Onde fica Putaoya?
Portugal abriu a sua primeira embaixada na China no século XVI, mas há 30 anos, quando Pequim exigiu Macau, já não sabíamos falar com os chineses.
Em Março de 1979, depois de décadas de relações cortadas, o jovem diplomata João de Deus Ramos chegou a Pequim para abrir a primeira embaixada de Portugal na China desde 1949.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Em Março de 1979, depois de décadas de relações cortadas, o jovem diplomata João de Deus Ramos chegou a Pequim para abrir a primeira embaixada de Portugal na China desde 1949.
Foi recebido no aeroporto por dois funcionários do Waijiaobu, o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, que puseram à sua disposição dois intérpretes, um motorista e um carro cinzento de fabrico nacional. Foi nele que o encarregado de negócios foi até à cidade. Hoje, este é um percurso que se faz numa auto-estrada com várias faixas e portagens. “Em 1979, era uma estrada estreita, com muito poucos automóveis, alguns autocarros, bicicletas e carroças”, conta João de Deus Ramos no seu livro Em Torno da China — Memórias Diplomáticas (Caleidoscópio, 2016). Instalado no Hotel Pequim, o diplomata montou a “residência” numa suite e a “chancelaria” num quarto ao lado.
No dia seguinte, enviou o clássico telegrama a comunicar às Necessidades que cumprira a primeira missão. Não havia dúvida sobre o que escrever. João de Deus Ramos tinha 37 anos, mas desde o 25 de Abril vira várias novas missões serem abertas. “O texto era sempre o mesmo.” No seu caso, era isto: “Cheguei ontem Pequim e abri embaixada. Ramos.”
Simples? Não em 1979. A “máquina dos telegramas” que levara era “moderna, electrónica e a última palavra em termos criptográficos, uma malinha preta de onde saíam umas fitas de papel com o texto do telegrama”. Antes de partir, passara vários dias na Cifra, no MNE, para aprender como funcionava. Mas ninguém se lembrou de um pormenor: as fichas portuguesas não encaixavam nas tomadas chinesas. Aflito no seu quarto do Hotel Pequim, mas capaz de uma razoável ginástica eléctrica, João de Deus Ramos conseguiu mudar a ficha e escrever a mensagem na fita. Ultrapassado o primeiro susto, na manhã seguinte à sua chegada e com tudo pronto, João de Deus Ramos foi finalmente aos correios enviar o primeiro telegrama para Lisboa.
Bastava agora passar o conteúdo da fita para um impresso dos correios, coisa que o futuro embaixador fez numa sala cheia de jornalistas estrangeiros. O tradutor foi ao balcão e explicou ao que iam. Queriam enviar um telegrama para Putaoya, Portugal.
E foi aí que surgiu o segundo problema, que também ninguém antecipara. Desabituados ao nome — há 30 anos que não se ouvia falar de Putaoya na China e muito tinha acontecido nesses anos, a começar pela Revolução Cultural —, o funcionário dos correios não sabia de que país estava aquele chinês a falar. O intérprete teve de repetir a palavra várias vezes. Putaoya! Putaoya! O telegrama acabou por ser aceite, o diplomata pagou e voltou para o hotel “com a noção do primeiro dever cumprido”, escreve nas suas memórias. “Outros telegramas se seguiram nos dias seguintes e após o envio do n.º 6 ou n.º 7, vem de Lisboa uma mensagem a dizer que não tinham recebido os anteriores.”
Em “missão urgente”, João de Deus Ramos vai com o intérprete aos correios. “Depois de muitos Putaoya enfáticos”, a verdade é revelada: o funcionário enviara todos os telegramas para o mesmo sítio. O lixo.