O amigo estratégico de Miguel Ângelo
A National Gallery de Londres reúne 70 obras de dois artistas do Renascimento — Miguel Ângelo e Sebastiano — e com elas fala de uma amizade com mais de 25 anos e de uma época carregada de intriga e de jogos de poder. O prodigioso Rafael não está lá, mas é como se estivesse.
Cá fora a fila não é longa mas, lá dentro, não é fácil circular. A National Gallery de Londres está habituada a multidões e, quando programa uma exposição com um daqueles nomes que garantem blockbusters, prepara-se para elas. O guia que o visitante recebe à entrada é muito completo, reproduz legendas e textos de parede, tudo para evitar que as pessoas se concentrem demasiado tempo em torno de um desenho ou de uma pintura.
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Cá fora a fila não é longa mas, lá dentro, não é fácil circular. A National Gallery de Londres está habituada a multidões e, quando programa uma exposição com um daqueles nomes que garantem blockbusters, prepara-se para elas. O guia que o visitante recebe à entrada é muito completo, reproduz legendas e textos de parede, tudo para evitar que as pessoas se concentrem demasiado tempo em torno de um desenho ou de uma pintura.
Miguel Ângelo Buonarroti (1475-1564) é uma dessas estrelas pop e, mesmo quando associada a um (comparativamente) quase desconhecido Sebastiano del Piombo (1485-1547), assegura casa cheia. Michelangelo & Sebastiano (até 25 de Junho) reúne 70 obras — pinturas, desenhos, esculturas — e várias cartas trocadas pelos dois artistas italianos, o primeiro da escola de Florença, o segundo da de Veneza, com percursos e impactos distintos na história. A uni-los uma amizade de 25 anos que deu origem a várias obras de arte e que viria a terminar numa discussão a propósito da Capela Sistina, obra do primeiro. Uma amizade estratégica porque, dizem os historiadores, começa por ser a associação entre dois artistas que tinham um rival comum — o jovem e talentoso Rafael Sanzio (1483-1520), o preferido do Papa Leão X numa altura, o começo do século XVI, em que o Vaticano era um verdadeiro centro artístico aberto à inovação e em que o chefe da Igreja Católica era um mecenas extraordinário. Um período em que o país atravessou guerras e revoluções.
Rafael é, por isso, o ausente-presente nesta mostra em que, no encontro de dois homens, põe em confronto duas tradições artísticas vistas como rivais na Itália do Renascimento — a de Veneza, primado da cor e da atmosfera, e a de Florença, que sublinha a importância do desenho, da forma e do espaço, de que Miguel Ângelo é o paradigma, escreve o crítico Mark Hudson, do jornal britânico The Telegraph.
O rosto da exposição é uma pintura com dois metros e meio de altura conhecida como a Pietà de Viterbo (c.1512-16) e que, segundo o catálogo, inclui a primeira paisagem nocturna em grande escala da história. Iconograficamente muito original, já que a Virgem, que lamenta a morte do filho, tem Cristo a seus pés e não ao colo, como é habitual, esta Pietà tem também a particularidade de ser a primeira obra saída da colaboração entre Miguel Ângelo e Sebastiano, uma parceria que funcionava, grosso modo, com base num debate constante entre ambos e no facto de o primeiro fornecer ao segundo inúmeros esboços e desenhos que este depois usava nas suas composições em pintura.
A obra, muito bem recebida à época, garantiu a Sebastiano duas outras encomendas que integram a exposição — A Ressurreição de Lázaro (1517-1519), uma pintura com quatro metros de altura que faz parte da colecção da National Gallery, e a decoração da Capela Borgherini, em Roma, que agora se pode ver em Londres graças a uma recriação tridimensional, numa escala menor do que a original, naturalmente.
Tanto na Ressurreição como na Flagelação de Cristo, principal obra da capela encomendada ao pintor veneziano pelo banqueiro e amigo de Miguel Ângelo, se reconhecem os protagonistas desenhados pelo mestre da Sistina, presentes em vários desenhos que atraem os olhares. São pequenos em tamanho, mas gigantescos na sua dimensão artística, escreve o crítico Jonathan Jones nas páginas do diário britânico The Guardian, simplesmente porque o que sai das suas mãos encerra “um mistério transcendental e um poder sublime”.
Esta Ressurreição de Lázaro, acreditam os historiadores de arte, terá sido feita para rivalizar directamente com A Transfiguração (1516-1520), de Rafael, e nela o corpo do irmão de Marta e de Maria, que, segundo o evangelho de João, Jesus terá ressuscitado, saiu directamente dos pequenos desenhos, alguns a giz vermelho, do artista florentino que podemos encontrar ali bem perto, junto a esta pintura monumental, de um pormenor e de um movimento incríveis.
