Misericórdia de Lisboa vai ter uma casa para a Ásia no Bairro Alto
Coleccionador Francisco Capelo doou à Santa Casa três quartos da sua colecção de arte asiática, que vai ser instalada no Palácio de S. Roque. O outro quarto vendeu-o àquela instituição por três milhões de euros. O protocolo que estabelece o novo museu é assinado esta quarta-feira.
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) vai enriquecer o seu parque patrimonial e artístico com a inauguração, prevista para o primeiro semestre do próximo ano, de um novo museu, a Casa Ásia – Colecção Francisco Capelo, no Palácio de S. Roque, ao Bairro Alto, em Lisboa.
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A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) vai enriquecer o seu parque patrimonial e artístico com a inauguração, prevista para o primeiro semestre do próximo ano, de um novo museu, a Casa Ásia – Colecção Francisco Capelo, no Palácio de S. Roque, ao Bairro Alto, em Lisboa.
O palácio seiscentista, adquirido pela instituição em 2014 e que vinha sendo objecto de obras de beneficiação, vai agora ser preparado para acolher a colecção de mil peças que Francisco Capelo reuniu ao longo dos últimos 20 anos, e que decidiu doar e vender à SCML de uma forma “generosa” e num regime de especial “benemerência”, diz Margarida Montenegro, directora da Cultura da Santa Casa, com o objectivo de ser “disponibilizada à fruição do público”.
O contrato de transferência da Colecção de Arte Asiática Francisco Capelo para a SCML, já aprovado pela mesa (o equivalente a um conselho de administração) no passado dia 23 de Março, vai ser assinado esta quarta-feira, precisamente no Palácio de S. Roque, pelo coleccionador e por Pedro Santana Lopes, provedor da instituição.
“Da colecção composta por um milhar de peças, cerca de três quartos vão ser incorporados no património da SCML sem custos para a instituição”, revela a directora ao PÚBLICO. Segundo o acordo entre as duas partes, um quarto do acervo é doado à SCML “em regime de propriedade plena”; outro fica exposto, mas sujeito ao usufruto vitalício do coleccionador; e um terceiro é colocado em depósito no Palácio de S. Roque, podendo posteriormente ser também incorporado no acervo. A quarta parte, acrescenta Montenegro, é comprada pela Santa Casa e por “cerca de três milhões de euros”, precisou ao PÚBLICO Sérgio Cintra, vogal da mesa, numa resposta por email.
Pelos termos do acordo que será agora assinado, a SCML obriga-se a manter a integridade e unidade da colecção, não estando, contudo, excluída a possibilidade de futuras incorporações, que estarão sempre sujeitas a um “acordo com o coleccionador”, diz Margarida Montenegro, acrescentando que “o enriquecimento da colecção não poderá ser feito com elementos dissonantes”.
Até ao fecho desta edição, não foi possível ouvir Francisco Capelo sobre os motivos que o levaram a estabelecer este acordo nem sobre as condições em que é celebrado.
Economista de formação, Capelo tem vindo a reunir nas últimas décadas colecções de tipologias e proveniências bem diferentes, algumas delas doadas, depositadas ou vendidas a instituições públicas. Talvez as mais conhecidas sejam as de design e de moda à guarda do Mude, museu da Câmara Municipal de Lisboa que já deu origem a vários diferendos entre o coleccionador e a autarquia. Mas Capelo, que também está na origem da colecção do empresário madeirense Joe Berardo (era ele quem inicialmente determinava o que comprar para o acervo agora exposto no Centro Cultural de Belém), tem as suas marionetas africanas e do Sudeste asiático no Museu da Marioneta de Lisboa e dezenas de objectos utilitários, decorativos e rituais de África e da Ásia, nomeadamente máscaras do Mali, no Museu Nacional de Etnologia.
