Passado e futuro do trabalho (I)
Com o direito do trabalho e o sindicalismo ameaçados de morte, fará sentido a atual euforia em torno da robótica, das startups e do trabalho digital?
Num momento em que a inovação tecnológica, o trabalho digital, a robótica e as mais diversas redes informacionais parecem inaugurar um novo ciclo de atividades e formas de prestação de trabalho, torna-se necessário questionar as alterações em curso no mundo do trabalho e os seus impactos na sociedade mais geral. O presente texto procura interpretar o sentido das mudanças ocorridas no mundo laboral, segundo uma perspetiva histórica. Num próximo artigo abordarei a equação “inovação” versus “regulação” num registo prospetivo, centrando-me nos cenários de futuro.
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Num momento em que a inovação tecnológica, o trabalho digital, a robótica e as mais diversas redes informacionais parecem inaugurar um novo ciclo de atividades e formas de prestação de trabalho, torna-se necessário questionar as alterações em curso no mundo do trabalho e os seus impactos na sociedade mais geral. O presente texto procura interpretar o sentido das mudanças ocorridas no mundo laboral, segundo uma perspetiva histórica. Num próximo artigo abordarei a equação “inovação” versus “regulação” num registo prospetivo, centrando-me nos cenários de futuro.
Desde a antiguidade que as formas de trabalho humano exprimiram um paradoxo que persiste até aos nossos dias: o trabalho pode significar sobretudo sofrimento e opressão ou oferecer-se como um campo de oportunidades e sentido criativo. Ao longo da Idade Média, a antiga noção de tripallium (instrumento de tortura usado na era do Império Romano) colou-se à ideia de trabalho, imprimindo-lhe atributos conotados sobretudo com violência e sofrimento. Porém, tal conotação evoluiu ao longo dos séculos e, à medida que o mundo ocidental se foi secularizando, o trabalho foi adquirindo um sentido positivo. O triunfo da racionalidade trouxe consigo o reconhecimento do papel da economia e do mercado como fatores de progresso, donde resultou uma nova valorização do campo produtivo. O trabalho tornou-se a atividade do homo faber, isto é, aquele que transforma a matéria-prima e cujo saber-fazer contribui para o avanço da sociedade.
Com a entrada no século XVIII e o crescimento das ideias iluministas, o trabalho ganhou finalmente o merecido reconhecimento social. Pode dizer-se que as componentes artística, técnica e económica sempre foram indissociáveis da produção. Mas é sabido que, desde a era do artesanato à era da “economia digital” dos dias de hoje — passando pelo taylorismo, fordismo e toyotismo —, o triunfo do regime fabril foi expurgando do seu seio os velhos fatores intrínsecos ao trabalho do “artífice”, como as habilidades, a criatividade e o controlo do processo produtivo.
Como se sabe, desde a emergência do capitalismo moderno o “trabalho assalariado” assumiu um lugar central nos países ocidentais, designadamente pela relação conflitual que estabeleceu com o capital, dando lugar às duas principais forças que estiveram na génese do modelo de “sociedade industrial” e de todas as mudanças vertiginosas que daí resultaram. Com efeito, a rápida transformação social desencadeada a partir da Revolução Industrial na Inglaterra pôs em evidência uma relação conflitual que, paradoxalmente, erigiu a classe trabalhadora no principal ator coletivo da modernidade. Um ator que resistiu, enquanto classe espoliada, ao mercantilismo selvagem que serviu de suporte à rentabilização da inovação técnica da I Revolução Industrial, mas que mais tarde, já na segunda metade do século XX, serviria de berço às novas classes médias assalariadas.
