Se pudesse, queria ser uma croma na caderneta dele
Tem graça fazermos coisas diferentes e originais, sobretudo quando somos miúdos, mas depois crescemos e o que nos dizem, nas empresas, é que só contam se derem dinheiro. É uma pena.
O J. queria uma caderneta de jogadores da bola e pediu-a à mãe. Mas a mãe, que percebe tanto do assunto como eu, enganou-se e comprou uma qualquer. O J. encolheu os ombros, disse que não fazia mal e tratou ele do assunto. Pegou em folhas, tesoura, cola, marcadores e deitou mãos à obra: fez a caderneta. Agrafou as folhas, fez os quadrados para colar as caras dos jogadores, desenhou os cromos, recortou-os, guardou-os numa bolsinha também feita por ele e entreteve-se a colá-los.
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O J. queria uma caderneta de jogadores da bola e pediu-a à mãe. Mas a mãe, que percebe tanto do assunto como eu, enganou-se e comprou uma qualquer. O J. encolheu os ombros, disse que não fazia mal e tratou ele do assunto. Pegou em folhas, tesoura, cola, marcadores e deitou mãos à obra: fez a caderneta. Agrafou as folhas, fez os quadrados para colar as caras dos jogadores, desenhou os cromos, recortou-os, guardou-os numa bolsinha também feita por ele e entreteve-se a colá-los.
O J. tinha sete anos quando resolveu o seu problema, agora tem oito. O J. resolveu um problema de forma criativa e isso é a maneira mais singular de se resolver um problema. É uma solução, mas não tem uma fórmula; é solucionar um problema, mas não é desenrascar: é criar. É diferente.
A mãe vai trazer-me a caderneta para eu ver, ela sabe que me apaixono por coisas assim, enchem-me a cabeça de espantos pequeninos. Na minha cabeça, o J. já faz cromos repetidos, só para brincar a sério às trocas no recreio. Na minha cabeça, o jogo não tem limites. Podemos trazer o que quisermos para a realidade, ela também é o que fazemos dela.
Não sou mãe, mas se fosse ia ficar orgulhosa daquela caderneta. Não sou empresária, mas se fosse contratava o J. Não sou mãe, não sou empresária, não mando em nada nem em ninguém, e infelizmente a criatividade não é assim tão valorizada por quem manda, muito menos na vida adulta. É olhada com graça, com graça apenas. Tem graça fazermos coisas diferentes e originais, sobretudo quando somos miúdos, mas depois crescemos e o que nos dizem, nas empresas, é que só contam se derem dinheiro. É uma pena.
Uma amiga minha fez um vídeo para concorrer a um posto de trabalho. Era tão engraçado o vídeo feito por ela. A luz não estava em condições, a câmara não estava bem posicionada, mas ela estava toda naquele vídeo. O empresário que não a contratou não percebeu a sinceridade daquilo. Respondeu-lhe com justificações sobre a luz, sobre a forma com ela devia olhar ou não para a câmara – e não, o lugar não era para filmar nada, mas eles queriam vê-la num vídeo, pronto.
Eu, que me fartei de rir enternecida com o vídeo, fiquei mais desiludida do que ela que não foi escolhida. Ela está habituada a este mundo, eu não me habituo. Resmunguei, chamei-lhes empreendedores de faz-de-conta, barafustei, só falam em ideias fora da caixa, mas depois querem tudo clean e pronto a consumir. Querem um produto, não querem um processo. Fico tão desiludida. Disse à minha amiga: “Para a próxima, paga a um profissional que te faça o vídeo. Não experimentes, não arrisques.” Ninguém se importa que não seja dela, não importa a sinceridade que se põe no que se faz, só importa o primeiro e único resultado. Não me revejo nesta filosofia ou na falta dela. O pensamento que pomos, ou não pomos, atrás do que fazemos conta, para mim conta.
Uma ideia demora tempo a fazer-se. E, quando surge, surge muitas vezes imperfeita. Surge ainda como um tropeção, uma tentativa, um quase lá. As redes sociais fartam-se de citar Samuel Beckett: falhar, tentar novamente, falhar novamente e falhar melhor. Mas no fundo ninguém quer falhar. E, sem isso, lamento, sem isso não há ideias, não há criatividade, não há o risco de que tanto gostam de falar alguns dos nossos empresários, sem isso, na verdade, não há nada, ou sobra pouco, muito pouco. Sobra repetição. E sobra competição. E isso é tão pouco para o que nós somos capazes de fazer. Nós somos capazes de fazer uma caderneta só nossa aos sete anos. Não há nenhuma caderneta igual à do J. no mundo.
Tirarem-nos isso com o tempo, com as lógicas do sucesso – não tenho nada contra o sucesso, mas tenho contra as dicas para o sucesso, o sucesso verdadeiro é falhar melhor – é tirarem-nos aquele que devia ser o nosso ofício mais precioso: criar. É que isso não só nos prepara para a vida, como faz com que ela valha a pena. Tudo o resto é fake, para usar uma palavra em inglês, como alguns empreendedores gostam e que, ainda por cima, não admira, está na moda.