Um panorama da arte asiática
A Colecção de Arte Asiática Francisco Capelo reúne peças de diferentes tipologias: escultura (em bronze, madeira e pedra), cerâmica, gravura, fotografia, manuscritos, mobiliário, têxteis, marfins, joalharia, lacas, máscaras. São provenientes da Etiópia, Índia, Himalaias (Nepal, Tibete e Butão), Sri Lanka, China, Coreia, Japão, Birmânia (actual Myanmar), Tailândia, Laos, Camboja, Vietname, Indonésia, Filipinas e Timor.
Montenegro realça o facto de se tratar de um acervo de peças que “não resultam de encomenda ocidental, antes testemunham as próprias culturas e civilizações milenares, que datam de um amplo período compreendido entre os séculos III a.C. e XX, culturas que os portugueses encontraram na Ásia, com os Descobrimentos”.
Neste sentido, a futura Casa Ásia “vai permitir alargar o conhecimento e as leituras da arte asiática”, podendo completar o panorama sobre este continente em diálogo com o que hoje se pode ver no Museu do Oriente, também em Lisboa. A directora da Cultura da SCML admite como natural “o diálogo e a articulação” entre ambas as instituições, realçando que isso já aconteceu recentemente em iniciativas associadas à estreia do filme Silêncio, de Martin Scorsese.
A directora de Cultura da Santa Casa de Lisboa realça ainda o facto de esta colecção ter uma “qualidade artística já plenamente reconhecida a nível internacional”, tanto por conter peças semelhantes a outras que integram os espólios de instituições como o Louvre (Paris), o British e o Victoria & Albert Museum (Londres), o Metropolitan Museum of Art e o House of Asia (Nova Iorque) ou os museus nacionais de Quioto e Tóquio (Japão), como por ter sido mostrada em diferentes cidades do mundo. O acervo, sublinha, foi ainda objecto de estudos publicados por especialistas de renome, como Regina Krahl (especialista em cerâmica oriental), David Priestley (antiquário que privilegia a arte chinesa), Dawn F. Rooney (historiadora de arte dedicada ao Sudeste asiático), Alexandra Green (conservadora do departamento de arte asiática do British Museum) e Matthew Isaac Cohen (professor da Universidade de Londres que tem estudado as artes performativas do Sudeste asiático, sobretudo o teatro de marionetas).
Acresce a isto o facto de a SCML ter também pedido a duas especialistas nacionais no domínio da arte do Oriente que apreciassem o acervo antes de estabelecer qualquer acordo com Capelo: Maria Antónia Pinto de Matos, que tem dedicado boa parte dos seus estudos à porcelana chinesa e é directora dos museus Nacional do Azulejo e da Presidência da República; e Alexandra Curvelo, professora da Universidade Nova de Lisboa cuja investigação passa, sobretudo, por temas relacionados com a presença dos portugueses na Ásia e com a arte e cultura nanban.
Terminadas as obras de adaptação para o seu novo destino, o que deverá acontecer até final do corrente ano, a abertura da Casa Ásia – Colecção Francisco Capelo, prevista para a primeira metade de 2018, “vai permitir criar um pólo cultural na zona do Bairro Alto e Chiado, proporcionando de forma integrada a oferta do Museu e da Igreja de S. Roque, do Arquivo Histórico da SCML e da sua Biblioteca e ainda daquilo que virá a ser a sede do Arquivo e da Biblioteca da revista Brotéria, no antigo edifício da Hemeroteca, e que está a ser também reabilitado pela Santa Casa”, explica Sérgio Cintra, um dos vogais da mesa da Santa Casa de Lisboa. O investimento realizado em “estudos, projectos, obra e fiscalização” para a reabilitação do Palácio de S. Roque ascende a "cerca de 2,5 milhões de euros", acrescenta.
Além disso, Margarida Montenegro realça o facto de o acordo agora conseguido com Francisco Capelo ter a virtude de manter no nosso país, e visível para o público, uma colecção de grande valor. No total, a Santa Casa gastará mais de 5 milhões de euros neste novo museu. com Lucinda Canelas