Xinobi e Mirror People: duas cabeças com imensa música lá dentro
São da mesma geração, começaram no rock, tanto se apresentam em formato banda ou como DJ e até já partilharam editora. Agora Mirror People reinventa-se com pop electrónica e Xinobi com house emocional.
São da mesma geração, começaram no rock, tanto se apresentam ao vivo com banda como no papel de DJ e até já partilharam a mesma editora – a Discotexas. Bruno Cardoso, ou seja Xinobi, e Rui Maia, ou seja Mirror People, por coincidência, acabaram de lançar o segundo álbum das respectivas carreiras. O seu percurso e a matriz estética que têm abraçado, conotada com a electrónica de inspiração dançante, tem pontos de contacto, mas cada um possui uma sonoridade definida.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
São da mesma geração, começaram no rock, tanto se apresentam ao vivo com banda como no papel de DJ e até já partilharam a mesma editora – a Discotexas. Bruno Cardoso, ou seja Xinobi, e Rui Maia, ou seja Mirror People, por coincidência, acabaram de lançar o segundo álbum das respectivas carreiras. O seu percurso e a matriz estética que têm abraçado, conotada com a electrónica de inspiração dançante, tem pontos de contacto, mas cada um possui uma sonoridade definida.
O que não significa ausência de inquietação. E a prova são os álbuns de ambos, onde, sem descolarem totalmente do que haviam feito antes, criando música física que seja capaz de provocar a imaginação, perseguem novos desígnios. A obra de Rui Maia é até capaz de ser mais inesperada, porque o ano passado havia lançado um álbum em nome próprio, Fractured Music, mais direccionado para os terrenos do tecno. Agora, com Bring The Light, não só descola dessa obra, como se afasta da estreia como Mirror People em 2015 com o álbum Voyager, mais virado para as recuperações contemporâneas dos sons disco.
“Este álbum é mais direccionado para a pop electrónica”, concorda, “contendo influências de algumas das áreas menos previsíveis, ou menos exploradas, dos anos 1980, enquanto o primeiro era mais centrado no disco sem qualquer dúvida.” Rui Maia idealiza, compõe e produz mas não lhe peçam para cantar. No primeiro álbum, para essa função, lá estavam Hard Ton, Rowetta, James Curd, Iwona Skwarek ou Maria do Rosário, que o acompanhou em muitos concertos. Agora é assistido vocalmente apenas por João Abrantes, ou seja Jonny Abbey, que também assina a mistura e as letras e que lançou recentemente o álbum de estreia.
“Na elaboração dos discos gosto de operar de forma solitária, mas é importante durante o processo, ou posteriormente, na apresentação do mesmo, poder contar com outras pessoas”, afirma, reconhecendo que a sonoridade mais vincadamente sintética resultou de uma opção pessoal que foi sendo maturada ao longo do último ano e meio, embora o modelo de canção pop electrónica não se tenha perdido pelo caminho, envolvida por uma consistente atmosfera que resulta tão retro quanto futurista.
As influências que refere dos anos 1980 (Human League, Soft Cell ou o Prince mais sintético) estão lá, embora também se pense em projectos que têm reactualizado essa memória, como os afectos à editora americana Italians Do It Better (Chromatics, Desire, Glass Candy) ou a pop electrónica dançante dos ingleses Hot Chip, ou até os Datf Punk do último álbum, na forma como o som sintetizado das guitarras é trabalhado. A maior parte das canções expõe um envolvimento assumidamente excessivo, com os sintetizadores robóticos e a voz voluptuosa a apontar para tensões eróticas ou para cenários urbanos requintados. Há qualquer coisa de artificioso nos quadros sonoros propostos, com cada canção a integrar diferentes temperaturas – do glaciar ao mais cálido – que são canalizadas para criar climas de volúpia.
“Este é um disco muito urbano, reflectindo sons e experiências da cidade, apenas a primeira faixa acaba por funcionar como diferenciação, com sons de pássaros, embora gravados em Monsanto”, graceja. Tal como noutros casos da música pop contemporânea tudo parece basear-se numa ideia de partilha de memórias perdidas no tempo e espaço, sejam as musicais de Maia, sejam as experienciais de Abrantes, embora a dupla consiga suplantar qualquer ideia de mera rescrição do passado, com uma afinada sensibilidade pop e a criação de ambientes que nos parecem devolver tanto a vibração como a melancolia nocturna das grandes urbes.
