Estas igrejas são um espectáculo

São pop. São urbanas. Mobilizam milhares: de hipsters a jovens adultos com bebés. São as “novas” igrejas evangélicas, onde as celebrações parecem concertos.

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 Domingo, 10h. Na sala ampla, em tons cinzento, cerca de 400 cadeiras brancas estão vazias. No palco fazem-se testes sonoros e projecção de vídeo. Uma guitarra e um contrabaixo estão pousados no chão à espera dos músicos.  

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 Domingo, 10h. Na sala ampla, em tons cinzento, cerca de 400 cadeiras brancas estão vazias. No palco fazem-se testes sonoros e projecção de vídeo. Uma guitarra e um contrabaixo estão pousados no chão à espera dos músicos.  

Na régie, rapazes vão afinando os pormenores para a transmissão em streaming da cerimónia dominical da igreja evangélica A Casa da Cidade (CC). Num edifício entre os Olivais Sul e a Portela, Lisboa, gente de todas as idades vai chegando, gente de várias origens e classes sociais. Há homens e mulheres sem-abrigo e há empresários e advogados. Há portugueses, afrodescendentes, estrangeiros de origem asiática, jovens hipsters tatuados, idosos, casais, solteiros. Senta-se aqui uma quase micro-Lisboa, muita gente nova. “Somos uma igreja que está na cidade”, diz ao PÚBLICO o pastor João Martins, 52 anos, presidente da CC. “Uma igreja da cidade deveria ser capaz de acolher todos.” E é isso que a CC quer fazer. Há tradução em simultâneo para várias línguas, entre elas o russo ou o mandarim.

Na sala, a música, que é composta internamente, entra rapidamente no ouvido. Facilmente decoradas, as letras falam de amor, de Deus, Jesus. Os versos são projectados, como em karaoke, para que todos possam cantar.

Os cantos de louvor são liderados por Bruno Mira, 41 anos, homem de braços tatuados, barba e boné na cabeça. É o responsável pela comunicação e artes da CC, gere uma equipa de 40 pessoas.

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Os músicos actuam como num concerto pop-rock, mas o estilo musical varia porque a ideia é agradar a todos, diz Bruno Mira. A assistência ficará na penumbra. Há alguns braços no ar, olhos fechados, rostos bem-dispostos. “Queremos que as pessoas tenham espaço para expressar a sua fé.”  

A celebração dura cerca de 90 minutos, mas metade do tempo é ocupado com as palavras do pastor e nessa altura as luzes acendem-se.

“Sei que sou livre para decidir/ Mas aos meus impulsos hei-de resistir/Me libertaste e eu/Não vivo mais para mim” — é a letra de um hino de graça que está disponível online. No site da Casa da Cidade a linguagem digital é mais parecida à usada por bandas musicais do que por igrejas. As letras e cifras podem ser consultadas, há biografias da equipa pastoral, as pregações gravadas. “Queremos comunicar com toda a gente.”

A linguagem pop, urbana e jovem que marca a CC é comum a mais igrejas evangélicas que renovaram a sua imagem, ou que apareceram recentemente, como a Hillsong e a CCLX (Comunidade Cristã de Lisboa). Igrejas que se enchem de centenas de pessoas ao domingo, em mais do que uma celebração, em mais do que um lugar.

Se em algumas evangélicas mais tradicionais os números descem, nestas três comunidades o fenómeno é inverso. Isso reflecte-se no aumento das celebrações dominicais e no número de espaços. As três igrejas têm mais em comum: grupos que se reúnem aos dias de semana, transmissão em streaming das celebrações. António Calaim, presidente da Aliança Evangélica, reconhece: exercem “forte atracção” nos mais jovens, “não tanto pela pregação”, mas muito “por causa do seu estilo de culto e da música”.

Na sexta-feira, tal como as outras igrejas evangélicas, tal como os Católicos, assinalaram a morte de Cristo — e no domingo celebram a sua ressurreição. Pertencem ao grupo das igrejas minoritárias em Portugal, que poucas vezes vêm a público pronunciar-se. “Os portugueses, em geral, conhecem muito pouco os evangélicos”, afirma José Brissos-Lino, coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo (ICC), da Universidade Lusófona. Em inquérito feito pelo ICC a lideranças religiosas sobre a percepção da liberdade religiosa em Portugal, apenas 50% dos inquiridos considerava a sociedade portuguesa religiosamente tolerante, lembra. Dos inquiridos, 85,1% dizia que o peso da Igreja Católica era excessivo.      

Banco para a cidade

“Um pastor deve sê-lo por vocação”, explica João Martins, que tem formação nas áreas da psicologia, arquitectura, teologia. “Pastorear é cuidar de pessoas.” João Martins liderava uma instituição, Desafio Jovem, que trabalha com pessoas com dependências. Há cinco anos juntou-se como pastor à CC. A igreja que deu origem à CC existe há quase 19 anos e chama-se Centro de Renovação Cristã (aliás, esse é o nome estatutário d’A Casa da Cidade).

Neste momento, a igreja tem entre 400 a 500 membros, mas há mais visitantes, “amigos”, que aparecem todos os domingos. Recentemente, avançaram para uma segunda celebração dominical (agora há às 10h30 e às 18h30). “Um dos fenómenos que nos acontece é que há uma série de gente, que se dizia evangélica não praticante, que está a vir aqui.”

Bruno Mira acrescenta: “A ideia é sermos uma casa uns para os outros.”

A família é, de resto, um dos eixos centrais na CC. “O facto de estarmos juntos não significa que pensemos todos da mesma maneira, em relação a tudo”, explica. Há alguma coisa proibida? “Para nós só existe um pecado, que significa erro: não nos ligarmos a Deus. Tudo o resto que possa ser menos bom é consequência da falta dessa ligação”, continua Bruno Mira.

Especificando: relações entre pessoas do mesmo sexo, sexo antes do casamento, temas tabu noutras igrejas: como é que a CC lida com isso? João Martins: “Quem é polícia de quem? Aqui vai ver de tudo. São pessoas que ou querem caminhar connosco ou não querem. Acolho, recebo, caminhamos juntos.”   

Um projecto de apoio a famílias, um banco alimentar, banco de livros, alfabetização de adultos, apoio a uma família síria através da Plataforma de Apoio aos Refugiados: a CC tem uma componente social forte que desenvolve paralelamente às celebrações. Por exemplo, com o Banco Empreendedor da Cidade (BEC) a ideia é “dignificar quem precisa de ajuda”, explica Sara Martins, 24 anos, assistente social responsável pelo projecto. Subindo a rampa do edifício da CC, paramos numa zona com um bazar: há livros, roupa, sapatos. “A ideia é qualquer pessoa ser útil e ter algo para contribuir, independentemente dos recursos, porque alguma coisa de potencial ela tem”, explica a assistente social.

Estão fisicamente na Quinta do Morgado, num balcão inaugurado em 2014 no Mercado Encarnação Norte. A filosofia é as pessoas contribuírem com algo, para que “não estejam só à espera de receber e participem na sua própria mudança”.   

Numa altura em que estava a repensar a vida, Paulo Braga, 56 anos, decidiu procurar a CC. Não era crente em nenhuma outra religião, confessa antes da celebração de domingo, enquanto enche uns copinhos com sumo de uva que irão ser distribuídos com pão. “Estava desempregado, andei por aqui, estava muito em baixo psicologicamente. Ajudaram-me a encontrar emprego”, conta, no bar. Esta ajuda também recebeu Neusa Freitas, 56 anos, brasileira que vive há dois anos em Portugal, e que chegou à CC através de uma amiga: “Aqui as pessoas são como uma família. Tinha uma filha grávida e ajudaram em tudo: comida, roupa para o bebé, emprego.”     

Servir e contribuir

“Bem-vindo a casa” é o lema da Hillsong, uma espécie de “franchising” com sede na Austrália que em Portugal nasceu a partir de outra igreja, o Centro Cristão da Cidade.

Mário Rui Boto, o pastor de 48 anos, vestido de preto, agarra num microfone e apela à participação da audiência. A música está mais alta, a sala mais escura, o ritmo mais eléctrico do que na Casa da Cidade. A audiência também é mais jovem, há muitos adolescentes, e vários usam uma T-shirt a dizer “Aqui para servir” à frente e “We are young and free” atrás — o nome da “banda” juvenil da Hillsong que gravou vários álbuns (Justin Bieber é um dos membros desta igreja). Circulam com uns sacos para recolher a contribuição — o apelo ao dízimo e à oferenda é feito frequentemente. O financiamento vem das doações.

Todos os domingos, a Hillsong monta e desmonta o cenário e material da igreja no auditório da Associação para o Pólo Tecnológico de Lisboa, no Lumiar. Não têm, nem querem ter, por enquanto, sede própria. Mas crescem desde que em Fevereiro assumiram a nova identidade: planeiam fazer uma terceira celebração ao domingo, tal é a afluência ao auditório com capacidade para mais de 400 pessoas. Há ainda núcleos em pelo menos outras sete cidades. Todos os domingos, a audiência média é de 1500 pessoas. Mundialmente, são 100 mil.

