Os programas de resgate e o setor financeiro: das narrativas aos factos (1)
O caso português compara com o irlandês, o espanhol ou com o cipriota? Acho que não.
Tenho observado que as “narrativas” sobre o programa de assistência financeira a Portugal que vão florescendo à nossa volta nem sempre se baseiam nos factos tal como eles se passaram. Inconscientemente ou não, corre-se o risco de reescrever a história. Arriscamo-nos a passar do “contra factos não há argumentos” para o “contra argumentos não há factos”. Não pode ser. Conversei com o Diretor David Dinis que me convidou para aqui vir apresentar factos.
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Tenho observado que as “narrativas” sobre o programa de assistência financeira a Portugal que vão florescendo à nossa volta nem sempre se baseiam nos factos tal como eles se passaram. Inconscientemente ou não, corre-se o risco de reescrever a história. Arriscamo-nos a passar do “contra factos não há argumentos” para o “contra argumentos não há factos”. Não pode ser. Conversei com o Diretor David Dinis que me convidou para aqui vir apresentar factos.
É o que me proponho, neste caso apresentando alguns factos concretos, que me vieram à memória quando li um artigo recente publicado neste jornal por Rui Tavares, “Portugal e o seu buraco na memória”
Neste primeiro artigo passarei em revista os programas da Irlanda, Espanha e Chipre. No artigo seguinte abordarei o caso de Portugal.
No início do quinto parágrafo daquele artigo Rui Tavares diz o seguinte (o sublinhado é meu): “É que os anos do colapso final do BES são também os anos da “saída limpa” que o governo Passos/Portas alardeou para o Portugal pós-troika. E essa saída limpa, já se sentia então e vê-se claramente agora, foi a saída mais suja de que há memória - ou haveria, se Portugal não tivesse um buraco na memória. Se não tivesse ficado esquecido que Portugal, ao contrário de Espanha, da Irlanda e de Chipre, implementou um programa de resgate que foi concentrado no Estado e não na banca”.
Ora diz-me a minha memória que o programa de resgate foi solicitado, negociado e assinado quando Sócrates era o primeiro-ministro de Portugal e não por Passos/Portas. Voltarei a esta questão no próximo artigo.
Comecemos por ver se o programa português deveria ter sido concentrado na banca e não no Estado, como diz o autor do artigo. O caso português compara com o irlandês, o espanhol ou com o cipriota? Acho que não. Vejamos, por ordem cronológica.
Quanto à Irlanda (país do sul, aprendi recentemente) o pedido de ajuda financeira deveu-se a uma crise gravíssima do sistema bancário doméstico. Na “carta de intenções”, datada de 3 de dezembro de 2010, e em que é pedida assistência financeira e se anuncia como a mesma será utilizada, as autoridades irlandesas (ministro das finanças e governador do banco central, como acontece em todas estas cartas) dizem no segundo parágrafo (o primeiro é introdutório, tradução minha): "A origem do problema [crise económica na Irlanda sem paralelo na sua história recente] está num sistema bancário doméstico, que no seu 'pico' foi cinco vezes a dimensão da economia, e está agora sob severa pressão. Os bancos de propriedade irlandesa eram de dimensão muito maior do que a da economia. A fragilidade do setor bancário está a minar a dificilmente adquirida credibilidade da Irlanda e a acrescentar um severo peso aos sérios desafios nas finanças públicas. Ações firmes, para restaurar a solidez do setor financeiro e reestabelecer a credibilidade orçamental, são necessária agora”. Era o sistema bancário português no início de 2011 comparável ao irlandês? Não me parece, mas seguramente não era essa a convicção das autoridades portuguesas, como se verá no próximo artigo.
O programa de ajuda aos bancos espanhóis iniciou-se em julho de 2012, mais de um ano depois do português. Dificilmente poderia pois ter servido de exemplo para o programa português. A carta em que a Espanha pede assistência financeira é totalmente esclarecedora. Abre da seguinte maneira: “Escrevo em nome do governo de Espanha para formalmente solicitar assistência financeira para a recapitalização das instituições financeiras espanholas que tal requeiram”. São bem conhecidas as razões para o pedido ajuda financeira. A bolha no sector residencial e da construção que cresceu até 2008 foi alimentada por empréstimos do sector bancário espanhol. A bolha rebentou e os bancos ficaram com grandes stocks de ativos problemáticos, ligados ao imobiliário. Para que os bancos se pudessem libertar desses ativos e evitar a sua insolvência eram necessárias avultadas quantidades de capital. Foi esse o objetivo do Programa de Ajustamento para o Setor Financeiro (só setor financeiro!) Espanhol, para o qual foram disponibilizados 100 mil milhões de euros pelo Fundo Europeu de Estabilização Financeira, dos quais apenas se utilizaram menos de metade.
A situação do setor bancário português no início de 2011 compara com esta? Não me parece. O problema dos bancos portugueses era primeiramente a liquidez, não a insolvência. Era essa a opinião das autoridades portuguesas, como veremos no próximo artigo.
Resta o caso de Chipre. Confesso que me deixou estupefacto Rui Tavares ter trazido Chipre à colação. É que em Chipre o programa foi concentrado nos bancos, mas praticamente sem apoio financeiro, foram os próprios bancos que tiveram de o resolver, sendo para isso “resolvidos” com recurso ao bailing-in, nomeadamente dos depósitos acima de 100.000 euros. O setor bancário em Chipre crescera muito rapidamente, em particular através dos depósitos, especialmente de não residentes, atraídos por remunerações e tratamento fiscal favoráveis. A carta de intenções assinada pelas autoridades cipriotas a 29 de abril de 2013, abre do seguinte modo: "Chipre está perante uma crise sem precedentes com origem nos nossos sobredimensionados bancos, alguns dos quais encontraram problemas de solvabilidade, aumentada por políticas orçamentais negligentes”. Com efeito a declaração do Eurogrupo de 25 de março de 2013 (obrigatória de acordo com o tratado do MEE, que não estava em vigor aquando dos programas acima referidos) “a assistência externa a Chipre não será concedida para a resolução e reestruturação do Banco Popular de Chipre nem do Banco de Chipre “( estes dois bancos representavam cerca de 40% dos depósitos bancários em Chipre). O montante financeiro do programa foi de 10 mil milhões de euros, dos quais apenas 2,5 mil milhões para recapitalização dos outros bancos. Ou seja, também no caso e Chipre o principal problema era a solvência dos bancos, não a liquidez.
As opiniões expressas neste artigo são da exclusiva responsabilidade do autor. A segunda parte será publicada amanhã