Clássica, mas muito moderna
Maria Helena da Rocha Pereira (1925- 2017) é um caso exemplar de uma paixão pela Grécia clássica que se traduziu num trabalho de enorme alcance, no domínio da tradução, da edição e dos estudos da cultura e da literatura.
Maria Helena da Rocha Pereira (1925- 2017) foi, durante décadas, o rosto dos estudos clássicos — sobretudo da cultura e da literatura gregas — em Portugal. Aos méritos do seu trabalho, enquanto professora, tradutora, estudiosa e divulgadora, somou-se o papel pioneiro e fundador que desempenhou: contribuiu muito, com o seu trabalho filológico e de tradutora, para introduzir na universidade uma visão muito mais alargada do estudo da cultura clássica, rompendo com aquela estrita visão que fazia dos textos dos autores gregos e latinos meros campos de exercício para satisfazer esta exigência: “Conjuga e declina, saberás a língua latina.” As competências de âmbito linguístico e gramatical foram sempre, para ela, um instrumento para aceder à riqueza cultural e literária dos textos da Antiguidade. Por razões que já não são de ordem científica, coube-lhe também o papel pioneiro de ter entrado, isolada, num mundo estritamente masculino.
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Maria Helena da Rocha Pereira (1925- 2017) foi, durante décadas, o rosto dos estudos clássicos — sobretudo da cultura e da literatura gregas — em Portugal. Aos méritos do seu trabalho, enquanto professora, tradutora, estudiosa e divulgadora, somou-se o papel pioneiro e fundador que desempenhou: contribuiu muito, com o seu trabalho filológico e de tradutora, para introduzir na universidade uma visão muito mais alargada do estudo da cultura clássica, rompendo com aquela estrita visão que fazia dos textos dos autores gregos e latinos meros campos de exercício para satisfazer esta exigência: “Conjuga e declina, saberás a língua latina.” As competências de âmbito linguístico e gramatical foram sempre, para ela, um instrumento para aceder à riqueza cultural e literária dos textos da Antiguidade. Por razões que já não são de ordem científica, coube-lhe também o papel pioneiro de ter entrado, isolada, num mundo estritamente masculino.
Segundo o seu testemunho, foi a leitura de uma tragédia grega, a Oresteia, de Ésquilo, quando tinha 13 anos, um dos factores que a levaram a escolher o curso de Clássicas. Mas quando entrou para a Universidade de Coimbra não tinha aprendido Grego no Liceu, apenas Latim. Por isso, no fim do curso, não conseguia ainda ler os textos gregos mais complicados. Três anos depois de ter acabado a licenciatura, e apenas com quatro anos de Grego, foi estudar para Oxford. Aí, na Faculdade de Litterae Humaniores (era assim que se chamava), teve como director de estudos o professor Dodds, autor de um famoso livro, Os Gregos e o Irracional, e, para além de aperfeiçoar bastante a sua competência na língua grega, iniciou-se em Crítica Textual, Paleografia Grega e Epigrafia.
E estudou os vasos gregos (um domínio da arte em que se tornou uma reputada especialista; e chegou a ensinar História da Arte Grega) com a maior autoridade da época: John Bazley. Esta estadia em Oxford e também alguns conhecimentos da língua alemã permitiram-lhe uma abertura, importante em todo o seu trabalho, às tradições filológicas dos dois países mais importantes na filologia clássica: a Inglaterra e a Alemanha. Foi, aliás, da Alemanha, da Academia das Ciências de Berlim, que lhe chegou o convite para fazer uma edição crítica de Pausânias, para a prestigiada Biblioteca Teubneriana. E considerava que esse tinha sido o seu trabalho mais importante (ainda neste domínio da edição crítica, recordemos que também editou os textos em latim de Pedro Hispano). A sua tese de doutoramento intitulou-se “Concepções Helénicas de Felicidade no Além, de Homero a Platão”. Se procurarmos a linhagem em que se inscreve, Maria Helena da Rocha Pereira está muito mais próxima da lição de um Wilamowitz (o importante filólogo alemão que morreu em 1931) do que de quaisquer mestres nacionais.
Para além dos muros da universidade, o nome de Maria Helena da Rocha Pereira irradiou sobretudo enquanto tradutora. Não admira: a tradução das grandes obras clássicas era mais do que deficiente e, na maior parte dos casos, nem era feita do original. Confessou, algumas vezes, que nem gostava de traduzir, mas fê-lo por necessidade, para tornar acessíveis, na universidade, os textos fundamentais da cultura grega. Essas traduções começaram por ser distribuídas em folhas e destinavam-se sobretudo aos alunos de História da Cultura Clássica. Foi assim que nasceu, em 1959, a primeira edição da sua famosa antologia, Hélade. Depois traduziu obras tão importantes como A República, de Platão, a Medeia, de Eurípedes, a Antígona, de Sófocles. A tradução destas duas tragédias nasceu da sua colaboração para o Teatro Universitário de Coimbra, foi a resposta a um pedido de Paulo Quintela — o que ajuda a perceber a vasta dimensão literária e cultural que presidia a todo o seu trabalho.
Se foi também uma divulgadora da cultura grega (e alguém que se serviu da sua autoridade para reivindicar o reforço do ensino das línguas e culturas clássicas), não foi por ter acedido a entrar em simplificações, nem para se encerrar no passado, mas porque via o mundo em que viveu, o mundo contemporâneo, através da mediação da cultura grega e latina. Sempre teve a preocupação de mostrar que essa cultura não era uma relíquia de museu ou objecto de uma historiografia mortuária. Por isso, escreveu ensaios importantes sobre a presença da cultura grega nalguns autores contemporâneos — por exemplo, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade e Miguel Torga. São estudos em que é bem visível que Maria Helena da Rocha Pereira era uma leitora atenta da literatura (e sobretudo da poesia) portuguesa. A sua visão da Grécia era muito de tipo apolíneo, razão pela qual achava que a categoria do dionisíaco, desenvolvida por Nietzsche em A Origem da Tragédia, era “um erro”, que não tinha em conta toda a complexidade da religião dionisíaca. Ainda assim, dizia: “um erro genial”.