A fractura exposta na indústria “mais sexy da Europa”
Após 40 anos de união, a associação do calçado é disputada por duas listas. Um dissídio feito nos bastidores políticos, nas divergências pessoais e, na penumbra, no conceito sobre o que é sexy no calçado.
O clima de união que durante décadas distinguiu a APICCAPS no universo do associativismo empresarial português acabou por estes dias de Abril de 2017. As eleições para a direcção da associação dos industriais de calçado vão ser disputadas por duas listas, o que acontece pela primeira vez desde 1975. De um lado, a candidatura de continuidade promovida por Fortunato Frederico, o dono da Fly London que liderou a associação nos últimos 18 anos, tendo o designer e industrial Luís Onofre como cabeça; do outro o líder do Grupo Pedreira, Sérgio Cunha, 59 anos, que gere marcas reconhecidas na indústria como a Nobrand. O que os separa não são só nomes, simpatias pessoais ou jogos de protagonismos locais tão ao gosto do Norte do país: o que está em jogo é uma divergência sobre as estratégias para o futuro da “indústria mais sexy da Europa”, estatuto que a APICCAPS reivindica.
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O clima de união que durante décadas distinguiu a APICCAPS no universo do associativismo empresarial português acabou por estes dias de Abril de 2017. As eleições para a direcção da associação dos industriais de calçado vão ser disputadas por duas listas, o que acontece pela primeira vez desde 1975. De um lado, a candidatura de continuidade promovida por Fortunato Frederico, o dono da Fly London que liderou a associação nos últimos 18 anos, tendo o designer e industrial Luís Onofre como cabeça; do outro o líder do Grupo Pedreira, Sérgio Cunha, 59 anos, que gere marcas reconhecidas na indústria como a Nobrand. O que os separa não são só nomes, simpatias pessoais ou jogos de protagonismos locais tão ao gosto do Norte do país: o que está em jogo é uma divergência sobre as estratégias para o futuro da “indústria mais sexy da Europa”, estatuto que a APICCAPS reivindica.
O que é normal no mundo associativo, haver várias listas a disputar o poder, deu origem a um temor: a união que ajudou a transformar um sector anacrónico numa indústria florescente acabou. Agora, Luís Onofre e Sérgio Cunha empenham-se em desfazer a ideia de que a cisão vai deixar feridas abertas. “Quero evitar esses clichés que dizem estar em curso uma guerra”, diz Luís Onofre; “Isto não é uma guerra, é uma disputa de ideias”, nota Sérgio Cunha. Os discursos oficiais, porém, nem sempre resistem à realidade das conversas privadas ou às mensagens nas redes sociais.
Há diferentes explicações para o fim da unanimidade. A primeira, apresentada por elementos próximos da lista de Luís Onofre, aponta para a ingerência política do presidente da Câmara de Felgueiras, Inácio Ribeiro, do PSD, que se dedicou a promover um industrial do concelho para a presidência da associação. O autarca chegou a manter contactos com elementos da actual direcção para fazer valer as suas teses. Fortunato Frederico, ausente no estrangeiro, esteve incontactável para esclarecer os termos dessa intervenção. Inácio Ribeiro não respondeu aos contactos do PÚBLICO. Luís Onofre não quer “acreditar que a Câmara de Felgueiras esteja envolvida neste processo” o que a acontecer, sublinha, seria “grave”. E Sérgio Cunha diz desconhecer qualquer ingerência política.
A intervenção do autarca pode não ter sido a causa maior da candidatura do líder do grupo Pedreira, um dos maiores do sector, mas acendeu a luz da dissidência. Como sempre aconteceu no calçado, a direcção cessante recorreu a uma prerrogativa do regulamento eleitoral e avançou com um nome para suceder a Fortunato Frederico. Luís Onofre aceitou com relutância e começou a convocar nomes, incluindo o de Sérgio Cunha, convidado a manter o cargo de presidente da Assembleia Geral. As diligências de Onofre antes da assembleia que determinaria o rumo do processo eleitoral caíram mal a Sérgio Cunha. Depois, chegaram os estímulos para avançar. “Recebi imensos convites para criar uma lista, vi que tinha muita gente boa do meu lado”, diz Sérgio Cunha. E avançou, apesar de ter havido tentativas de fundir as duas candidaturas.
Com o tempo, a corrida eleitoral começou a trazer à luz do dia divergências com a direcção actual que pareciam estar adormecidas. E impôs novas leituras sobre o protagonismo local dos principais pólos da indústria – Felgueiras, Guimarães, Benedita, São João da Madeira, Oliveira de Azeméis (base de Luís Onofre). Neste particular, a lista de Sérgio Cunha é ilustrativa, com 11 felgueirenses entre os 26 nomes da sua lista – o que o candidato considera “normal”, uma vez que Felgueiras “representa quase metade da produção e da exportação” do sector (uma proporção que outras fontes consideram “muito exagerada”). Luís Onofre dispõe de nomes mais dispersos, mas não deixa de ter os seus trunfos em Felgueiras, com Reinaldo Teixeira a correr para a presidência da Assembleia Geral e Joaquim Moreira, da Felmini, a ter um lugar de destaque.
