O polícia perigoso
Assim que Trump vestiu a farda de “polícia do mundo”, as coisas voltaram ao normal na normalidade mais perigosa que há.
Para muita gente há apenas duas atitudes admissíveis quando se trata de como lidar com conflitos armados no atual estado do mundo: ou cada qual bate nos seus, ou há um que bate nos outros todos.
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Para muita gente há apenas duas atitudes admissíveis quando se trata de como lidar com conflitos armados no atual estado do mundo: ou cada qual bate nos seus, ou há um que bate nos outros todos.
Os que acreditam na primeira opção proclamam que Bashar al-Assad é o presidente legítimo da Síria, com todo o direito a massacrar os seus opositores como quiser. Porque o ISIS e a Al-Qaeda na Síria são terroristas e estão contra Assad, todos os que estão contra Assad devem também ser terroristas. Em suma, tudo o que Assad fizer é justificado por ser contra terroristas e ninguém tem nada com isso — à exceção de Putin, que está na Síria porque foi convidado por Assad a reprimir terroristas com ele.
Os que acreditam na segunda opção tiveram o seu dia na passada sexta-feira, quando Trump mandou bombardear posições de Assad na Síria. De um momento para o outro, Trump virou “presidencial”. Mas isso não é novidade: não houve nunca presidente dos EUA, por mais irresponsável, iletrado e insultuoso que fosse, que através de um simples ataque em solo estrangeiro não deixasse de se redimir aos olhos de certos comentadores. Assim que Trump vestiu a farda de “polícia do mundo”, as coisas voltaram ao normal na normalidade mais perigosa que há: a imprensa norte-americana adora um presidente que bombardeia e, apesar das aparências, Trump adoraria ter uma imprensa que o adorasse.
Para quem não gosta de nenhuma das opções acima só vejo um caminho: o do direito internacional e da Organização das Nações Unidas. Neste caso, porém, o direito internacional não pode ser entendido apenas como o direito das relações entre Estados, mas antes como a esfera da realização progressiva dos direitos humanos em todo o mundo. E a ONU, com todos os seus defeitos, deve ser entendida como o melhor fórum possível para a tomada de decisões em nome da humanidade, incluindo quando se torna necessário o recurso à força contra crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou violações generalizadas de direitos humanos.
É por isso que importa, e muito, que o ataque ordenado por Trump contra Assad tenha sido ilegal. Digo isto estando convencido que Assad é um criminoso e atribuindo alta probabilidade a que os ataques com armas químicas da semana passada tenham sido da sua autoria. Mas é precisamente por isso que repudio qualquer ação contra Assad que, exceto em caso de emergência, não passe primeiro pelos seguintes passos: em primeiro lugar, pedir às Nações Unidas uma investigação sobre os factos no terreno; em segundo lugar, ir ao Conselho de Segurança garantir um mandato para agir; em terceiro lugar, e tão importante quanto os dois anteriores, cumprir escrupulosamente com o mandato concedido.
Sim, eu sei. Este é um caminho cheio de dificuldades e de bloqueios. A Rússia usaria hipocritamente o seu veto no Conselho de Segurança para proteger Assad. O caminho das Nações Unidas pode falhar — e aí cada um tomará as suas responsabilidades. Mas só levando a sério o caminho das Nações Unidas se pode começar a garantir uma ação de defesa dos direitos humanos legítima e eficaz em situações como a da Síria.
Fora das Nações Unidas, voltamos às duas opções iniciais. Ou a hipocrisia organizada de uma sacrossanta “soberania nacional” que chacina os seus próprios cidadãos enquanto os seus defensores nas redes sociais lavam daí as suas mãos. Ou aos EUA como “polícia do mundo” — e nós todos levados atrás das suas guerras. Contra estes dois caminhos perigosos, a Europa deveria ser muito mais intransigente na defesa da ONU. Se eu não quero um presidente dos EUA “polícia do mundo”, muito menos admito que possamos aceitar um polícia tão arbitrário, imprevisível e psicologicamente instável como Donald Trump.
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico