O lugar da mulher é no palco – e, para isso, há que correr com as princesas
A sexta edição do Atlantic Music Expo terminou na Cidade da Praia com actuações de Os Tubarões e Lura para um público em delírio. Mas foram dias em que se reflectiu também sobre o lugar da mulher no meio musical. Em Cabo Verde, Nelly Cruz é a única instrumentista profissional.
Cada vez que chega o Carnaval, a filha de Carmen Guiba quer mascarar-se de princesa e não de cientista ou astronauta. Para a vocalista do grupo Gato Preto, a resposta é simples: “Cada mulher tem de matar as princesas – porque as princesas estão a matar a nossa actividade”. A declaração da cantora, nascida em Moçambique, crescida em Portugal e radicada na Alemanha, seria um dos momentos mais arrojadamente afirmativos daquela que terá sido a conferência mais inspiradora do Atlantic Music Expo (AME), feira que leva até à Cidade da Praia, em Cabo Verde, profissionais da música de todo o mundo e com as mais variadas funções. A posição de Carmen, com uma saliente barriga que não tem como disfarçar a gravidez, é a de que as mulheres devem puxar a si a responsabilidade de preparar o caminho futuro, de educarem e serem hoje exemplo – para que a presença feminina na música não seja uma raridade no meio musical.
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Cada vez que chega o Carnaval, a filha de Carmen Guiba quer mascarar-se de princesa e não de cientista ou astronauta. Para a vocalista do grupo Gato Preto, a resposta é simples: “Cada mulher tem de matar as princesas – porque as princesas estão a matar a nossa actividade”. A declaração da cantora, nascida em Moçambique, crescida em Portugal e radicada na Alemanha, seria um dos momentos mais arrojadamente afirmativos daquela que terá sido a conferência mais inspiradora do Atlantic Music Expo (AME), feira que leva até à Cidade da Praia, em Cabo Verde, profissionais da música de todo o mundo e com as mais variadas funções. A posição de Carmen, com uma saliente barriga que não tem como disfarçar a gravidez, é a de que as mulheres devem puxar a si a responsabilidade de preparar o caminho futuro, de educarem e serem hoje exemplo – para que a presença feminina na música não seja uma raridade no meio musical.
A primeira instrumentista profissional de Cabo Verde
Tendo nascido na Holanda há 29 anos, Nelly cresceu na ilha de São Vicente e foi por lá que primeiro se juntou ao grupo Flautistas do Mindelo, a convite de um professor. Foi assim que se iniciou como baixista, aos poucos “fazendo parte de vários grupinhos”, até que decidiu parar porque não tinha tempo para estudar e voltou para a viola. Decisão que foi contrariada no dia em que o músico Hernani Almeida, que tinha corrido mundo a tocar com Mayra Andrade, Sara Tavares, Bau e Tcheka, lhe ligou a pedir que Nelly substituísse um dos instrumentistas da sua banda, indisponível naquele preciso dia. “Como estava livre e não tinha nada para fazer, aceitei”, lembra Nelly com toda a inocência. “Só no fim da conversa é que ele disse que era para tocar baixo e entrei em pânico.”
Claro que o pânico foi vencido, mas a promoção de tocar com Hernani Almeida tornou-a então muito consciente de que “não há mulheres a tocar baixo em Cabo Verde”. No final da tarde em que falamos com Nelly assistimos a um espantoso espectáculo do grupo Tradison di Terra no palco da Rua Pedonal, integrado na programação do AME, um conjunto alargado de batucadeiras que dá continuidade à tradição do batuko – em que as mulheres se reúnem em semi-círculo para cantar, tocar e dançar relatos do quotidiano feminino cabo-verdiano. Em cima do palco, Nelly Cruz não beneficia dessas tradições, nem do facto corriqueiro que é ver uma cantora local actuar; avança, na verdade, em terreno praticamente virgem. “As primeiras vezes que fui par o palco perguntava-me se podia mesmo fazer isto sendo mulher, se podia estar ali e cumprir o sonho daquilo que quero para mim”, diz. Se é verdade que teve de deparar-se com alguma resistência, a baixista prefere concentrar-se “nas miúdas mais novinhas que ficam logo com um brilhozinho” ao verem-na, nas “senhoras mais velhas” em que percebe “um orgulho contido” e nos “homens que dão força por haver uma mulher a lutar por algo que é diferente do que as mulheres normalmente fazem em Cabo Verde”.
A festa com Os Tubarões e Lura
Por coincidência ou não, a temática feminina e feminista acabou por estar bastante presente nos dois derradeiros dias do AME. Por exemplo, no magnífico concerto de Lura na Praça Luís de Camões, afirmação plena de uma cantora num nível apuradíssimo de maturidade artística, apoiada numa banda que, apesar de uma qualidade técnica exímia, não faz gáudio disso nem ensopa as canções em detalhes que poderiam tornar acidentado um caminho que se quer directo entre a voz da cantora e o público. No seu segundo concerto depois de dar à luz, Lura dedicaria um tema “a todas as mulheres guerreiras” confessando que “antes falava da força da mulher, mas só depois de parir um filho” é que percebeu exactamente o que isso queria dizer. Seria um momento de comunhão de um concerto que foi, na verdade, todo ele desenrolado como celebração da música cabo-verdiana em ambiente de festa, semelhante, nesse acolhimento, à euforia que se viveu na véspera com a presença no palco da Rua Pedonal para assistir aos históricos Os Tubarões.
Depois de se terem separado em 1994, Os Tubarões, máquina melódica e rítmica invejável que se espraia pela morna, pela coladeira e pelo funaná, voltaram a tocar em 2015, já depois do desaparecimento do seu mítico líder Ildo Lobo. Vê-los em funções, diante da maior enchente que a que se assistiu naquele palco durante todo o AME e com o público entregue a um desenfreado delírio, era impossível não ser esmagado pela vitalidade intocável de uma referência essencial para a música cabo-verdiana. Cada canção tem a força de um hino, e a forma como as primeiras filas se compactam e se movem a um só tempo, como uma gigantesca dança colectiva bailada por um corpo só, diz muito de como esta música parece estar no sangue de cada cabo-verdiano, de novos a velhos.
Não é injusto afirmar que, apesar de grupos e artistas provenientes de outras geografias, não foi apenas a questão emocional a fazer de Lura e Os Tubarões os protagonistas dos dois grandes concertos da recta final do AME. Nenhuns outros intérpretes conseguiram aliar com a mesma robustez e encanto uma soberba energia musical a uma impecável eficácia das canções. Exemplos, mais uma vez, para os músicos que durante todo o dia de quinta-feira procuraram aconselhamento de profissionais nas One to one meetings que ocuparam duas salas do Palácio da Cultura Ildo Lobo. Agendando conversas de 15 minutos com produtores, programadores, editores ou especialistas em divulgação da música na internet, foi uma oportunidade para BigZ Patronato, artista entre o rap e o rock que actuou quarta-feira durante a tarde, entregar a sua música a alguns delegados-chave no AME a fim de tentar “ganhar novos mercados e mostrar a música lá fora”, conforme disse ao PÚBLICO.
Também disso fala Djam Neguin, agente de valores emergentes na música moderna cabo-verdiana como Hélio Batalha, Hilário Silva e Alberto Koenig. As suas reuniões serviram para perceber melhor os processos por detrás da colocação destes artistas em festivais e salas de todo o mundo. No fundo, é também para isso que o AME existe – para criar oportunidades onde antes não existiam.
O PUBLICO viajou a convite da Tumbao