A guerra do fim do Império

A série documental de Joaquim Furtado A Guerra está a ser editada em DVD com livros assinados por Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes. Este é o prefácio do volume três — Movimentos de Libertação.

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Imposição de insígnias a um auxiliar da Administração, Moçambique Foto gentilmente cedida pelo Jornal do Exército

Não constituindo propriamente um tema tabu na sociedade portuguesa, a guerra em três frentes que Portugal travou para conservar a sua soberania imperial em África (1961-1974) careceu, durante muito tempo, de um tratamento com o tipo de exaustividade e rigor que Joaquim Furtado lhe pôde emprestar na sua magistral série exibida pela RTP entre 2007 e 2012.

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Não constituindo propriamente um tema tabu na sociedade portuguesa, a guerra em três frentes que Portugal travou para conservar a sua soberania imperial em África (1961-1974) careceu, durante muito tempo, de um tratamento com o tipo de exaustividade e rigor que Joaquim Furtado lhe pôde emprestar na sua magistral série exibida pela RTP entre 2007 e 2012.

Durante muito tempo, as abordagens a este conflito possuíram sobretudo um carácter testemunhal ou memorialístico ou, então, um recorte ficcional (patente nas obras de escritores como Lobo Antunes, Lídia Jorge, João de Melo, Manuel Alegre, entre outros). Porventura, isso explica-se pela natureza ainda melindrosa de muitos dos acontecimentos relacionados com a guerra, os quais, como sabemos, envolviam uma instituição – as forças armadas – que até meados da década de 1980 permaneceu profundamente implicada na política portuguesa. E quando muitos dos arquivos relevantes para o estudo das guerras de África começaram a ser abertos, os primeiros estudos a serem realizados tiveram como autores, antigos militares de carreira, tanto nacionais (Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes) como internacionais (John P. Cann). Esse panorama tem conhecido, gradualmente, uma maior diversificação, com vários trabalhos oriundos da academia a abrirem novas perspectivas, designadamente em termos metodológicos (veja-se, por exemplo, o livro de Maria José Lobo Antunes, Regressos Quase Perfeitos. Memórias da Guerra em Angola, 2015).

No entanto, creio que não cometerei nenhuma injustiça se afirmar que, na última década, a série de Joaquim Furtado se destaca como uma obra singularmente inovadora sobre esta temática. Segundo posso saber, ela não tem, aliás, paralelo no panorama europeu ou mesmo internacional – 42 episódios, muitos deles com duração superior a uma hora, constituem um acervo ímpar que dificilmente será superado no formato audiovisual. Sem nunca perder de vista a trama cronológica, a série evita, contudo, o registo mais convencional centrado nas visões das altas patentes e das grandes figuras políticas. Pelo contrário, ela dá-nos conta das múltiplas facetas que marcaram o conflito (da acção psico-social aos impactos na vida das populações africanas, das ligações internacionais e transnacionais à dimensão económica), sempre servida por uma preocupação de pluralismo (bem evidente, de resto, na escolha do subtítulo – colonial, do ultramar, ou de libertação). São inesquecíveis alguns dos depoimentos que Furtado conseguiu registar – desde os antigos militantes da UPA envolvidos no 15 de Março de 1961 ao caçador profissional que liderou patrulhas de vigilantes em Angola, passando pelas guerrilheiras dos movimentos nacionalistas africanos ou pelos desertores do exército português na Guiné.

Conduzida por uma pequena equipa (praticamente reduzida ao próprio Furtado), a pesquisa documental que lhe serviu de base inscreve-se na melhor escola do jornalismo de investigação, baseada na crítica e no cruzamento de fontes, na procura da contextualização e no gosto pelas histórias singulares. Oxalá esta nova distribuição em DVD possa alargar ainda mais o seu público, tanto em Portugal como nos países africanos cuja independência está intimamente ligada a este conflito estruturante na nossa contemporaneidade.