No ecrã, passam vídeos publicitários a diversas campanhas da Hillsong. Na audiência espalham-se luzes de dezenas de telemóveis activos. Mário Boto lê as escrituras e a sua mensagem num tablet.  

À entrada uma moldura tem escrito: “#fé”. Vendem merchandising, t-shirts, camisolas, objectos. Pedro Luís, responsável pela fotografia que faz a ligação com imprensa, diz que parte desse dinheiro vai para os projectos de apoio social da Hillsong, através de entrega de cabazes, apoio a sem-abrigo, inclusivamente psicológico, apoio a crianças.

A Hillsong não difere das outras igrejas evangélicas, excepto na forma de comunicação, diz o pastor Mário Boto, agora numa sala decorada em tons de branco e preto, com sofás. Trata-se de “usar as ferramentas para fazer passar a mensagem de maneira que as pessoas entendam”. Mas o conteúdo “é ancestral e imutável ao longo dos séculos”.

Formado em teologia pelo Instituto Bíblico, Mário Boto diz “toda a gente é bem-vinda como está”. “A nossa missão é apresentar o evangelho e a mensagem é suficientemente poderosa para a pessoa fazer as mudanças que acha que tem que fazer.”

Aqui cerca de 80% da audiência tem menos de 40 anos. Há também vários estrangeiros, de sul-africanos a brasileiros, e uma clara aposta na geração Erasmus.  

Susana Garcês, 40 anos, é uma das portuguesas e fala de uma igreja moderna e actual que tem “uma mensagem prática para o dia-a-dia”. Mas que não deixa de seguir os princípios cristãos, acrescenta Filipe Dias, 39 anos. No fundo, é uma “igreja do século XXI”, diz este evangélico desde os 16 anos. “É uma igreja sem tabus, sem exclusões.”

Por natureza, os evangélicos adequam-se “muito bem à modernidade”, comenta a socióloga das religiões Helena Vilaça, da Universidade do Porto. E a nova geração de evangélicos é muito mais escolarizada, tem um capital cultural que lhes dá grande capacidade comunicativa, acrescenta.

Refere: para o exterior, a imagem é que as igrejas, em geral, são espaços fechados; mas estas “novas igrejas” tentam usar uma linguagem que quebra isso, com pastores sem indumentárias formais e uma decoração do espaço que passa essa informalidade. “Do ponto de vista da ortodoxia cristã, ela mantém-se. Mas muitas delas já não falam evangeliquês e têm uma capacidade de aproximação muito maior”, acrescenta. Não tendo um discurso radical, a atitude passa por “levar mais as pessoas a descobrirem o que está errado nas suas vidas do ponto de vista de Deus”.

O que caracteriza um evangélico? A centralidade da Bíblia, continua. “Acreditam que a salvação vem pela fé, que a igreja não tem o direito de criar dogmas e que não há santos a interceder porque as pessoas dirigem-se a Deus através de Cristo”.     

Uma igreja no sofá

Também é como um igreja aberta que a CCLX fala de si própria. Na CCLX não há bancos ou cadeiras: há sofás. Também não há divisões: o bar e sala de convívio estão juntos. À entrada está uma estante com livros, matraquilhos e mesa de snooker. “Tentámos ter uma estética da sala de estar”, conta o pastor Nuno Ornelas, 36 anos, “para criar o menos ruído estético possível entre quem está a pastorear e quem está a ouvir”.

Não foi em vão, porque foi na sala de estar, e entre amigos, que há quatro anos nasceu. “Iniciámos o grupo de trabalho em minha casa, com 12 pessoas”, conta, com a ideia de “tentar fazer igreja”, “para estarmos juntos”. Com os amigos, e com os amigos de amigos, o boca-a-boca espalhou o aparecimento de “uma nova igreja com boa vibe”, conta. “Gostámos dessa boa vibe de estar numa sala a falar sobre as escrituras, a fé.”

Ocupando um antigo armazém, a CCLX fica num dos pontos altos do Cacém. A vista sobre a linha de Sintra é desafogada neste final de tarde de domingo, a temperatura amena, por isso há gente cá fora.

Numa das paredes do bar empilham-se placas com palavras em inglês como “Amor”, “Confiança”, “Coração”, Deus”. Mais uma vez o palco será ocupado por músicos e cantores a interpretar os cânticos de louvor com profissionalismo. Esta é a igreja do músico Héber Marques, um dos fundadores. Ao fundo, passa o vídeo com as letras para serem entoadas por todos. Novamente: poderia ser um concerto, poderia ser um espectáculo.

Muitos nem sequer chamam pastor a Nuno Ornelas, diz o próprio, um jovem formado em Línguas e Literaturas que se vê como um cuidador. Apenas ele e outro membro é que estão a tempo inteiro na igreja, e recebem salário. O financiamento vem exclusivamente das ofertas e do dízimo. Mas “nunca falei disso [do dízimo e das ofertas] no culto”, sublinha.

À CCLX, que tem um pouco mais de 200 membros, mas muito mais na assistência, vão “empresários, artistas, mães solteiras, pessoas a resolver questões na sua sexualidade, homossexuais, gente que crê como eu, gente que crê diferente, católicos, agnósticos”, diz, descrevendo a diversidade da igreja composta maioritariamente por jovens adultos. “Temos que dar ferramentas práticas para as pessoas usarem no dia-a-dia.” Todos são bem-vindos. “Quando a pessoa tem consciência do que Deus pensa em relação a ela, há comportamentos que devem mudar. Agora isso tem que ser feito pelos próprios, não vou fazer de pai, nem infantilizar.”

Há dois meses abriram uma comunidade da margem Sul, com cerca de 70 pessoas. Foi nessa zona, aliás, que Nuno Ornelas se converteu aos 18 anos, na Igreja da Assembleia de Deus da Moita. Há uma aposta na conquista de públicos estrangeiros, para quem é traduzida a celebração.

O que encontram aqui quem os procura? Lara Prazeres, 36 anos, conhece a igreja há dois anos. Cresceu como católica mas em Inglaterra, em 2006, teve contacto com os evangélicos e quando regressou converteu-se. O facto de o pastor ser casado e ter família é “importante”, refere. “Para vermos o exemplo, pedirmos conselhos a uma pessoa igual a nós, que tem os mesmos desafios.”

À saída, um casal inglês de missionários que vive em Portugal explica: “Gostamos das igrejas onde exista vida e liberdade.” Atrás da porta, a música toca-se alto e bom som.       

"Novas" igrejas atraem jovens que "fogem" das tradicionais

Segundo o Centro de Estudos de Religiões e Culturas (CERC) da Universidade Católica Portuguesa, que comparou a evolução entre 1999 e 2011, os protestantes e evangélicos aumentaram de 0,3% para 2,8% - porém, nestes dados não se distinguem os evangélicos dentro dos protestantes. Dados da Aliança Evangélica Portuguesa (AEP) apontam para os seus fiéis representarem entre 2 e 2,5% da população, diz o seu presidente António Calaim.

Mas recentemente causou polémica um levantamento da AEP que apontava a descida do número de igrejas evangélicas entre 2000 e 2016, passando de 1630 para 964. O presidente da AEP explica os dados com factores como o regresso da imigração brasileira ao seu país, a emigração de portugueses e a própria diminuição da população portuguesa em geral. 

Calaim refere que este tipo de igrejas, como a CCLX ou Casa da Cidade, acabam por atrair os jovens que deixaram de ir às igrejas evangélicas mais tradicionais: “Quando eu era jovem havia mais militantes, agora há cada vez mais pessoas evangélicas que não vão ao culto. Estas igrejas mais jovens fazem com que as nossas comunidades mais novas acabem por se transferir. As igrejas mais velhas ressentem-se porque perdem público. Mas prefiro que vão a uma igreja evangélica”, afirma.

Apesar de não serem propriamente novas, recorda José Brissos-Lino, coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona, neste tempo “em que há uma certa desfiliação religiosa na Europa” há quem tenha conseguido atrair pessoas com outras técnicas e a música é uma delas. Analisa: o figurino de "uma liturgia virada para o espectáculo", “corta um pouco com a tradição das igrejas evangélicas onde as pessoas normalmente lêem a Bíblia”. Isto é, trata-se de “novas formas de comunicar”. 

Sem uma estrutura piramidal como a Católica, em que existe um Papa, “os evangélicos dão-se a conhecer pouco”, comenta, até porque a sua diversidade faz com que ninguém queira falar por todos. Como em outras minorias, os representantes não são convidados a participar em actos públicos ou em debates nos media, nota. Há também um “complexo de minoria”, que faz com que as igrejas minoritárias se façam ouvir pouco. “A Aliança Evangélica deveria falar mais para as pessoas em nome dos evangélicos. Quem não fala não se dá a conhecer. E, no entanto, os evangélicos fazem um trabalho social fantástico”, diz.