflexão que faz livrar a leitura destes grandes problemas da humanidade de uma visão religiosa, porque são problemas humanos. Eu posso vê-los do meu ângulo religioso, como um não crente pode até ser mais exigente para com a humanidade nessas situações. A densidade de humanidade está independente de ser crente ou não crente. Os problemas de hoje exigem este confronto e esta abertura.
Em 2013, foi conhecida uma acusação de assédio sexual contra si. O que daí resultou?
Trata-se de uma situação que foi dura, acolhi-a com algum sofrimento mas fui encontrando também a reconciliação com a história e sobretudo a procura, na situação nova em que me encontrei, de um sentido, uma ajuda e um trabalho de serviço à Igreja num contexto diferente. O resto não foi nem é comigo. Vivi com atitude de perdão e de misericórdia. O importante é encontrarmos o nosso lugar e respeitarmos a realidade de cada situação.
Actualizado às 11h04 de 22.04.17 nas referências às áreas cultural e de investigação