Dirá certamente a maioria dos críticos e historiadores que o exercício de comparação serve sobretudo para chegar à conclusão fácil de que Miguel Ângelo pode mais numa figura de 20 centímetros desenhada sobre papel do que Sebastiano numa de dois metros pintada a óleo, mas a junção dos dois registos dá ao visitante a possibilidade de se aproximar desta parceria que nunca teve a pretensão de se basear numa relação de igual para igual, muito pelo contrário. Sebastiano, dez anos mais novo, tinha em Miguel Ângelo um mestre, e isso vê-se na forma como segue os seus modelos e sugestões, vê-se nas longas cartas que lhe escreve quando ele está “exilado” em Florença. Nelas fala dos seus trabalhos, das conversas em que Leão X elogia o talento de Miguel Ângelo sem deixar de se queixar do seu mau feitio, do quanto aprecia os seus conselhos.
A devoção de Sebastiano a Miguel Ângelo, que se nota, por exemplo, na forma como se dirige ao mestre quando escreve — “Querido amigo, mais querido para mim do que um pai” —, e a admiração que tem pelo seu trabalho, evidente quando diz, por exemplo, que os joelhos do seu Cristo della Minerva “valem mais do que toda a Roma”, parecem atravessar toda a exposição da National Gallery. Estão nas cartas e nas citações constantes que faz do mestre nas suas pinturas e desenhos, estão nos textos de parede que informam o visitante dos seus percursos tão diferentes e do seu encontro romano, quando Sebastiano acabava de chegar à cidade, vindo de Veneza, Miguel Ângelo estava já a pintar o tecto da Capela Sistina e Rafael se ocupava da decoração dos aposentos papais.
Um Cristo nu
A sala mais inquietante de Michelangelo & Sebastiano é, porventura, a que mostra precisamente as duas esculturas do Cristo della Minerva de Miguel Ângelo, poderosa escultura do filho de Deus em adulto e nu: o original da primeira versão, que poucos viram e que o artista abandonou por causa de um defeito no mármore que lhe plantava uma cicatriz negra no rosto, obra confinada ao Mosteiro de São Vicente, na província de Viterbo, desde 1644; e uma cópia em gesso que terá sido feita no século XIX a partir da segunda versão (1519-21), a que ainda hoje ocupa o lugar que lhe fora destinado aquando da encomenda, na Basílica de Santa Maria Sopra Minerva, em Roma, onde mantém o bizarro véu de bronze a cobrir os genitais de Jesus que o barroco lhe impôs.
À volta destas duas figuras há os desenhos que o mestre para elas fez antes de pegar no cinzel. Percorrê-los com tempo e de perto é um privilégio e dá a sensação de estarmos a ver Miguel Ângelo a pensar. A posição das pernas e dos braços, a inclinação da cabeça, a forma como Cristo se encosta à cruz ou como agarra na esponja embebida em vinagre, que é um dos instrumentos do seu martírio... Tudo é testado uma e outra vez pelo mestre, e o resultado é uma série de figuras que parecem suspensas, como se os corpos não tivessem peso. Deus revela-se, ao mesmo tempo, eterno e mortal — sagrado em toda a sua humanidade, divino em toda a sua perfeição. O corpo que Miguel Ângelo lhe dá nestas duas versões é o de um herói clássico que evoca o seu David, desenhado músculo a músculo, simplesmente poderoso e, apesar de tudo, terreno.
“A inevitabilidade de uma nova vida depois da morte é clara na primeira vez que Miguel Ângelo trata o tema da ressurreição de forma literal”, escreve no catálogo Timothy Verdon, padre e historiador de arte, por referência ao Cristo della Minerva, obra que nos faz recuar nas galerias e regressar a uma pintura do artista que está na colecção da National Gallery e, claro, na exposição — The Entombment (or Christ being carried to his Tomb). Se na escultura Ele aparece agarrado a uma cruz manifestamente pequena para o seu tamanho, exibindo uma força e uma virilidade a que quem olha dificilmente consegue fugir, na pintura, que tem magia das obras inacabadas, apresenta-se frágil e sereno, suspenso. É o mesmo artista crente, o mesmo Cristo nu, mas duas maneiras absolutamente diferentes de olhar para aquela figura divina, talvez porque numa está ainda morto e noutra já ressuscitou.
The Entombment é uma obra que está sempre à vista no museu londrino, mas parece ganhar outra presença quando é mostrada no actual contexto, quando ali bem perto se pode ver o Cristo della Minerva. O mesmo se passa, de certa forma, com Sebastiano, embora perca sempre na comparação com o mestre que teve em Roma (em Veneza foram Bellini e Giorgione a ensiná-lo), o mesmo que, depois de rompida a amizade, passou a referir-se a ele como um artista menor e até preguiçoso. A proximidade entre os dois chama a atenção para o trabalho de Sebastiano e para uma época que partilharam, sedutora e fascinante, recheada de intrigas e de jogos de poder, em que alguns artistas eram quase deuses.