Na última década e meia Rui Maia tem estado activo. Em primeiro lugar com o grupo X-Wife, que co-fundou e no qual é teclista, e depois a partir de 2010 como Mirror People, onde mantém o gosto pela investigação sonora com sintetizadores de época, e o ano passado em nome próprio. Quando olha para o universo actual da música de inspiração dançante feita em Portugal sente uma certa paralisação, muita gente a fazer música mas sem grandes novidades. Na sua visão os nomes que se distinguiam há cinco anos, quando se sentia uma grande efervescência na área são os mesmos que continuam a merecer destaque. E entre eles estão alguns que integram a editora e colectivo Discotexas para a qual já editou há uns anos. “Gosto muito do que fazem, seja a Da Chick, ou o Moulinnex, o mais internacional de todos nós, mas especialmente o Bruno, o Xinobi.”
Quando falamos com Bruno Cardoso este devolve o elogio, enaltecendo Rui Maia, dizendo que ainda não tem uma opinião solidamente formada sobre o álbum do amigo – “apenas o ouvi ainda uma vez” – mas sublinha que ficou surpreso, pela positiva, pela mudança de direcção. Tal como no caso do músico e produtor do Porto, também existem linhas de continuidade e de transformação no segundo registo de Bruno Cardoso.
“É um disco mais sintético do que anterior, mais digitalizado e electrónico, com as guitarras a ficarem totalmente na sombra”, afirma. Se no seu desempenho como DJ lhe é reconhecida capacidade para gerar celebração esfusiante a partir de música house, disco ou funk digitalizado, em estúdio a coisa muda um pouco de figura. O primeiro álbum, 1975, lançado em 2014, era música de dança garrida com dinamismos rítmicos assentes em linguagens como o house menos óbvio ou o ‘disco’ mais festivo, sublinhados por elementos de funk e dub, misto de momentos contemplativos e arranjos festivos para a pista de dança.
No novo registo muda acima de tudo o tom. Os ritmos são mais distendidos, as cadências mais evolutivas, os ambientes mais reflexivos, existe mais tempo e espaço, com a subtileza, a elaboração formal e o respirar, a suplantar a tentação do impacto imediato. É um álbum mais sereno que o anterior. E também mais reflexivo. É uma meditação em torno dos contornos nebulosos do mundo actual, mas também um olhar para trás pessoalizado, para melhor se situar, do próprio músico.
As suas raízes estão ancoradas na vivência da linha de Cascais, na faculdade de Belas-Artes e nas culturas do punk e do skate. Durante anos era um dos responsáveis, na guitarra, pela distorção punk provocada pelos The Vicious 5 e há cerca de dez anos viria ser um dos fundadores da editora e colectivo Discotexas, que aposta nas diversas dimensões da música house, disco ou electro. “No fim de contas quis mostrar que todas essas pontas soltas – o punk, o metal, o skate ou a música de dança – se acabam por unir, fazem sentido no cômputo geral do que faço”, diz.
No livreto que acompanha o CD existe uma pequena entrevista com o brasileiro Igor Cavalera, um dos fundadores da conhecida banda de metal Sepultura, que nos últimos tempos tem também enverado pela música de dança como Mixhell, como se Bruno quisesse mostrar que todas as transições são possíveis. Da mesma forma, no primeiro tema, Skateboarding, existe uma reflexão de Ian MacKaye (o homem por detrás de bandas como os Minor Threat, Fugazi ou Dischord) sobre a cultura skate, vista como uma forma de redefinir o mundo à nossa volta.
“Nos anos 1990, na linha de Cascais, apanhei com todas essas culturas e elas continuam a fazer parte do que sou. Há pessoas que tinham uma percepção da zona como se fosse povoada apenas por betos, mas na verdade era e é uma realidade multifacetada. Nessa altura uma banda como os Primitive Reason acabou por sintetizar essa realidade muito bem, mistura de skate, graffiti, rock, hardcore, raiva, ska, reggae, mar ou surf.”
Para além de Ian MacKaye existem outras vozes que se ouvem em Quiet, nomeadamente a do poeta sul-africano Lararusman e das portuguesas Sequin e Margarida Falcão. É essa ligação entre vozes mais faladas que cantadas, com a música electrónica penetrante e imersiva, que acaba por criar espaço para a irrupção de um som house emocional de belo efeito.
A última vez que falámos, aquando da edição do primeiro álbum, a sua carreira internacional, essencialmente no papel de DJ, mas também com a sua banda, encontrava-se num bom momento. Quatro anos depois diz que não se pode queixar. “Na Turquia gostam de mim, no México também, e no Oriente tem acontecido o mesmo, tenho viajado imenso à volta do mundo, o que é óptimo. Não sou muito de projectar coisas, mas tenho feito o que gosto, este ano a Discotexas vai fazer dez anos que é algo que nunca pensei que fosse possível e estamos aí com mais projectos (vamos lançar uma compilação de aniversário), portanto as ideias e a vontade de as concretizar, com mais música diferente, não faltam.”
Conhecendo-o, percebe-se que fala verdade. Xinobi, tal como Mirror People, têm imensa música na cabeça. O ponto de partida daquilo que fazem é bem definido. O ponto de chegada é sempre uma surpresa.