Pierre Aderne espreita com Inês pela janela da vida

O sexto disco do compositor brasileiro nasceu como livro mas acabou vertido em canções: onze dias na vida de uma mulher imaginária que fala com o espelho e só consegue ver beleza da janela.

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Alfredo Matos

Pensando em Inês de Castro, escreveu Luís de Camões no canto terceiro dos seus Lusíadas estes muito popularizados versos: "Estavas, linda Inês, posta em sossego,/ De teus anos colhendo doce fruito,/ naquele engano de alma, ledo e cego". Séculos depois, sem pensar em Camões ou lusitana tragédia da Castro, o cantor e compositor brasileiro Pierre Aderne imaginou em Portugal (onde se radicou) uma outra Inês, no desassossego das suas contradições. Da Janela de Inês, o seu sexto disco, agora lançado, nasceu de um processo de produção literária que poderia ter desembocado num romance, não tivesse o seu autor alterado o seu rumo. "Partiu de um exercício, como se estivesse numa oficina de literatura com escritores, nessas conversas com Valter [Hugo Mãe], com [José Eduardo] Agualusa. E é engraçado que foi um pouco antes de Bob Dylan ganhar o Nobel da Literatura."

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Pensando em Inês de Castro, escreveu Luís de Camões no canto terceiro dos seus Lusíadas estes muito popularizados versos: "Estavas, linda Inês, posta em sossego,/ De teus anos colhendo doce fruito,/ naquele engano de alma, ledo e cego". Séculos depois, sem pensar em Camões ou lusitana tragédia da Castro, o cantor e compositor brasileiro Pierre Aderne imaginou em Portugal (onde se radicou) uma outra Inês, no desassossego das suas contradições. Da Janela de Inês, o seu sexto disco, agora lançado, nasceu de um processo de produção literária que poderia ter desembocado num romance, não tivesse o seu autor alterado o seu rumo. "Partiu de um exercício, como se estivesse numa oficina de literatura com escritores, nessas conversas com Valter [Hugo Mãe], com [José Eduardo] Agualusa. E é engraçado que foi um pouco antes de Bob Dylan ganhar o Nobel da Literatura."

Pôs-se, então, a escrever um livro. "Comecei a fazer esses exercícios, porque estava um pouco cansado já dos formatos habituais. E pensei numa personagem que pudesse servir de inspiração para onze dias", diz. O processo de escrita foi torrencial. "Quando comecei a escrever, escrevi logo umas cem páginas. E aí eu percebi que, por mais que fosse texto, prosa, aquilo era tão sintético a cada parágrafo, a cada estrofe, que soava a canção."

Começou então a colocar fragmentos do texto na sua página pessoal na internet. "Mas não me via musicando aquilo." Um dia, em conversa com Leo Minax, músico e compositor brasileiro (nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais) radicado em Madrid, teve a ideia de lhe propor que trabalhassem juntos no projecto. "A gente ficou um ano trabalhando nisso. E se o disco ficou com onze canções, há outras tantas que sobraram do processo." O disco manteve o rumo do texto, de forma concisa. "Na verdade, é como se eu estivesse dentro da sala de psicanálise da personagem que encontrei. A estrutura não mudou, mas seleccionei os fragmentos que ilustrassem melhor onze dias na vida dela [e cada dia é uma canção]."

Quem não tenha ouvido o disco, perguntará: mas afinal quem é esta Inês? Pierre Aderne explica-a assim: "É uma mulher que dá bom dia para o espelho todas as manhãs e que tem a certeza que um dia o espelho vai responder de volta. É uma mulher forte e frágil, corajosa e medrosa, bonita e covarde, amorosa, apaixonada. É a coisa mais feminina que eu escrevi até hoje e, no fundo, acho que fala um pouco também de mim e de algumas pessoas que eu encontrei no meio da vida. A Inês só enxerga a beleza a partir da janela."

"O disco mais complexo"

A narração, nas canções, é quase sempre feita na terceira pessoa, como se alguém falasse por Inês estando ela em silêncio. "Há dois dias em que ela fala, o sétimo [Tu não sabes o que é o amor] e o oitavo [A idade do tempo], mas quase sempre sou eu o narrador." No início, Pierre tinha mesmo a ideia de escrever um romance, ou talvez um diário. "Todas as vezes que escrevi isso, escrevi pela manhã, ao acordar, meio acordado meio dormindo. O meu processo de escrita é muito visual, como se estivesse a escrever para cinema. No caso de Inês foi muito mais interessante, porque eu via mesmo a cena toda antes de escrever: os movimentos do corpo, o cabelo." Leo Minax, ao trabalhar a música dos fragmentos propostos, seguiu de perto processo narrativo. "É um universo musical mântrico. A gente se encontrou duas vezes em Madrid e uma em Lisboa, mas foi quase tudo feito à distância. A repetição de frases foi a chave encontrada para que a gente conseguisse fazer desses textos música sem que quem estivesse escutando percebesse que aquilo era um texto." A primeira canção, Dia 1, subtitulada A mulher mais bonita do mundo, é um bom exemplo disso. Lê-la e ouvi-la são dois processos paralelos, porque da escrita não se adivinha logo a métrica da música.

"Harmonicamente, este é o meu disco mais complexo", diz Pierre. Nascido em Toulouse, França, de mãe brasileira e pai português (Ourém), com a infância passada entre Brasília e o Rio de Janeiro e desde há mais de seis anos residente em Portugal, os seus discos têm sido são maioritariamente marcados pela visão das águas: Casa de Praia (2005), Alto Mar (2007), Água Doce (2010), Bem Me Quer, Mar Me Quer (2012). Só em Caboclo (2014) se aventurou em paisagens mais interiores, cruzando as influências de uma vida.

Mas aqui a vida é outra, é a da imaginária Inês, cruzada com a dele e outras que vai vendo. Pierre: "Foi a primeira vez que eu misturei, na escrita, português do Brasil com português de Portugal." Isso nota-se, sobretudo, no Dia 7, Tu não sabes o que é o amor, já que o este tratar por tu é tipicamente português. "No Brasil seria ‘você não sabe o que é o amor’. Mas há outros termos, como ‘fazer aquilo que não é suposto’, ‘se calhar’, ‘imenso’, ‘algures’."

O processo de gravação também não seguiu os cânones habituais. "Eu queria começar o disco com a estrutura de voz e violão. Então a gente foi para Madrid e gravámos todas as maquetas, o Leo tocando e eu cantando ao mesmo tempo." Voltou para Lisboa com o material gravado e ficou uns tempos digerindo as canções. Até que voltaram a gravar tudo outra vez, mas no estúdio de Sérgio Milhano, em Cacilhas. Ele e Leo, voz e violão, de novo. "Mas olhando para cada uma das músicas, eu fiquei pensando: de que cor vou pintar essa parede?" E foi assim que surgiram outros sons, outros instrumentos, outros músicos: João Barradas (acordeão), Miroca Paris (percussão), António Quintino (contrabaixo), Chuck Staab (vassourinhas), David Joseph (flautas) e Luís Guerreiro (guitarra portuguesa).

Da Janela de Inês, o disco, tem vindo a ser apresentado em diversos locais e salas. "Pensei em fazer pequenos concertos, pop-ups, em cozinhas portuguesas [restaurantes de chefs]. Uns quarenta, ao todo, p’ra fazer. Vou deixar as salas para o segundo semestre e haverá dois concertos grandes, em Lisboa e no Porto, que ainda vou levar um tempo a preparar." No libreto do disco, há uma nota elogiosa de José Eduardo Agualusa, logo a abrir. Diz: "Quem, seguir para montante a corrente desta água tão límpida — que é o novo álbum de Pierre Aderne — há-de certamente encontrar o sol." Pierre e Inês, eis a bússola.