Turquia: somos nós
Erdogan ganhou o referendo que vai não só permitir uma excessiva concentração de poder na presidência como também bipolarizar perigosamente o país.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Erdogan ganhou o referendo que vai não só permitir uma excessiva concentração de poder na presidência como também bipolarizar perigosamente o país.
A involução democrática da Turquia é uma triste notícia, mas há quem a festeje, como aquela personagem que ao festejar a desgraça alheia celebra, na sua cegueira, a sua própria desgraça.
Para os que festejam, estaria na tentação autoritária de Erdogan a prova de que sempre tinham tido razão ao proclamarem que a Turquia não é um país europeu, porque a maioria da sua população é muçulmana. Não vêem, na sua cegueira, que não estão a falar da Turquia, mas sim da Europa e das fraturas que a atravessam.
A involução democrática da Turquia é parte integrante de uma tendência mais global de retrocesso democrático. Como se a democracia, que atingiu um pico no final da década passada, com mais de 50% dos países do mundo a viverem de acordo com regras democráticas, tivesse ela também, ao sabor da grande depressão de 2008, entrado em recessão.
Erdogan fez a sua campanha do referendo com um discurso nacionalista e securitário, sugerindo a reintrodução da pena de morte e acusando os Estados da União de todos os males. Erdogan não perdoa aos dirigentes europeus a sua suposta falta de solidariedade perante o golpe militar de julho de 2016.
Erdogan fez o discurso nacionalista que dá votos. Não foi essa a chave do sucesso do "Brexit" e de Trump? Não é o discurso nacionalista anti-União que nas eleições francesas tem ajudado a colocar Marine Le Pen no topo das intenções de voto ou que permite a Jean-Luc Mélenchon sonhar com um lugar na segunda volta? Não é ao discurso securitário, que envenena as democracias desde o 11 de Setembro, a que recorre não só Marine Le Pen, mas também François Fillon, para tentar fugir da derrota a que a sua falta de decoro o deve ter condenado.
Os que se regozijam com as desgraças da Turquia têm uma responsabilidade direta na popularidade que o discurso nacionalista encontra entre os eleitores turcos. O nacionalismo turco alimenta-se da humilhação sentida quando, depois de lhes ter sido prometida a adesão, viram fechadas as portas da União, porque não eram da verdadeira Europa.
A Turquia tinha representantes na Convenção Europeia(2002, 2003), que participaram ativamente na elaboração do projeto de Constituição e no debate sobre a identidade da União. Na altura, os que propunham uma identidade cultural cristã, exatamente para impedir a adesão do grande país de maioria muçulmana, perderam, mas pouco a pouco os sentimentos antimuçulmanos foram-se banalizando, passando a ser abertamente assumidos por políticos europeus como Sarkozy.
A imagem da Europa na Turquia ainda se deteriorou mais com a crise de refugiados. A xenofobia antirrefugiados teve e tem um efeito catastrófico para a imagem da União e o seu poder de atração. O acordo entre a União e a Turquia de retorno de refugiados a troco de ajuda financeira, e a promessa escandalosamente oportunista de reabertura das negociações de adesão não convenceu ninguém. Bem pelo contrário, agravou na Turquia, onde vivem três milhões de refugiados, a imagem de uma Europa egoísta e fechada.
A Turquia é um país europeu, reconhecido como tal pelos outros Estados europeus, o que levou à sua participação na rede de instituições que foram criadas após a Segunda Guerra Mundial, como, por exemplo, o Conselho da Europa (1949). A cimeira de Helsínquia de dezembro de 1999 reconheceu a Turquia como candidato a membro da União Europeia e nos anos que se seguiram o país fez um esforço real para corresponder aos critérios de adesão, tendo feito muitas das reformas necessárias para ser um Estado membro. A convicção de que a adesão era uma ilusão fez desaparecer o incentivo das reformas e foi marginalizando os europeístas do AKP de Erdogan, como o antigo Presidente Abdullah Gul.
Os próximos anos serão decisivos para o futuro da Turquia, com uma perigosa fronteira com a Síria, que já é fortemente atingida pela desintegração do Médio Oriente, como mostram os atentados que a atingiram.
Perante as dificuldades da Turquia, a resposta não é marginalizar ainda mais o país, mas sim mostrar que olhamos para os seus problemas como problemas europeus e que somos solidários, desde logo com os democratas turcos, sejam de que partido forem, e também com a grave situação de segurança que enfrenta.
A involução democrática da Turquia, a consolidar-se, impossibilita a adesão à UE, mas esse argumento já não tem qualquer credibilidade, seja perante as manobras delatórias do passado, seja pela impunidade de países da União como a Hungria.
Nada é mais urgente que credibilizar de novo o discurso democrático da União, mas para isso é extremamente perigoso singularizar a involução democrática da Turquia, e pior ainda considerar, por preconceito, que este cenário político se deve primordialmente à religião de muitos dos seus habitantes.
Não se pode continuar a brincar com a adesão da Turquia. O compromisso claro de que uma Turquia que retome o caminho das reformas democráticas será a prazo membro da União seria a melhor forma de contrariar a sua deriva autoritária, mas também de dar um sentido, tão necessário, ao projeto de uma casa europeia democrática.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico