Kendrick Lamar e a América olham-se ao espelho
No novo álbum Kendrick Lamar olha-se ao espelho e, nesse movimento, também a América turbulenta dos dias de hoje nos é devolvida, num álbum sobre a condição humana menos grandioso que o anterior, mas onde volta a mostrar que é uma das figuras maiores da música actual.
Aos 29 anos, e com apenas três álbuns, o rapper americano Kendrick Lamar tornou-se numa das figuras mais consensuais do universo da música popular. Em particular o álbum To Pimp A Butterfly (2015) conseguiu aliar o tremendo sucesso comercial com a aclamação crítica unânime. Ao mesmo tempo transformou-o mesmo numa espécie de consciência geracional da cultura afro-americana, com personalidades influentes dos mais diversos sectores, da música à política, tratando-o com reverência.
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Aos 29 anos, e com apenas três álbuns, o rapper americano Kendrick Lamar tornou-se numa das figuras mais consensuais do universo da música popular. Em particular o álbum To Pimp A Butterfly (2015) conseguiu aliar o tremendo sucesso comercial com a aclamação crítica unânime. Ao mesmo tempo transformou-o mesmo numa espécie de consciência geracional da cultura afro-americana, com personalidades influentes dos mais diversos sectores, da música à política, tratando-o com reverência.
Uma aclamação que envolve riscos. O próprio o percebeu, tendo lançado no ano passado untitled unmastered, álbum que nunca foi assumido como tal, como se quisesse mostrar que continua a fazer o que lhe apetece sem ter que alinhar por imperativos comerciais. Forma de expor que não se aburguesara.
Neste contexto, a edição do novo e quarto álbum estava envolta em grande curiosidade. Como iria reagir ao peso que carrega? Na verdade como fizera nos anteriores registos: colocando-se a si próprio, e ao mundo em redor, em causa. Em todos os discos escreve a partir de si, mas abraçando inquietações, receios e expectativas que remetem para o contexto sociopolítico que o envolvem. Como nos confessava há três anos as suas preocupações são pessoais, esperando que sejam de todos.
Em vez de cair na tentação de empunhar a bandeira política no sentido mais panfletário – e a eleição de Trump seria o contexto ideal – entra num registo de reflexão pessoal acerca da vida e da morte, conectando orgulho e amor, medo ou esperança, atribuindo às narrativas um eco universalista, no sentido em que traduz também os muitos nós por desatar do mundo actual. São temas complexos com várias camadas de leituras, com narrativa política cruzando-se com filosofia, mas de uma forma descontruida. É um álbum sobre a condição humana, onde a política se mistura com a fúria mas também com a depressão, numa obra múltipla, recheada de paradoxos.
Não é por acaso que os títulos das canções são pequenas palavras precisas (Pride, Humble, Lust, Love, Fear, God). É como se nos quisesse dizer ao que vamos sem equívocos. Mas na verdade somos é confrontados com abstracção, num terreno aberto às mais diversas interpretações, enquanto a violência policial, as barreiras raciais, os canais conservadores como a Fox News, a luta pela sobrevivência ou o papel da espiritualidade são dissecados.
Nesse aspecto o novo álbum não diverge dos anteriores. O que temos é ainda Lamar à volta dos seus conflitos – como manter-se fiel aos seus princípios quando à sua volta tudo parece soçobrar ou como preservar a integridade no reino da fama? – ao mesmo tempo que interroga como foi possível chegarmos aqui como comunidade, o que se perdeu e como poderemos redimir-nos num ambiente geral que parece incompreensivelmente apático e desumanizado.
A maior diferença do novo álbum é musical. Do ponto de vista sónico o anterior era caleidoscópico, abarcando funk, jazz, soul e psicadelismo, conectado com hip-hop de uma forma emocionalmente convicta como poucos. Era obra luxuriante, rica, orgânica, intensa. Agora os temas são mais expansivos e balanceados, apesar de existirem ainda alusões à soul dos anos 1970, em particular nos interlúdios ou nas introduções iniciais. Dito assim poderá parecer um disco mais clássico. Talvez, mas não é menos surpreendente, com cada tema a abraçar mudanças bruscas de ritmo, envolvidos por uma cacofonia de sons e de melodias nem sempre muito óbvios.
É verdade que ele não elide que está zangado, mas em vez das disrupções enfurecidas do anterior disco ao nível das vocalizações, existe um sentido geral mais subtil dos tempos e dos climas a adoptar. O som é mais minimalista, menos multidimensional, jogando alguns dos preceitos mais discerníveis do hip-hop e do R&B. Dir-se-ia que os ritmos foram comprimidos até à sua essência, ficando uma espécie de esqueleto, de estrutura, onde o que emerge é a voz.
Como acontece quase sempre existem uma série de contribuições de notáveis, para além de Rihanna e dos U2, como os produtores Mike WiLL Made-It ou Greg Kurstin, para além do cantor Zacari Pacaldo, ou de James Blake, Badbadnotgood, Kamasi Washington ou Steve Lacy (The Internet), entre muitos outros, mas este é um disco onde Lamar se desdobra por todos os personagens que os temas pedem. É uma obra totalmente sua. E isso sente-se em todos os momentos.
Em DNA o som electro é possante, com os graves a fazerem estragos por entre as palavras incisivas, enquanto em Love, o tom é gentil e meditativo, com alusões rítmicas e fraseados vocais meio reggae, com palavras e som a operaram em sincronia. A prestação vocal, o tempo, o ritmo, a exactidão e a fluidez vocal, criam narrativas de embate imediato como acontece em Loyalty (com Rihanna), fazendo lembrar um pouco Drake, num daqueles temas que possui todos os condimentos para o sucesso. Em XXX, temos Bono dos U2, numa colaboração que deve ter surpreendido todos os que acham que o irlandês já perdeu o brilhantismo, mas a verdade é que se trata de um dos melhores temas, parecendo dividido em três partes, mas funcionando bem enquanto todo, com Bono e Lamar perdidos numa mantra idealista que parece interrogar o sonho americano, com alusões pelo meio a Trump.
Mas Trump não é o único alvo de Lamar. O seu propósito parece ser mais ambicioso: que a América se olhe ao espelho, como ele faz consigo próprio. Mas ainda que assim seja, esta é uma obra menos desejosa de deixar marca que a anterior. Não possui essa exigência. O disco anterior funcionava como fresco da história da cultura afro-americana. Este não tem essa dimensão de epopeia. Nesse sentido dificilmente alcançara a dimensão clássica do antecessor. Mas está muito longe de ser um álbum menor. É o disco inventivo de alguém na plena posse das suas faculdades criativas, que continua exigente consigo próprio, não se eximindo à auto-análise e, nesse movimento, desafiando-nos ao mesmo gesto. Excelente.