Em filmes clássicos como Metropolis (Fritz Lang, 1925), a classe trabalhadora é remetida para um submundo opressivo, alimentando com a sua energia produtiva a ganância lucrativa de capitalistas sem escrúpulos, enquanto o célebre Tempos Modernos (Chaplin, 1936) retrata a alienação do trabalhador, despido de criatividade e de razão, ao serviço das novas cadeias produtivas apoiadas na maquinaria moderna. A grande linha de montagem desenvolvida por Henry Taylor foi em larga medida responsável pela fantástica expansão do capitalismo industrial na entrada do século XX, mas ao mesmo tempo criou (pelo menos no Ocidente) um fosso abissal entre as duas classes responsáveis pelo crescimento económico no capitalismo.
O modelo keynesiano do pós-guerra e o regime de produção fordista, em larga medida induzidos pelo trauma da Segunda Guerra e pelas contradições da Guerra Fria (entre as quais o temor da revolução), constituíram de algum modo uma extensão institucional das vigorosas lutas sociais herdadas do operariado do século XIX e início do século XX. Este “pacto” entre as duas classes rivais deu lugar a um capitalismo de rosto humano e a uma coesão social envolta na ilusória premissa da meritocracia, balizada pela trilogia: Estado providência, inovação técnica e competição produtivista. A filosofia humanista e a ideologia social-democrata justificaram então a consolidação dos direitos laborais e a segurança no emprego, apresentados como as vantagens da democracia ocidental em relação à obscura e ameaçadora alternativa vinda do socialismo soviético.
Taylorismo e fordismo estimularam a massificação da produção e do consumo, favorecendo o crescimento económico e a paz social, caucionada pelo campo sindical. Enquanto o fordismo ofereceu às massas de consumidores e trabalhadores níveis de vida satisfatórios, as expectativas foram-se ajustando às necessidades da economia e a sociedade de consumo pôde harmonizar-se, resguardada por uma espécie de “individualismo positivo”, protegido pelo Estado e os seus sistemas sociais. Foi o tempo dos gloriosos 30 anos de crescimento que estimulou o tão detestado (por alguns) “emburguesamento” da classe trabalhadora (na verdade a sua maior conquista, até hoje). O chamado “toyotismo” e as novas formas de produção flexível chegaram a simular um horizonte de maior “autonomia”, liberdade e democracia laboral, invocando uma “cultura de empresa” promotora de harmonia e bem-estar, mimetizada a partir da experiencia japonesa. Mas a expectativa positiva quanto à “flexibilidade” do trabalho e ao neocorporativismo fundado no “espírito da casa” foram sol de pouca dura.
Com a globalização neoliberal e a revolução informática entrou-se numa nova era (fala-se agora da IV Revolução Industrial ou Indústria 4.0). Mas lado a lado com a inovação tecnológica surgiram novos desafios, dificuldades e condições opressivas para a classe trabalhadora. Em Portugal, os seus níveis salariais recuaram, em especial os segmentos mais qualificados, para níveis de há três décadas. O trabalho a termo, o subemprego, o part-time, os salários miseráveis, as práticas despóticas e a precariedade que incidem sobre a esmagadora maioria da força de trabalho, em contraste com os ganhos chorudos e todo o tipo de benesses de diretores, CEOs e dirigentes do sistema bancário.
A recente crise e as políticas de austeridade aceleraram drasticamente o novo liberalismo regressivo no mundo laboral, aumentando as desigualdades e revertendo, de novo, o trabalho em mera mercadoria. O velho conceito de “emprego” ou a ideia de “carreira profissional” ganharam nos dias que correm um novo sentido, ou melhor, perderam sentido. Neste contexto, desenham-se novas paisagens no mundo laboral, levando as novas gerações que vão chegando ao mercado de trabalho a desenvolver uma atitude ambivalente, entre a apreensão e resignação.
Com o direito do trabalho e o sindicalismo ameaçados de morte e os novos trabalhadores qualificados forçados a ser “empreendedores” da sua própria precariedade, fará sentido a atual euforia em torno da robótica, das startups e do trabalho digital? Estaremos a caminho de um novo mundo feliz? Ou, pelo contrário, o atual precariado pode — perante condições tão adversas — vir a tornar-se o novo protagonista da conflitualidade social do século XXI?
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico