Alberto Carneiro, o escultor para quem arte e vida eram uma só coisa

Morreu aos 79 anos um nome maior da escultura portuguesa, depois de ter criado uma obra incontornável em que a arte andou sempre a par da vida.

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Nelson Garrido

“O corpo, não se esqueça do corpo”, dizia-nos Alberto Carneiro, quando nos ouvia analisar a sua obra apenas pelos seus aspectos matéricos e formais. De facto, para este escultor, figura incontornável da arte portuguesa da segunda metade do século XX, a escultura era tão só e apenas a emanação do lugar e do olhar do homem sobre o mundo: forma, matéria, mas também poesia, verbo, corpo.

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“O corpo, não se esqueça do corpo”, dizia-nos Alberto Carneiro, quando nos ouvia analisar a sua obra apenas pelos seus aspectos matéricos e formais. De facto, para este escultor, figura incontornável da arte portuguesa da segunda metade do século XX, a escultura era tão só e apenas a emanação do lugar e do olhar do homem sobre o mundo: forma, matéria, mas também poesia, verbo, corpo.

Alberto Carneiro faleceu este sábado de manhã no Porto aos 79 anos. Estava doente há muito tempo, e as suas aparições públicas tinham-se feito raras desde há alguns anos. E no entanto, como poucos, mantinha o prestígio e a influência que eram seus por direito há décadas junto dos escultores mais jovens. Conheciam-no não apenas pela elegância e pela atenção que dispensava a todos, mas também por ter realizado uma obra exigente, bem em consonância com as grandes inquietações plásticas e teóricas do seu tempo, e que sempre aliou a excelência da prática oficinal à reflexão sobre o próprio processo de trabalho. O corpo de que Alberto Carneiro nos lembrava era em primeiro lugar o corpo do escultor: as mãos, a força, o cérebro que pensa, a memória de uma tradição que via no trabalho humilde de um camponês a própria essência de que a arte se alimentava.

O escultor nasceu em 1937 em São Mamede do Coronado, perto da Trofa, para onde tinha regressado já há alguns anos, e onde vivia com a mulher, a historiadora de arte Catarina Rosendo. A sua era uma família humilde, que o colocou aprendiz ainda criança numa das várias oficinas de santeiro que havia na aldeia. Foi aqui, nesta prática do talhe da madeira de imagens populares e ingénuas que Alberto Carneiro deu os seus primeiros passos como escultor. Mais tarde estudaria na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis e nas Belas-Artes do Porto. Em 1968, como tantos artistas da sua geração, partiu para Londres com uma bolsa de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian. Era a altura certa para estar na capital do Reino Unido; não apenas a Pop Art estava completamente divulgada junto do grande público como, entretanto, se afirmavam outras tendências e práticas artísticas que visavam, em primeiro lugar, colmatar a distância entre arte erudita, apenas acessível nos espaços resguardados do museu e da galeria, e o quotidiano de homens e mulheres do tempo. O conceptualismo, que fazia depender a criação artística não do impulso criador mas da existência de uma ideia, e a land art, que deslocava o lugar da arte do espaço urbano para a natureza, falaram com especial acuidade à sensibilidade de Alberto Carneiro, que data desta altura uma transformação radical do seu trabalho.

Numa entrevista dada ao PUBLICO em 2013, Carneiro diz que foi neste ano que percebeu que a arte não devia estar separada da vida, e que ela tinha obrigatoriamente que radicar nas memórias pessoais do artista. No seu caso, a madeira e a sua origem – a árvore – desempenha esse papel de concentrar as experiências sensoriais de um menino camponês e a possibilidade do símbolo da procura incessante e para sempre frustada da origem da arte. Quando encontrávamos Alberto Carneiro numa das muitas exposições que fez ou em que participou e lhe pedíamos que nos falasse da madeira que parecia desbastar à procura de um hipotético coração, era comum que nos respondesse que tinha ido buscar um buxo de 400 anos, por exemplo. A matéria-prima, para este escultor, era algo de vivo, um organismo dotado sempre de uma história, uma memória e uma forma que ansiavam por ser reveladas pela acção do artista, muito na linha das afirmações de um pensador da época, Gaston Bachelard. Sempre foi assim.

A ida para Londres, onde foi aluno de Anthony Caro e de Philip King, de certo modo marcou também o começo da actividade pública de Alberto Carneiro. Em 69 participou na Bienal de Paris, e no ano seguinte criou Uma Floresta para os teus sonhos, que expôs na Galeria Bucholz de Lisboa: um conjunto de troncos de madeira dispostos de tal forma que apelavam a um percurso do visitante pelo interior da própria peça artística. Em 71 publicou O Caderno Preto e Notas para um Manifesto de Arte Ecológica, onde preconizava o uso de materiais naturais e procurava que o espectador usufruísse globalmente de cada obra criada. Um campo depois da colheita para deleite estético do nosso corpo, criado para o Museu de Soares dos Reis, no Porto, e feito com feixes de vimes cortados, é o segundo exemplo maior de obras deste período. Com esta mesma peça representou Portugal na Bienal de São Paulo de 1976. No ano seguinte, seria a vez de Veneza.

Simultaneamente, a partir da década de 70, Alberto Carneiro aprofundava os seus estudos de filosofia e religiões orientais, e começava uma importante actividade de professor. Esteve no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, na ESBAP e na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Organizou os Simpósios Internacionais de Escultura em Santo Tirso, a partir de 1985, que estão na origem da criação de um notável museu de escultura ao ar livre nesta cidade. Entretanto, participou na Alternativa Zero, uma grande colectiva comissariada por Ernesto de Sousa em 1977 que reuniu um conjunto de então jovens artistas que começavam a trabalhar em Portugal na época marcada pela revolução do 25 de Abril de 74. Até ao fim da vida, Alberto Carneiro expos regularmente, salientando-se importantes exposições em Lisboa (Fundação Calouste Gulbenkian e Centro Cultural de Belém), no Porto (Serralves), em Santiago de Compostela (Centro Galego de Arte Contemporânea), sem referir inúmeras mostras individuais em galerias portuguesas e estrangeiras.

Viajou também muitíssimo. No Brasil, Europa, Estados Unidos e Norte de África, ou pela Índia, China e Japão, estuda e encontra pontos de contacto entre as práticas humanas ancestrais e a natureza, que lhe permitem abrir a sua obra a expressões e linguagens diferentes do que lhe era habitual. A escrita, em diários ou aforismos, a fotografia, o desenho, o bronze, o vidro são alguns dos suportes que a sua criatividade encontra nos anos mais recentes. Nunca deixou de trabalhar, e de sentir que a arte e a vida eram uma só coisa.

O corpo segue no domingo para o Tanatório de Matosinhos, onde estará a partir das 16 horas.  Na Segunda-feira haverá uma cerimónia de despedida pelas 15h45, seguindo-se a cremação.