Nos programas eleitorais de cada candidato, a avaliação ao percurso da APICCAPS, o desempenho da direcção cessante e o mérito da equipa técnica da associação são questões maiores. E é aqui que se fundam os principais consensos. “Não há motivos para grandes mudanças. Tem de haver continuidade a um trabalho de 30 anos que deu resultados”, diz Luís Onofre. “O que a APICCAPS fez nos últimos anos foi fantástico. A indústria esteve morta e hoje todo o mundo louva o trabalho feito no sector”, aponta Sérgio Cunha. Uma constatação que o leva a considerar que a associação “tem um corpo técnico fantástico”. Se ganhar as eleições, Sérgio Cunha quer manter o director-geral da associação, Manuel Carlos, considerado o principal ideólogo da transformação da indústria, no cargo. “Admiro-o. A indústria deve-lhe muito. Quero tê-lo ao meu lado”, diz Sérgio Cunha.
Mas, afinal, o que separa os candidatos? Mesmo no espírito de “continuidade”, Luís Onofre diz que “é preciso avançar com o rejuvenescimento da indústria com pessoas novas” e considera importante garantir “a comunicação directa com as pessoas”, algo que o candidato considera ser uma falha dos últimos anos. Sérgio Cunha, que também aposta no papel das segundas e terceiras gerações da indústria, quer mais mudanças. No avanço para a indústria digital. No desenvolvimento do comércio online. E, principalmente, quer a associação “a trabalhar para as necessidades das empresas”.
Se Cunha ganhar as eleições, a imagem e o conceito da marca “Portuguese Shoes”, alicerçada em sapatos de mulher com pedras preciosas e estiletes a simbolizar luxo e sofisticação vão acabar. “Temos de deixar de apostar em calçado que nós não produzimos”, diz Sérgio Cunha. No perfil da indústria, os produtos de luxo não têm o peso, por exemplo, dos sapatos de homem em pele, mas é precisamente nesse nicho que se insere Luís Onofre, um dos ícones da modernidade do sector. O designer de 46 anos, que factura 12 milhões de euros com a venda de sapatos de mulher que facilmente custam 600 ou 700 euros o par foi o eleito pela direcção cessante por poder consolidar uma imagem luxuosa e sofisticada da indústria. Essa estratégia, muito focada e ampliada pelo director de comunicação Paulo Gonçalves, pode ser corrigida.
Com a indústria expectante, a campanha acelera por estes dias. Ambos os candidatos dizem ter trunfos para ganhar uma eleição na qual as empresas votam de acordo com o número de trabalhadores. Os grandes grupos estão divididos, como parecem estar os mais pequenos. Ganhe quem ganhar, Sérgio Cunha e Luís Onofre subscrevem uma mesma promessa: depois do dia 21 a associação virará de página e encerrará este momento original de divergências. com Luísa Pinto
Os candidatos
Luís Onofre
Apesar de a marca Luís Onofre só ter feito a primeira apresentação ao mercado em 1999, na ModaCalzado, em Barcelona, a ligação do empresário à indústria do calçado é bem mais antiga. Representa a terceira geração da empresa Conceição Rosa Pereira, fundada em Oliveira de Azeméis, e o lançamento em nome próprio foi feito ao mesmo tempo em que colocou todas as apostas no segmento de luxo do calçado feminino. Mulheres como Michelle Obama, Paris Hilton, Naomi Watts, Letizia Ortiz, Penélope Cruz ou as portuguesas Sara Sampaio e Daniela Ruah engrossam o nome das que já usaram sapatos Luís Onofre. Só sete por certo da produção de Onofre fica em mercado nacional. Entre os principais mercados de exportação estão, na Europa, a Espanha, Holanda, Alemanha, Bélgica, Sul de França, e também países como Angola, Dubai e Rússia, ou outros mais improváveis como a Nigeria e a Mongólia. O ano de 2014 foi, talvez, um dos mais importantes para a notoriedade da sua marca, com a abertura da primeira loja em Portugal, em plena Avenida da Liberdade, e por ter sido o ano em que repetiu prémios de design, foi eleito o homem do ano pela revista GQ e acabou condecorado pelo presidente da República.
Sérgio Cunha
O grupo empresarial Pedreira, que tem Sérgio Cunha como presidente, factura cerca de 50 milhões de euros e tem na Nobrand a marca própria de maior notoriedade. Fundada em 1988, a marca aposta no target dos citadinos, modernos e irreverentes, mas o calçado é usado por “ jovens dos 17 aos 75 anos”, como refere Sérgio Cunha. Com mais de 1300 pontos de venda em todo o mundo, sendo a presença feita maioritariamente em lojas de distribuição multimarca, a primeira loja em nome próprio foi aberta há menos de dois anos, em Medellin, na Colômbia. Sinal dos tempos, e que novos mercados se começaram a abrir a sério a esta marca, que teve sempre os maiores casos de sucesso dentro do território europeu. A Nobrand é, por exemplo, a marca portuguesa que mais vende na Alemanha. Com cerca de 120 funcionários, e uma capacidade produtiva de perto de 2500 pares de sapatos por dia, a fábrica da No Brand também mereceu a visita do Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, que escolheu um par de sapatos desenvolvido com o artista plástico Luio Onassis para ser exposto no Museu da Presidência.